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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP. Juliana de Lima França

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP

Juliana de Lima França

“Lady Orlando”:

Tirésias literário e a representação feminina na obra de Virginia Woolf

Mestrado em História Social

São Paulo 2019

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP

Juliana de Lima França

“Lady Orlando”:

Tirésias literário e a representação feminina na obra de Virginia Woolf

Mestrado em História Social

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em História Social, sob a orientação da Professora Doutora Yvone Dias Avelino.

São Paulo 2019

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Banca Examinadora

________________________________________________

________________________________________________

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Código de financiamento 001.

Número do processo: 88887.148490/2017-00

This study was financed in part by Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Finance code 001.

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Drª Yvone Dias Avelino, pela imensa paciência com minhas procrastinações e incertezas, por sua inteligência e sensibilidade, que me incentivaram até o fim. Este trabalho é, em grande parte, meu desejo em não lhe decepcionar.

Aos professores Drª Olga Brites, Drª Maria do Rosário Cunha Peixoto, Drª Estefânia Knotz Canguçu Fraga, Drº Amaílton Magno Azevedo, pelas valiosas contribuições no decorrer das disciplinas e apoio à pesquisa.

Ao PEPGH da PUC, sem o qual este trabalho e tudo que decorreu dele não teria sido possível.

Aos colegas de curso com quem tive o prazer de aprender muito e dividir as angústias do processo, obrigada.

À Drª Olga Brittes e à Drª Sandra Colucci, pelas contribuições inestimáveis para a redação da dissertação durante o processo de qualificação.

À CAPES, pela bolsa de estudo oferecida durante a pesquisa. À equipe Kazigu Editoração.

Além dos agradecimentos institucionais, quero agradecer a meus pais, Rosane e João, sem os quais eu não teria chegado tão longe. Sua dedicação a mim é o que fez possível aflorar minhas melhores qualidades. Sem vocês não conseguiria ter a resiliência suficiente para passar por este processo. À minha irmã Taciana, com quem aprendi a conviver e dividir e que me deu duas joias: Karla e Rafaela. À minha irmã Ana Rosa, que, mesmo distante, forma conosco a casa das mulheres fortes, também me presentou com Gael, minha terceira joia de amor. Meu amor por vocês é inefável.

Ao Edson, meu companheiro e amigo que confiou em mim mais do que eu mesma, aturou minhas crises e me consolou em todos os momentos. Suas leituras, apontamentos, puxões de orelha, amor e compreensão me salvaram inúmeras vezes. Eu te amo.

À minha querida amiga Gisele, com quem divido há mais de uma década as aventuras do mundo acadêmico e dos dias estranhos que nos alcançam.

Às minhas pequeninas “amoras” Arlene e Fernanda, com quem compartilho desde a adolescência sonhos, medos e alegrias. Ainda ter vocês caminhando comigo, mesmo que distantes, depois de tantos anos me faz imensamente feliz.

Às minhas queridas Elenir, Melody, Sônia, Nágila e Iara, que não dividem comigo apenas a profissão, mas também trajetórias, amizade e carinho.

À equipe gestora da EMEF Dep. José Blota Junior, pela compreensão e apoio.

A Deus, ou qualquer que seja o nome dessa força cósmica que nos envolve e nos guia.

(7)

“Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma. Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é”

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RESUMO

FRANÇA, Juliana de Lima. “Lady Orlando”: Tirésias literário e representação feminina na obra de Virginia Woolf. Dissertação (Mestrado em História Social), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.

Esta dissertação investiga a obra de Virginia Woolf e suas relações com as múltiplas identidades de gênero e representação feminina no início do século XX. A pesquisa teve como fonte primordial o romance Orlando, publicado em 1928, cujo enredo de um protagonista que muda de sexo no meio da história torna visível a temática do deslocamento da identidade e posição da mulher em sociedade. A análise está organizada em três capítulos. No primeiro, busca-se um diálogo entre a História e a Literatura e como a autora usa de artifícios próprios da biografia no romance para subverter ambos, além da relação entre o autor, obra e período, que se dá numa trama complexa. Em seguida, discute-se a representação feminina na obra e como a autora advoga pela igualdade de direitos e pela emancipação intelectual das mulheres. E, por fim, discute-se as noções de identidade e gênero construídas socialmente. Outras questões abordadas são a performatividade presente na obra e como as roupas desempenham um papel importante na constituição do devir do sujeito.

