• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III – TIRÉSIAS LITERÁRIO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura em geral transformou-se em um campo vasto para as análises históricas de variadas temáticas como representações, relações de gênero e o cotidiano das cidades. O autor explicita por meio de sua obra as mais diversas visões de um dado momento num movimento contínuo de antecipação, avaliação e representação social: “A literatura exprime, re-reapresenta, presentifica, singulariza, enxerga com olhos novos ou renovados os objetos da percepção, ilumina os seus múltiplos perfis e desentranha e combina as fantasias do sujeito.”303

A criação artística é sempre uma necessidade do ser humano de expor os sentimentos, valores e experiências culturais partilhadas por um determinado grupo em um determinado período. Virginia Woolf foi, no início do século XX, uma das autoras mais importantes não apenas como expoente do movimento modernista, mas como voz consciente da situação social em que viviam as mulheres e como os padrões e valores do período podavam a liberdade do indivíduo. Tal condição é denotada não apenas por sua obra, mas também por sua participação no círculo de Bloomsbury pois é um dos indicativos dessa voz que fala de um lugar específico com visões partilhadas por determinado grupo. Sua fortuna crítica é prolífica, mas a grande maioria se concentra na área de crítica literária, o que possibilita enfoques na História.

Apesar do olhar da autora sobre a condição da mulher no início do século XX ser bastante expressivo, foi necessário no processo desta pesquisa estabelecer uma delimitação temática, tendo em vista a diversidade temática da obra, possibilitando diversos enfoques, tais como: relação com o tempo e a grande História, os quais, percorrem toda a obra, seja no tratamento cronológico, seja no estrutural. Assim, foi priorizado o eixo temático que abarca o gênero e as representações femininas, considerando as relações sociais que constroem as identidades.

Com as leituras e processo analítico da fonte e fundamentações teóricas, o escopo do trabalho se constitui e assim “os rastros” deixados pela autora na composição da história, levando-se em consideração fatores como o momento social que vivia, os ideais que defendia e as referências que faz.

A obra de Virginia Woolf costuma abordar temas que vão desde a posição social e intelectual da mulher e suas relações em sociedade à defesa da androginia como a forma mais completa de equilíbrio do ser humano. A autora, enquanto uma observadora de sua época, buscava defender a ideia de uma sociedade que permitisse que o ser humano em geral, e a mulher em particular, pudesse se se reafirmar enquanto indivíduo. E para tal, o questionamento da ideia de identidade e gênero se mostra importante no decorrer de suas obras.

Tal abordagem é perceptível na obra escolhida, Orlando: uma biografia (1928), lançada no período entreguerras, marcado pelo avanço econômico e político das grandes potências e também pelo estremecimento de padrões sociais o que levou a uma reflexão acerca das relações de gênero postas como imutáveis e como as identidades são construídas socialmente e colocam homens e mulheres em patamares diferentes.

As diversas referências teóricas deste trabalho buscam embasar não apenas a representação feminina na obra da autora, mas também questões de gênero e comportamento das diversas relações e estigmas sociais sofridos pela mulher no início do século passado por meio de análise da obra, levando-se em consideração o fato de que a produção de Virginia Woolf oferece uma gama de análises sobre o cotidiano do início do século XX, abarcando questões referentes às representações sociais, subjetividades, o tempo e o papel da arte em sociedade.

A pesquisa propôs-se a analisar a obra verificando suas relações com o período em que foi produzida e observou-se seu constante questionamento às estruturas que dividem ambos os sexos em compartimentos rígidos e mantém principalmente a mulher como um indivíduo de segunda classe não apenas socialmente, mas intelectualmente também. Daí advém a constante defesa de uma emancipação intelectual feminina.

Tornou-se necessário também a análise da constituição do romance e seu período de maior ascensão, o século XIX, além da relação que a autora, por ser londrina e integrar o prestigioso grupo de Bloomsbury, estabelece com a sociedade que integra, sendo possível perceber suas críticas às formas históricas, biográficas e literárias estabelecidas.

Assim, a autora constrói Orlando para desordenar ordens sociais postas. Os papéis sociais são com certeza elementos importantes dentro da estrutura da sociedade. E sua fixação se dá de variadas maneiras, reforçados pelo meio (em que “ser homem” e “ser mulher” é delimitado por um conjunto de ações pré-estabelecidas) e qualquer sinal de desvio é considerado problemático. Neste “jogo de faz de conta” social, as mulheres são as

personagens que há mais tempo precisam lidar com as pressões da cristalização de suas possibilidades sociais. Impedidas de efetivamente participarem do mundo público durante muito tempo, elas se constituem um ponto de constante embate pelo controle, pois

[...] sobre as mulheres muito pouco se sabe. A história da Inglaterra é a história da linha masculina, não feminina. De nossos pais sempre sabemos alguma coisa, um fato, uma distinção [...] Mas de nossas mães, nossas avós, de nossas bisavós, o que resta; [...] nada sabemos sobre elas, a não ser seus nomes, as datas de seus casamentos e o número de filhos que tiveram.304

Virginia Woolf constrói Orlando para subverter as ordens do jogo. Não apenas inscrever a mulher na história, mas de dar uma voz a ela. Para advogar mais direitos às mulheres, Woolf não se contenta em apenas transformar Orlando em mulher, ela desorganiza também as lógicas sociais que podiam transformá-la em uma aberração e a insere no mundo social lidando com diversos personagens que também subvertem essa lógica e com setores que não patologizam sua condição, mas que entram em uma disputa por sua representação.

