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4 PRAIA DE IRACEMA, DRAGÃO DO MAR

4.3 Diálogos entre influências estéticas e modos de inventar

4.3.2 Mapas e mídias locativas

As relações estabelecidas com as maneiras de ocupar e redesenhar a cidade, a problematização da representação dos mapas e a subversão de usos de aparatos eletrônicos foram questões abordadas por artistas e estudiosos da década de 1960 e 1970, como o movimento Situacionista e o Grupo Fluxus. Hoje, artistas como David da Paz, em colaboração com outros artistas através da experimentação de obras totalmente conectadas com o convívio social urbano, atravessadas por redes eletrônicas e territórios informacionais, atualizam muitas dessas questões.

Hamish Fulton, outra influência para David, já em suas derivas iniciadas na

década de 1970, confrontava-se com a ideia de representação dos mapas no mundo da arte. Os caminhos percorridos pelo artista não precisavam remeter ou representar fielmente um trajeto real. A ideia de mapa já tradicionalmente difundida seria contestada pela psicogeografia, ou seja, o mapa seria agora pensado como uma tentativa de instrumento expressivo, como uma ferramenta de experimentação de práticas poéticas e estéticas. O corpo seria visto como instrumento perceptivo, os mapas assumiriam formas mais abstratas. O percurso cotidiano, o ato de caminhar, seria apresentado de outras formas, através de imagens, poesia e textos gráficos.

Logo, a partir dessa percepção, a experiência do caminhar não deve ser testemunhada apenas como uma mera representação do movimento. Ou talvez continue sendo uma representação, mas uma outra, diferente das assimilações técnicas figurativas dos mapas, que não se configuram como um simples rastro do percurso na topografia (Ver figura 12):

Nas galerias, Fulton apresenta os seus percursos por meio de uma espécie de poesia geográfica: frase e sinais que podem ser interpretados como cartografias que evocam a sensação dos lugares, as alturas altimétricas ultrapassadas, os topônimos, as milhas percorridas. Como os poemas zen, as suas breves frases marcam a instantaneidade da experiência e da

percepção do espaço, assim como os haiku japoneses tendem a despertar um hic et nunc vivido durante a viagem. O caminhar de Fulton é como o movimento das nuvens, isto é, não deixa rastro nem no solo nem no papel: Walks are like clouds. They come and go. (CARERI, 2013, p. 133).

Figura 12 – Percurso de Hamish Fulton

Fonte: < http://hamishfulton.com > Acesso em 20 de janeiro de 2016.

Fugindo também dessa perspectiva geográfica instituída, tradicional, as

pichações ciberpunks, assim denominadas e experimentadas por David da Paz,

parecem ter influência, ou até mesmo podem ser avaliadas como uma forma de revisitação feita sobre o trabalho de Fulton. Trazem assim, para esta pesquisa, problematizações sobre a visualização, percepção e a relação dos mapas com a vida cotidiana.

Munido de transcrições em mapas digitais, o artista cearense relaciona-se com o espaço urbano caminhando pela Praia de Iracema e deixa impresso em um mapa digital a palavra “especula” num raio de 12km, o que faz uma referência à especulação imobiliária nesta região de Fortaleza (Ver figura 13).

Figura 13 – Projeto “Narrativas Cartográficas”

Fonte:

< https://www.youtube.com/watch?v=QhMG__rZw7g&list=UU8tLWn-y8udsqT_VfdKnj-g > Acesso em outubro de 2014.

Por meio da ação descrita, o artista produz uma crítica política a partir de uma caminhada, ato repetido cotidianamente. Isso ultrapassa a dimensão de mero registro de um movimento automatizado ou mesmo o que seria a referência frequente dessa parte da cidade. Demonstra também como a imagem técnica de um mapa digital determina um imaginário físico de uma cidade como Fortaleza, um lugar de intenso apelo turístico e forte atividade de especulação imobiliária, a qual provoca prejuízos e danos às populações mais antigas que ali já vivem, como a comunidade do Poço da Draga.

A ação pode configurar-se como uma forma de dar visibilidade a um problema urbano relacionado a questões que envolvem desigualdades sociais. Há aí uma tentativa de subversão da função dada pelo aplicativo, que seria produzir um rastro, sem texto, sem dizer nada, apenas registrar um percurso cotidiano em um mapa digital.

