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4 PRAIA DE IRACEMA, DRAGÃO DO MAR

4.4 Considerações finais sobre Descalços pelo Caos

Pensando em todas as obras citadas, viu-se aqui que é possível perceber a cidade a partir de várias perspectivas, como um espaço de fluxos onde práticas podem provocar acessos a camadas diferenciadas de afetividades, ou mesmo através de ações inusitadas, inesperadas, nas quais uma performance, uma ressignificação

em um mapa digital, ou um movimento do corpo no espaço reconfigura e projetam camadas peculiares de sensibilidade em novíssimas temporalidades e espacialidades. Cada rua, cada esquina, cada novo espaço criado e experimentado torna-se mais vivo, particular e único para cada sujeito.

Por meio de um ato criativo, carregado de referências já existentes, como os mapas geográficos, uma imagem em movimento é produzida, programada em um aplicativo, subvertida e retransmitida, mediada por uma conexão de internet e sensores GPS em um dispositivo móvel totalmente conectado a um corpo-cidade,

carne e pedra. Essa obra, ação ou imagem interativa, no caso de “Descalços pelos

Caos”, só passa a existir com a condição de que haja uma deslocação tanto do performer quanto do usuário pela paisagem urbana.

Como bem sinaliza Baio (2015), a partir dos estudos da filosofia do aparato de Vilém Flusser, a imagem passa a ser retirada da sua condição de algo a ser apenas observado e é admitida por sua disposição de “atuar sobre o mundo que a encara”. Como afirma também Mc Luhan (1964, p. 34), os efeitos da tecnologia “se manifestam nas relações entre os sentidos e nas estruturas da percepção, em um passo firme e sem qualquer resistência”.

Se for possível identificar algum traço em comum na arte produzida no campo da realidade virtual, da realidade aumentada, da arte cibernética, do locative media e vídeo interativo este poderia ser descrito como um questionamento constante em termos formais dos modelos de existência da imagem. Mais do que o desenvolvimento de novas tecnologias de geração e exibição de imagens, tais explorações criativas têm se apresentado com um amplo campo de especulação sobre a própria natureza da imagem contemporânea, fazendo com que de suas pesquisas e propostas se desdobrem questões de ordem epistemológica, ética e estética. O exame dessa produção permite, assim, discutir formalmente o estatuto da imagem, e revela o caráter emblemático desta produção no campo mais abrangente das práticas artísticas. (BAIO, 2015, p. 25).

Acredito que pensar o caminhar como um ato de enunciação (De Certeau, 1990) ou como uma prática estética (Careri, 2010), mediado por “próteses tecnológicas”, além de contribuir com as percepções sobre os conceitos de mídias

locativas e de territórios informacionais (Lemos 2007), ajuda a pensar formas de

atualização da deriva no espaço urbano.

Como o artista pode problematizar a cidade a partir desta lógica de dados? O desafio é produzir sentido a partir de um conjunto de milhares de dados e informações reunidas, umas mais privilegiadas, outras menos. Como transformar as

lógicas de consumo imediato em experiências estéticas? Nesse contexto, os campos da arte e da tecnologia, em uma relação nem sempre amigável, investigam formas de construir, desconstruir e reconstruir territórios e, assim, introduzem os sujeitos em uma cartografia de representação de espaços e informações.

Se, nas décadas de 1960 e 197023 (Ver figura 16), as práticas de intervenções urbanas já reclamavam a ruptura com o cubo branco24 ou faziam uma crítica sobre os espaços onde a arte acontecia, na contemporaneidade, a arte com mídias locativas abre espaço também para outras possibilidades de experimentação nas camadas urbanas e ciberurbanas, ocupando territórios informacionais, evidenciando meandros políticos/ econômicos/ estéticos/ informacionais/ visuais da sociedade contemporânea:

Enquanto os situacionistas buscavam, pela deriva e criação de situações, transformar a vivência urbana, enquanto o flâneur se encantava com as passagens e florestas de signos da modernidade, hoje as práticas artísticas/ativistas com as mídias locativas buscam a mesma coisa: apropriação e transformação do espaço urbano. (LEMOS, 2007, p. 4).