A pluralidade de representações da mulher305 indica uma pluralidade de discursos vigentes à época. A mulher que se avulta no início do século XX é uma mulher que busca a independência e a expansão de suas possibilidades sociais em vista das gerações anteriores. Sua entrada no mercado de trabalho, suas novas possibilidade de consumo e mobilidade a colocaram como uma das figuras centrais nos embates discursivos sobre as mudanças dos padrões.

A normatização dos gêneros inscreve os corpos em territórios fixos e imutáveis, não permitindo espaço para a mudança de nenhum tipo. Porém, a existência de outras identidades de gênero e a expressão dessas identidades forçam a reflexão sobre as fronteiras de gênero. A condição humana é algo que sempre interessou à sociedade e o andrógino Orlando é uma figura que surge em uma época em que as fronteiras de gênero eram muito bem delimitadas.

304 WOOLF, Virginia. O valor do riso e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p.271. 305

As mulheres propostas por Virginia Woolf encarnam diversos tipos burgueses da época. Clarissa Dalloway se mostra uma fútil dona de casa da década de 20, casada com um importante político. A crítica embutida nesta personagem fica evidente: as frivolidades às quais as mulheres estavam sujeitas para manter as aparências. Sra. Ramsay é a personificação do anjo do lar, abnegada ao extremo, suporta as atitudes “vampirescas” do marido e a constante preocupação com o cuidado dos filhos, fora os trabalhos filantrópicos. Ambos os tipos, porém, revelam tipos bastante comuns para a época: seja a elegante socialite ocupada em um mundo de aparências ou a dedicada dona de casa. Estas eram visões em alta e que ainda persistiriam por muito tempo no imaginário social, principalmente em um momento em que a figura da mulher domesticada começava a ruir.

Ao questionar essas fronteiras, a autora questiona a própria constituição da sociedade, seus valores e, por fim, questiona a própria constituição do indivíduo.

Um tema tão deslocado da tradição como a mudança de sexo da personagem leva a reflexão não apenas sobre as novas possibilidades literárias, mas também a uma reflexão a respeito das novas possibilidades sociais entre elas a visibilidade da mulher e antecipando inclusive debates sobre o gênero. A presença feminina começa a se fazer sentir em setores que antes eram exclusivos, como a literatura e isso gerou um movimento de repulsa.306

Foi possível observar no decorrer deste trabalho as implicações geradas pelas transformações do início do século XX que impeliam os indivíduos a novos paradigmas. Pensar no papel do homem e da mulher em sociedade é, antes de tudo, pensar nas estruturas nas quais estão inseridos, que os conformam a determinados padrões. Padrões estes que são reforçados por diversas frentes: médica, política, social, econômica, religiosa etc. São elas que reforçam modelos e repelem o indesejado. Porém, todos estes paradigmas podem e devem ser reavaliados pela arte. Ela tem poder de perpetuar e redesenhar arquétipos e, portanto, ao observar a obra de arte pode-se entrar em contato com múltiplas possibilidades de olhar para uma época ou um grupo.

A percepção do tempo e como ele pode parecer se esticar ou se encolher de acordo com o que é pensado dentro da mente também foi trabalhado pela autora. A mente alargaria ou estreitaria a duração do tempo. As experiências de Orlando foram tantas que, corporalmente para ela não se passaram tantos anos, quando em verdade percorreu três séculos. Suas experiências dilataram o tempo externo, enquanto o interno permanecera quase o mesmo.

O romance possui algumas indicações temporais: sabe-se que se inicia durante o reinado de Elizabeth I e em determinados pontos há a menção de datas, personalidades intelectuais e artísticas e de passagem de séculos. A imprecisão temporal leva o leitor a não perceber a passagem do tempo e não estranhar a imutabilidade do personagem que apesar de todos os séculos que vive, fisicamente sua mudança é muito pouca. Além disso a estrutura faz dialogar tempos distintos: o do narrador (então situado no “presente” de 1928) e o de Orlando (que se inicia em 1685 e chega até o tempo do narrador).

306 Basta observarmos o ódio descrito no livro que o autor Alexander Pope havia ficado com a possível falta de respeito de Orlando, que se sentia entediada na companhia dos grandes autores quando ela mesmo queria escrever. Ele revela um despeito bastante comum com o qual escritores homens, de muita ou pouca fama, se referiam às mulheres escritoras de meados do século XIX, que ocupavam cada vez mais espaço nas preferências leitoras do período vitoriano.

Woolf colocou o amor pela literatura em Orlando como uma condição que ultrapassa barreiras de gênero, tempo e espaço. Por isso mesmo é a literatura que caminha por toda a obra junto com a personagem em três séculos de história. Aqui percebemos que apenas a arte é o que fica dos tempos passados. A defesa da permanência da arte é constante, pois dos grandes feitos, grandes homens e eventos, apenas o que legaram é o que fica e a arte é a forma de transmissão da história mais duradoura.

O diálogo entre a fonte e outras obras da autora que pudessem dar sustentação ao seu ponto de vista possibilitou uma análise e reflexão dos dogmas postos com relação ao gênero e posição da mulher no início do século XX. Ainda assim, a dissertação não esgotou suas possibilidades de análise, como um aprofundamento sobre a questão da identidade de gênero e a temporalidade na obra.

Após análise da obra e escrita da pesquisa é possível observar as implicações sociais geradas pelas transformações do início do século XX e verificarmos a importância da autora como uma porta voz dos direitos das mulheres e da constituição de uma sociedade que aceite a pluralidade das identidades, não encerrando as existências em formas únicas e cristalizadas.