• Nenhum resultado encontrado

5 CENTRO, PRAÇA DOS LEÕES – RIACHO PAJEÚ

5.4 Temporalidades

Uma particularidade do trabalho é que as descrições dos documentos históricos de séculos anteriores dividem o espaço das bolhas digitais com matérias atuais de grandes jornais contemporâneos. As datas dos documentos e das matérias não são demarcadas nos áudios que escutamos na excursão. Essa característica estética do trabalho ocasiona sensação de conflito entre tempo e espaço.

A estratégia de uso do smartphone durante o percurso, arquitetada especialmente pela artista, provoca a confusão oriunda da atenção e da apreensão esperada para uma excursão, pois, ao manusear o aplicativo enquanto caminha, o usuário acessa o mapa digital, escuta informações antigas sobre aquele lugar e visualiza uma conformação urbana bem diferente em que o riacho se encontra; em

outro momento, o participante também escuta o som com a descrição de documentos mais atuais e percebe, por meio das linguagens empregadas nos documentos, que em alguns momentos o riacho existia e chegou a ser importante para os interesses do poder público, mas atualmente parece nunca ter existido.

Os documentos, contraditoriamente, atestam a existência do riacho e o participante consegue acessar, a partir da vivência e de um trabalho de produção de experiência anterior da artista, um espaço de múltiplas transformações, mas também atravessado por muitos dados e informações que partem, por exemplo, da empresa google e dos mapas oficiais da prefeitura, que não dão conta da realidade.

Acessar documentos históricos que tratam de um riacho apagado da cidade enquanto se caminha por ele é uma experiência que difere totalmente, por exemplo, de consultá-los em uma sala do acervo histórico da prefeitura. Principalmente, se a experiência produzida tem a particularidade da excursão, ligada ao turismo. Muitas vezes, nem mesmo nós, fortalezenses, conhecemos histórias não oficiais da cidade. Talvez a experiência consiga instituir modos de se reconhecer o próprio espaço urbano, mas a partir de uma abordagem contra-hegemônica, que produz apagamento, seja físico ou por meio dos fluxos de informação ocupados por pautas ligadas ao capital.

A artista deixa, assim, rastros temporais, porque não revela as datas dos documentos que o participante escuta durante a experiência. Deixa a tarefa para o usuário descobrir ou perguntar uns aos outros. Pode-se notar de que época são alguns áudio-documentos a partir dos termos utilizados, como “Deus te Abençoe” ou mesmo a partir das punições dadas aos infratores do riacho à época, “8 dias de prisão”. No entanto, podemos nos confundir com as linguagens de documentos que parecem ser muito antigos, mas são, na verdade, totalmente atuais e trazem as mesmas questões presentes em séculos anteriores, como a ocupação indevida do espaço público.

Escutar o conteúdo dos documentos acessados durante a caminhada indicou como a cidade foi sendo organizada do ponto de vista da infraestrutura de transporte e comunicação, por exemplo. Evidenciou também como as leis direcionavam possibilidades para aquele lugar, ou mesmo como estas não eram cumpridas, assim como determinados tipos de planejamentos urbanos “seguiam” modelos de outros países quando se era conveniente em determinadas épocas. Tudo depende, então, do momento, da política, ou das necessidades de apenas uma

parcela privilegiada da população. Durante a caminhada, discutimos ainda sobre a política recorrente de apagamento de obras ou de memórias entre uma gestão e outra na cidade de Fortaleza até os dias atuais.

Muitas leis escritas na década de 2000 parecem ter sido escritas no século passado. Acessar matérias de jornais ou leis de ordem de serviço e informar-se a partir dos áudios, observando o espaço físico transformado, faz com que o participante possa ter a percepção de visualizar o riacho correndo bem vivo e ao mesmo tempo vislumbrar in loco o que aconteceu naquele espaço físico. Mais uma vez, o som cria uma imagem ausente que dialoga com a imagem presente.

Pude pensar também, a partir da experiência como participante e como pesquisador, como são construídos alguns discursos, inclusive bem atuais, sobre a questão ambiental na cidade de Fortaleza. Estes são adotados quando são oportunos. São assumidos, por exemplo, para tirar a comunidade do Poço da Draga de onde está, mas não servem para revitalizar o riacho Pajeú, nem servem para pensar sobre a construção de condomínios comerciais e residenciais dentro de áreas verdes protegidas. Todas essas questões nos levam a pensar na abordagem site-especific que também passou por transformações:

Formas atuais de arte site-oriented, que prontamente se apropriam de questões sociais (com freqüência por elas inspiradas) e que rotineiramente incluem a participação colaborativa de grupos de público para a conceitualização e produção do trabalho, são vistas como uma forma de fortalecer a capacidade da arte de penetrar a organização sociopolítica da vida contemporânea com impacto e significado maiores. Nesse sentido, as possibilidades de conceber o site como algo mais do que um lugar – como uma história étnica reprimida, uma causa política, um grupo de excluídos sociais – é um salto conceitual crucial na redefinição do papel “público” da arte e dos artistas. (KWON, 1997, p. 173).

Essa informação não dada previamente fez-me confundir o antigo com o atual no que diz respeito ao discurso de construção e organização política e social da cidade. Provocou-me a sensação de estar vivendo vários séculos naquele mesmo momento, e assim pude acessar várias camadas de memória daquele lugar. Além da nossa guia Cecília, era a voz da “mulher do google” que nos deslocava para outro tempo e para outro espaço. Vivemos, ali, com um celular nas mãos e com os fones nos ouvidos, uma experiência de tempos, espaços e lugares cruzados na cidade: sujeitos, informação, narrativas, sentidos e memórias também podem percorrer as margens do riacho Pajeú.