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ABSTRACT

FRANÇA, Juliana de Lima França. “Lady Orlando”: Literary Tiresias and female representation in the work of Virginia Woolf. Dissertation (Master Degree in Social History) Pontifical Catholic University, São Paulo, 2019.

This dissertation investigates the work of Virginia Woolf and her relationships with the multiple identities of gender and feminine representation in the early twentieth century. The research has as main source the novel Orlando, published in 1928, whose plot of a protagonist who changes sex in the middle of history, makes visible the thematic of the displacement of the identity and position of woman in society. The analysis is organized into three chapters. In the first one, a dialogue is sought between History and Literature and how the author uses the artifice of the biography in the novel to subvert both, as well as the relationship between the author, work and period, which occurs in a complex plot. Next, the feminine representation in the work is discussed and how the author advocates for the equality of rights and for the intellectual emancipation of women. And finally, it is discussed the socially built notions of identity and gender. Other issues adressed are the performativity present in the work and how clothes play an important role in the constitution of the becoming of the individual.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...12

CAPÍTULO I – O TEMPO E A PALAVRA... 22 1.1 O HISTORIADOR E A OBRA LITERÁRIA: ENTRELAÇANDO HISTÓRIAS.... 22 1.1.1 Um biógrafo “solto”...26 1.1.2 “Tarefa difícil, essa de cronometrar o tempo”... 29 1.2 O ADVENTO DA ERA VITORIANA E A CONSOLIDAÇÃO DO ROMANCE COMO GÊNERO LITERÁRIO BURGUÊS... 32

1.2.1 Tempos modernos - “O encanto da Londres moderna é ser construída não para durar, mas para passar”... 32 1.2.2 Tempos retrógrados: o advento da Era Vitoriana e a consolidação do

romance como expressão burguesa... 39 1.3 ESBOÇOS DA SOCIEDADE: O PÊNDULO DA ESCRITA... 44

CAPÍTULO II – MATANDO O ANJO DA CASA – A MULHER EXISTE...55 2.1 “SE EU NÃO A MATASSE, ELA ME MATARIA” - A MULHER EM BUSCA DE UM ESPAÇO... 55 2.2 COLIDINDO ENTRE AS PEDRAS: A MULHER IMAGINADA E A DONA DA HISTÓRIA... 68 2.3 QUEM TEM MEDO DAS MULHERES? – ADVOGANDO PELO DIREITO DE EXISTIR... 77

CAPÍTULO III – TIRÉSIAS LITERÁRIO... 85 3.1 “UMA MULHER, MAS UM MILHÃO DE OUTRAS COISAS, TAMBÉM”... 85 3.2 CONVOCANDO ORLANDOS: A PERFORMATIVIDADE NA OBRA

DE WOOLF... 98 3.3 “SÃO AS ROUPAS QUE NOS VESTEM E NÃO NÓS A ELAS”: O PAPEL

DO VESTUÁRIO NA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES... 102

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 114

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Representação de Orlando quando menino. “Honorável Edward Sackville”, pintura a óleo, por Cornelius Nuie, 1637... 103

Figura 2 – Representação da arquiduquesa Harriet. “Mary Curzon”, pintura a óleo, por Marcus Gheeraerts, o Jovem, c. 1605... 106

Figura 3 – Representação de Orlando quando embaixador. “Richard Sackville”, quinto conde de Dorset, pintura a óleo, por Robert Walker, [16--]... 108

Figura 4 – Representação de Orlando quando do regresso à Inglaterra. “Vita Sackville- West”, fotografada por Lenare, 2 nov. 1927... 109

Figura 5 – Representação de Orlando na época da narrativa. “Vita Sackville-West” em Long Barn, em fotografia atribuída a Leonard Woolf, 29 abr. 1928... 112

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APRESENTAÇÃO

Basta-nos estabelecer o simples fato de que Orlando foi homem até os trinta anos, ocasião em que se tornou mulher, assim permanecendo desde então.1

É com esta simplicidade e leveza que a autora Virginia Woolf nos narra a mudança de sexo de sua personagem principal, Orlando, da biografia ficcional homônima de 1928. A obra, uma homenagem Vita Sackville-West, figura importante em sua vida, é ao mesmo tempo uma obra irreverente e instigante.