Figura 16 – Intervenção “Ensacamento”, do grupo 3Nós3 (1979)

Fonte: Disponível em:< https://blogparadoxo.wordpress.com/2014/10/17/intervencoes-urbanas/ >

Acesso em 30 de agosto de 2014

Em todas as experiências descritas até aqui, parece haver de fato uma

23 Nos anos 1970, o grupo 3NÓS3 mostrou sua ousadia em plena ditadura militar com intervenções nas ruas,

museus e galerias de São Paulo. O grupo realizava intervenções à noite, como cobrir estátuas com plástico de lixo para simbolizar o esquecimento das obras. Na manhã seguinte, as pessoas se deparavam com a surpresa.

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relação de prática estética do caminhar. São indicadores ou mesmo uma atualização do que seria uma experiência lúdica, urbana e, fundamentalmente, nômade do “praticar a cidade”, como apontava De Certeau (1990). São percepções nômades de fazer arte. Para Beiguelman (2010), essas percepções permitem-nos pensar uma “estética da transmissão, do valor dos dados e da vulnerabilidade de seus fluxos”. E, talvez, mais que isso:

Não se trata apenas de arte imaterial. Trata-se de artes nômades, que operam no trânsito e em trânsito, de projetos concebidos para ambientes de redes que são validados apenas em fluxo, em relação a outras dinâmicas e conjuntos de dados. [...] A arte das redes sem fio é um jogo constante de articulação do imponderável e do imprevisível, que impõe refletir acerca de estratégias de programação e publicação que tornem a obra legível, decodificável, sensível. (In BAMBOZZI, L.; BASTOS, M.; MINELLI, R., 2010, p. 88).

No texto “Espaços em Movimento: de quantas vias se faz o tempo”, publicado no blog antropologizzzando25, em parceria com a professora Glória Diógenes26, discutimos um pouco sobre os desafios dos artistas e também dos pesquisadores, no intuito de ativar zonas de percepção em suas relações com o espaço urbano e eletrônico. Concluímos que a combinação de cotidiano, tecnologias subvertidas (atravessados por diversas combinações de plataformas e aplicativos

hackeados) e artistas interventores propicia uma arte incomum, que evidencia mais

uma vez a interconexão deslocativa dos sujeitos entre espaços virtuais e físicos. Ela incide também na ativação da memória do lugar e transforma essa relação a partir de suas ações: “A experiência nômade da cultura da mobilidade se realiza no ruído dos espaços de produção e consumo das redes fixas e móveis”. (BEIGUELMAN IN BAMBOZZI, L.; BASTOS, M.; MINELLI, R., 2010, p. 88).

Peixoto (2003) faz um apontamento que que se faz muito válido para esta reflexão, porque intervir criativamente pode ser “um gesto sobre o que já está em movimento”, seria como surfar em uma frequência, pegar uma onda. É aí que o artista intervém, por reverberação.

Penso na metáfora de Peixoto sobre a frequência ou mesmo sobre os nós das redes como uma ação locativa que, por mais específica que seja, pode ecoar em diferentes pontos, em linhas variadas de sociabilidade, linhas de memória do lugar,

25 Disponível em: http://antropologizzzando.blogspot.com.br/2014/06/espacos-em-movimento-de-quantas-vias-

se.html

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do eu, ou mesmo pode viajar através dos caminhos e fluxos estabelecidos de informação, levados pela estética dos suportes da linguagem do áudio e do vídeo para diversas camadas de redes e afetos.

De acordo com esses questionamentos, pode-se tentar dizer, enfim, que a arte que descrevemos aqui, experimentada por David da Paz, não é a arte eletrônica, feita para o ciberespaço (como a webart), nem mesmo uma arte voltada só para os meios materiais, físicos, como a pichação ou o grafite, ou as intervenções do grupo

3NÓS3 ou mesmo as poesias elaboradas pelas derivas de Fulton, que mesmo assim

tensionam as camadas do ciberespaço, como vimos. As obras analisadas, portanto, trafegam e confrontam as relações de um espaço urbano mediado por novas tecnologias móveis, atravessado por redes eletrônico-virtuais.