Outras intervenções referências no mundo já foram realizadas e catalogadas, como as de Jeremy Wood, “GPS Drawing” (Ver figura 14) e de Ester Polak, “Amsterdam Realtime” e a “Urban Tapestries”, da Proboscis.

Figura 14 – “GPS Drawing”

Assim, com uma expressão política, David escreve, ou picha em uma espécie de mapa “cíbrido” (amálgama entre híbrido e ciber) e, dessa maneira, consegue sobrepor uma camada de sentidos, de memória do lugar que atravessa a percepção do espaço urbano material, por meio do virtual, e vice-versa. Essa proposta de intervenção é definida por David como um “híbrido de arte corporal, intervenções urbanas e ciberurbanas, dispositivos móveis e mídias locativas”.

Já em outro percurso, David “ciberpicha” a expressão “Te amo”, uma referência, provavelmente, à sua companheira. Com esta outra ação, além de ciberpichar pensando em uma questão coletiva, de interesse das comunidades já antigas da Praia de Iracema, o artista também constrói uma cidade para si, produzindo um discurso afetivo (Ver figura 15).

Figura 15 – “Ciberpichação” de David da Paz

Fonte: arquivo da pesquisa

Assim como em “Descalços pelo Caos”, mais ligado ao apelo estético do surrealismo, observo esta ação como uma tentativa de reconfigurar ou tensionar relações sócio-comunicacionais, como uma maneira de reapropriar-se dos sentidos anestesiados e de vislumbrar possibilidades de inserção nos sistemas informativos de uma cibercidade caótica e desigual.

Por fim, vimos aqui, a partir das descrições, análises, diálogos e observações, como práticas artísticas podem problematizar questões atuais das cidades. Por exemplo, algumas obras de Fulton foram apresentadas em galerias, espaços bem diferentes das que são suportadas e apresentadas as obras de David. No entanto, passa pelos dois artistas o processo de problematizar questões que envolvem o movimento das cidades. No caso de David, há outro contexto de criação e interação do público com suas obras. As memórias espaciais experimentadas são construídas em uma relação direta com um smartphone, que produz uma experiência direta do usuário com um espaço urbano, “cíbrido”, alcançando a dinâmica de um “território informacional”.

Há, portanto, relações muito claras entre usos de aparelhos tecnológicos do cotidiano e formas de fazer arte. Observamos aqui uma vontade de quebrar com os sentidos dos meios estabelecidos, de formular outras consciências para viver a

cidade e enxergar os lugares.

É possível compreender também que entre os dois artistas, por mais que suas obras sejam construídas em espaços e suportes diferentes, exercitando a prática do caminhar como processo, há um contexto de fruição das obras experimentado pelos dois.

Por diversos sites, blogs, vídeos no youtube ou no facebook, os registros de suas obras derivam nos circuitos eletrônicos da internet, em mais outras possibilidades, em outras camadas de interação, refazendo e alterando assim as percepções de cidade que os sujeitos têm em relação às paisagens urbanas. Assim como aponta Beiguelman (2010, p. 87), “os dispositivos passam a constituir extensões conectadas de nossos corpos às redes, “ciborguizando” nossos equipamentos biológicos”.

Nessa “metropoletrônica” atravessada por diversas disputas de poder por meio dos fluxos informacionais (Di Felice, 2010), esse tipo de arte também lida com a novidade, com o dizer de outro jeito, com o “jogar” com a tecnologia de uma forma lúdica. A novidade no uso de aparatos tecnológicos, inclusive, é um limiar que artistas contemporâneos buscam subverter constantemente, contrapondo-se às capturas de mercado da indústria cultural.

Os sujeitos que se movimentam tensionando as relações entre arte e tecnologia estão cotidianamente experimentando, criando ações e ferramentas que também se tornam novidades e mercadoria industrializada na vida social e até no próprio campo da arte.

Embora seja uma questão delicada, muitos trabalhos podem ser considerados apenas meros desenvolvimentos de técnicas e tecnologias e não possuem nenhuma consistência artística. É na materialização de suas operações sensíveis, muitas vezes, que os artistas introduzem ao social essas ferramentas como outras possibilidades de vivenciar o espaço urbano.