Virginia sempre foi uma defensora dos direitos das mulheres. Sua obra reverbera esse pensamento em diversos momentos. O livro pleiteia novas formas de ser e viver para a mulher da época. Um livro em que uma personagem muda de sexo e ainda mantem características intactas é uma empreitada desafiadora poucas vezes vista em uma autora da época.

O presente trabalho busca reconhecer as visões sobre o que era ser mulher na época e as formas de regulação dos gêneros e como a autora aborda estas questões. A mulher da década de 20 vivia em um mundo dilacerado pelo pós-guerra e em uma crise econômica e social que já atribulava Estados Unidos e Europa de maneira jamais vista. Os espaços para excluir as mulheres começavam a se estreitar de acordo com as novas ordens sociais vigentes e a sociedade britânica, que já não era mais a mesma, dava sinais de que se modificaria ainda mais nos anos subsequentes.

Os imensos impérios coloniais erguidos durante a Era do Império foram abalados e ruíram em pó. Toda história do imperialismo moderno, tão firme e autoconfiante quando da morte da rainha Vitória, da Grã-Bretanha, não durara mais que o tempo de uma vida humana [...]2

Dentro deste panorama, as mudanças sociais se avultavam sobre o período, mudando a face das relações humanas e oferecendo às mulheres, até então relegadas ao papel de “anjo

1 WOOLF, Virginia. Orlando: uma biografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.93.

2 HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos - O breve século XX - 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.16.

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do lar”3, a oportunidade de se inserirem definitivamente na esfera pública e granjeassem direitos até então omitidos a elas.

A presença feminina na História tem sido um ponto bastante discutido na historiografia recente. Perrot ressalta que o desenvolvimento dessa história das mulheres alia-se ao “movimento” rumo à independência e à liberação4 das mesmas. E a possibilidade de estudá-la dentro dos movimentos artísticos, como o modernismo, alarga o horizonte dos novos estudos históricos. A literatura tem por excelência a capacidade de encapsular em uma obra não apenas a visão de um artista sobre o tempo em que vivia, mas também de deixar entrever aquilo que ele não previa expor, pois “a arte não reproduz a realidade exterior, mas a transforma, exprimindo o que nela está reprimido ou latente”5

.

A autora Virginia Woolf deixou um vasto legado de obras repletas de representações de diversos tipos sociais que se apresentavam na Inglaterra de então, abrindo assim possibilidades de analisar suas obras de maneira a conseguirmos recuperar estas representações nelas presentes.6

Como fonte primordial desta pesquisa, a obra escolhida foi “Orlando: uma

biografia”. Lançada em 1928, é uma biografia ficcional de um jovem nobre inglês que,

aparentemente imortal, troca de sexo e passa a experimentar vivências a partir da ótica feminina. Em Orlando, a autora brinca com as convenções da escrita biográfica e do romance. A personagem principal trapaceia todas as limitações possíveis. É homem no final do século XVI, apaixona-se por mulheres, torna-se embaixador em Constantinopla, onde em meio a uma revolta local muda de sexo sem nenhuma explicação plausível e passa a viver como tal desde então, sendo cortejada por nobres, sentindo-se sufocada pelas exigências de seu sexo, até casar e ter um filho. Tudo isso percorrendo mais de trezentos anos de história britânica e

3

Referência ao poema de Coventry Patmore (1823-1896) em que a vida doméstica é idealizada por meio de exaltação das qualidades de uma boa esposa, entre elas a afabilidade para com o esposo. Virgínia Woolf tece críticas a essa figura em seu artigo “Profissões para Mulheres”. Ver: WOOLF, Virginia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre: L&PM, 2012.

4

PERROT, Michelle. Minha História das mulheres. São Paulo: Contexto, 2013, p.15.

5 AVELINO, Yvone Dias. Os labirintos da arte de narrar: história e literatura. In: CARVALHO, Alex Moreira; FLÓRIO, Marcelo; AVELINO, Yvone Dias (Orgs.). História, cotidiano e linguagens. São Paulo: Expressão & Arte, 2012, p.250.

6

Em suas obras podemos encontrar diferentes tipos que circulavam na Inglaterra no período em que viveu. Um de seus romances mais conhecidos, Mrs. Dalloway, apresenta diferentes personagens e suas nuances no contexto pós-guerra. De Septimus Smith, um ex-soldado traumatizado pela Primeira Guerra a Clarissa Dalloway, uma socialite enredada pelas exigências da época, casada com um influente político. Outras personagens que nos mostram a mulher inglesa da época e suas características incluem Rachel Vinrace (The Voyage Out), Katharine Hilbery, Mary Datchet (Night and Day) e Sra. Ramsay (To the Lighthouse). Todas elas revelam camadas do que é ser mulher, suas inconstâncias, sua condição social etc.

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pontuada por sua incessante paixão pela literatura e desejo de tornar-se conhecida. Além do livro, fontes secundárias como “Um teto todo seu”7 e biografias sobre a autora fornecem informações básicas sobre seu modo de pensar, escrever e viver.

É importante compreendermos a obra à luz da época em que foi concebida. Durante a década de 20, as mulheres ainda lutavam pelo direito de votar e serem elegíveis, sofrendo uma resistência recrudescida em uma sociedade que ainda tentava fazê-la voltar para o ambiente doméstico, mesmo após os acontecimentos da década anterior, que já haviam transformado a sociedade ocidental.

Esta pesquisa foi idealizada durante o curso de pós-graduação lato sensu entre 2014 e 2016, em que pude perceber diversos objetos de estudo histórico. Sendo oriunda da área de Letras, pesquisar a Literatura sempre foi de grande interesse, e relacioná-la com a História é movimento comum nos trabalhos de crítica literária. O olhar interdisciplinar que a oportunidade de pesquisa oferece me interessou de imediato.

A autora Virginia Woolf figura entre uma das maiores escritoras do século XX e entre suas marcas estéticas estão a utilização de técnicas como o fluxo de consciência e o lirismo patente, além de uma constante exploração da condição humana e retratos do período em que viveu, bem como críticas referentes à sociedade inglesa. Assim sendo, Orlando é um clássico indiscutível da literatura, pois seu enredo inusitado faz antever questões que permearam as discussões sociais ligadas ao gênero e aos direitos das mulheres em anos seguintes.

Os clássicos são aqueles livros que chegam até nos trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).8

O período estudado é o início do século XX, com todas as ebulições9 que transformavam a Europa, precisamente a década de 20 e especificamente o ano do lançamento do livro 1928, a fim de que se possa vislumbrar o que a época oferecia em termos sociais, políticos econômicos e artísticos. E como isso pode ter reverberado na escrita da autora.

7

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014. 8

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

9 As tensões causadas pela Primeira Guerra e a Revolução Russa mudaram para sempre as estruturas sociais até então conhecidas. A década de 20 vivenciou um aumento da prosperidade e das tensões políticas e econômicas que culminaram na Segunda Guerra.

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Entre as indagações que norteiam este trabalho estão: Qual a importância da autora para o período? Como Orlando se insere na problemática da representação feminina? Qual sua importância para a escrita das mulheres? Como os papeis de gênero são trabalhados dentro da obra?

A década de 20 compreende o período entre guerras. A Europa estava ainda se recuperando estragos causados pela Primeira Guerra e o mundo assistia os Estados Unidos se consolidar como potência nos anos 20. As transformações desencadeadas pelo conflito mudaram a sociedade britânica, diretamente relacionada no conflito, não apenas no que diz respeito à política e economia, mas também com relação a valores sociais e comportamentais. A arte no início do século XX passava por mudanças ao compasso das mudanças sociais vigentes. Foi um dos períodos de maiores mudanças nos padrões artísticos e na evolução da forma de se fazer arte, com o advento da câmera e do cinema.

A Primeira Guerra Mundial pôs por terra padrões estéticos vigentes, fazendo entrever novas formas de perceber e produzir a arte. As vanguardas artísticas10 adquiriram tons mais politizados e sua penetração na vida cotidiana se tornou mais acentuada. O dadaísmo e surrealismo11 nas artes plásticas predominavam, rompendo com formalismos do “desacreditado mundo pré-guerra”12

.

O cinema começava a se desenvolver e os primeiros filmes mudos já faziam sucesso e sua utilização como forma de propaganda também começava a crescer. Na música, o jazz adquiriu força como um símbolo da modernidade e da ruptura com o passado que deveria ser esquecido.13

10

Vanguardas artísticas são os movimentos que produzem novas formas de produzir e apreciar a arte. São marcadas pela ruptura com formas tradicionais de arte em voga, por exemplo, no início do século XX, o surrealismo, o dadaísmo e o cubismo faziam parte de vanguardas importantes, que depois foram associadas ao modernismo.

11

O dadaísmo e o surrealismo são dois movimentos de vanguarda do início do século XX. O movimento dadaísta, ou dadá, teve início em Zurique, em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial e tinha como mote a arte de protesto, que provocasse os valores estéticos da sociedade burguesa do período. A desordem, ilogicidade das criações, o caos e o uso de objetos que não faziam parte da tradição eram amplamente utilizados. Entre os principais artistas dadaístas estão Tristan Tzara, Max Ernst, Hugo Ball e Marcel Duchamp. Já o surrealismo, nasceu em Paris na década de 1920, como um desdobramento do dadaísmo. Utilizavam como pressupostos estéticos ideias ligadas às concepções de Freud sobre o inconsciente e o mundo dos sonhos e libertação da mente das amarras da razão na criação artística. Tem como principais expoentes Luís Buñuel, Salvador Dalí, Joan Miró e Antonin Artaud.

12 HOSBAWM, Eric. A era dos extremos - O breve século XX - 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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Na música, figuras como Arnold Schöenberg, Igor Stravinsky trouxeram novas sonoridades ao público.14 Nas artes plásticas, Pablo Picasso, Henri Matisse e Piet Mondrian experimentavam novas técnicas15 e arquitetos como Le Corbusier e Frank Lloyd Wright trouxeram para as construções urbanas16, os ideais modernistas.

A literatura via florescer um número formidável de autores com propostas inovadoras para o fazer literário. As ideias de Sigmund Freud sobre a mente, subjetividade, experiência e sexualidade exerciam influência sobre os artistas da época, que viram em suas teorias, embasamento para novas experiências criativas.

Com expoentes como T.S Eliot, Ezra Pound, Marcel Proust, Joseph Conrad, Hilda Doollitle, Marianne Moore, Franz Kafka, William Faulkner entre outros, a literatura do início do século se mostrava vigorosa e propícia às diversas experimentações.

No período, James Joyce17 lançava obras como Dublinenses (1914), Retrato do

artista quando jovem (1916) e o monumental Ulysses (1922), um clássico inquestionável do

século XX. Usando técnicas diversas e especialmente o “fluxo de consciência”18, Joyce garantiu seu lugar entre os maiores escritores do século XX.

A própria Virginia, dona e editora da Hogarth Press19, teve a oportunidade de lançar os livros de Freud e o estudou com grande interesse, divergindo de sua teoria falocêntrica, afirmando que as mulheres não eram inferiores por alguma superioridade masculina, mas sim pelo fato de serem mantidas à margem da sociedade desde tempos remotos.20

14 Entre as novas sonoridades estavam o dodecafonismo, surgido na década de 20 como uma resposta à crise da tonalidade, era um sistema de composição atonal composto de 12 sons com igual importância.

15 Matisse foi um dos expoentes do fauvismo (escola artística em que as livres pinceladas e as cores vibrantes tinha papel essencial na expressão), Mondrian criou o movimento artístico neoplasticismo, que estava relacionado à arte abstrata e Picasso foi um dos pintores mais expressivos do cubismo.

16 Le Corbusier e Frank Lloyd Wright eram arquitetos das escolas francesa e anglo-saxônica americana de teorias da cidade. As duas escolas tinhas modelos diferentes para o urbanismo: a francesa priorizava um modelo progressista, privilegiando a racionalidade das formas e a dimensão espacial da cidade. Já a escola anglo-saxônica americana valorizava o modelo naturalista, buscando submeter a cidade à natureza, conformando as formas arquitetônicas ao espaço. Para Le Corbusier, o espaço deveria permitir habitar, circular e se divertir, com linhas simples e arejado, entre suas realizações mais conhecidas está a Villa Savoye, na França. Frank Lloyd Wright, criador do conceito de arquitetura orgânica, ressaltava a integração entre espaço e natureza, entre seus trabalhos mais conhecidos estão o Museu Guggenheim e a Casa da Cascata.

17 Romancista irlandês (1882-1941), considerado um dos maiores expoentes do modernismo literário do século XX.

18

Termo derivado da psicologia, cunhado pela primeira vez por William James em seu livro “Princípios de Psicologia” (1890), que designa os processos pelos quais passam a mente na atividade de organizar continuamente os pensamentos. O termo foi apropriado pela criação literária para designar a técnica narrativa que tenta captar o processo mental das personagens sem mediações do narrador.

19

A Hogarth Press, fundada em 1917 pelo casal Woolf, publicou, além das diversas obras da autora, obras de Dostoiévski, T. S. Eliot e parte da obra de Sigmund Freud.

20 LEÃO, Sonia Carneiro. Apresentação à edição brasileira. In: MANNONI, Maud. Elas não sabem o que dizem: Virginia Woolf, as mulheres e a psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

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Também adepta da técnica do fluxo de consciência, Woolf colocou em suas obras diversos pontos de vista de seus personagens, cujas percepções jorravam na história em correntes contínuas e densas. O tempo interno e o tempo externo andam em compassos diferentes, garantindo a obras como Mrs. Dalloway (1925) e Rumo ao Farol (1927) características inovadoras21 que estavam em consonância com as experimentações criativas de artistas do período.

As concepções artísticas de Virginia, em parte, tinham relação com seu círculo privilegiado de amigos, com os quais integrava o prestigioso Grupo de Bloomsbury. Intelectuais de diversas áreas que se reuniram entre 1905 e o final da Segunda Guerra. O grupo reunia-se frequentemente na residência dos irmãos Stephen22 para discutir questões estéticas, filosóficas, literárias e sociais.

O grupo era composto por figuras variadas de campos diversos. Nas artes plásticas destacavam-se os pintores Roger Fry, Duncan Grant, o crítico de arte Clive Bell, casado com Vanessa Bell, pintora e irmã da autora, Desmond McCarthy, jornalista literário, o escritor E. M. Forster, o biógrafo Lytton Strachey, o economista John Maynard Keynes, além de Leonard Woolf, ensaísta, editor e, posteriormente, marido de Virginia Woolf.

Esses encontros ao longo dos anos influenciaram na escrita da autora, que viria a se tornar um dos expoentes do movimento modernista inglês. As discussões sobre a natureza da arte e seu papel social eram comuns e entre os valores exaltados pelo grupo estavam “a não opressão de classe, gênero e etnia em prol da emancipação da mulher, assim como promovia a liberdade de expressão”23.

As obras de Virginia nos trazem diversas representações sociais. Do mundo masculino dominante ao feminino crítico a essa dominação. A autora se utiliza de suas obras para discutir pontos em voga na época, e explicitar sua opinião a respeito. Em Orlando, aborda questões que ainda são muito discutidas no movimento feminista, como a condição social e econômica da mulher, além das dicotomias entre os sexos. Expressa o desejo de colocar as mulheres em outra posição social, aceitas como seres que podem participar da vida coletiva com a mesma expressividade dos homens.

21 Woolf é largamente conhecida pela utilização da técnica do fluxo de consciência. Passagens cotidianas se diluem na corrente contínua do pensamento dos personagens, um experimentalismo nas formas bastante característico, além da quebra do tempo cronológico tradicional.

22

Antes de se casar, Virginia Woolf era Virginia Adeline Stephen e juntamente com seus irmãos, se mudaram do bairro de Kensington para Bloomsbury em 1905, após o falecimento do pai, Leslie Stephen, em 1904.

23 GELINSKI, Rosana de Fátima. O feminismo em Orlando e Mrs. Dalloway pelo prisma de Bloomsbury. Uniletras. Ponta Grossa, v. 33, n. 2, 2011, p.302.

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A pesquisa se estabeleceu nas leituras das fontes, anotações e considerações sobre história cultural, representações sociais e literatura. Este trabalho pendular de investigação entre fonte e arcabouço teórico possibilita uma compreensão mais ampla da obra na conjuntura em que foi escrita.

Burke24 já preconizava que novos modelos de análise podem e devem ser incorporados ao desenvolvimento dos estudos históricos, pois nos fornecem informações importantes tanto sobre os fatos sociais de determinados períodos como sobre as mentalidades que os permeavam. Portanto, esta pesquisa visa uma articulação entre os estudos de história cultural e literatura.

Chartier25 coloca em debate o conceito de representações do mundo social, problematizando as intencionalidades de quem produz os discursos e defendendo que nas “lutas de representações” não existe neutralidade, tanto quanto nos conflitos econômicos. Para o autor, a construção de representações26 é um campo de batalha no qual também podem ser estabelecidas relações de dominância por determinados grupos, de modo a imporem suas perspectivas. Assim sendo, a importância de se verificar a intencionalidade da escrita de Virginia Woolf se faz necessária aos propósitos da pesquisa. Afinal, todo autor está também representando um “papel social”27, dentro de determinado círculo ao qual pertence.

Raymond Williams28 se mostra essencial aos propósitos deste trabalho, tendo em vista suas considerações sobre Cultura e sociedade, além do fato de uma obra literária pode ser vista como um produto inerente das estruturas sociais que a faz possível, ligada à experiencias do imaginário.

Deve-se ter em mente que as relações presentes na obra se mostram nas representações que chegam até nós e que devemos verificar quais os fatores externos à obra devem ser considerados para analisar sua estrutura. Essa dimensão representativa29 precisa ser focalizada, sem perdermos de vista que a obra não pode ser vista apenas como um reflexo. Ela representa, também acrescenta à realidade existente.

24 BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992.

25 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. São Paulo/Lisboa: Bertand Brasil/Difel, 1990.

26 Representação entendida como a relação que se estabelece entre uma imagem presente e um objeto ausente. O objeto representado, ou o passado, no caso da História, não está presente para que se possa haver parâmetro, portanto, todo relato histórico é uma disputa por prevalência do discurso.

27

CANDIDO, A. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.

28 WILLIAMS, Raymond. A produção social da escrita. 1ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2014. 29 BOSI, A. Entre a História e a Literatura. São Paulo: Editora 34, 2015.

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Sendo a experiência um ponto importante para a análise da obra, recorre-se a E.P Thompson30 e suas considerações sobre o conceito de experiência, pois sendo Orlando um livro em que as experiências vivenciadas são parte importante para a compreensão do imaginário e das estruturas, é fundamental que estabeleçamos como essas relações se dão.

Para que o trabalho possua uma linha coesa, os capítulos se estabeleceram de forma a pensarmos algumas problemáticas. No primeiro capítulo “O Tempo e a Palavra”, abordam-se questões sobre História e Literatura enquanto relação que possibilita novas leituras da sociedade, a estrutura narrativa e temporal da obra, além da consolidação do romance como estilo burguês por excelência e como a experiência do autor possui importância na construção de uma obra literária.

No segundo capítulo “Matando o anjo da casa”, procura-se estabelecer as relações entre a obra e uma tentativa da autora de advogar novas formas de se posicionar para as mulheres. Como uma mulher intelectual de família abastada, Virginia Woolf tinha mais mobilidade social, porém sua obra nos faz perceber o quanto estava interessada em disseminar essa mobilidade para demais mulheres. Para tal, a autora defende a independência econômica da mulher, pois somente com recursos próprios, ela pode se impor e, consequentemente, escrever com autonomia.

No terceiro capítulo “Tirésias literário”, aborda-se a trajetória da personagem Orlando e sua transformação, além de outros personagens que agem como um caleidoscópio de representações sociais dos gêneros, constituindo múltiplas identidades numa defesa da androginia como a idealização das possibilidades humanas.

A presente pesquisa preocupou-se primordialmente com questões voltadas para a representação feminina numa obra específica e como a questão do gênero e da identidade se dá em sua extensão. Obviamente outras questões foram se apresentando ao decorrer da pesquisa. Atento aqui especificamente para uma das mais fascinantes: o tempo. O tempo em Orlando é complexo e rompe com padrões. Percorre mais de trezentos anos de história da Inglaterra ao mesmo tempo que faz sua heroína viver fisicamente apenas 36. É aparentemente imortal, mas não é nenhum ser mitológico, não há nenhum outro acontecimento absurdo (à parte da mudança de sexo) que explique esta imortalidade e a naturalidade com que é enfrentada por Orlando e demais personagens secundários.

30 THOMPSON, E.P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

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O objetivo principal deste trabalho está em demonstrar como a autora se utiliza do romance para subverter elementos próprios do discurso literário e da história e como, por meio dessa sátira, discute questões importantes da atualidade como identidade de gênero, representatividade feminina e até mesmo o papel fundamental das roupas na perpetuação de modos de encarar o mundo.

Na obra, a autora defende a androginia como a possibilidade para o ser humano de vivenciar múltiplas experiências e de que ninguém deve estar preso a um corpo para realizar-se. Não apenas Orlando é Tirésias literário, ela é o desejo de Woolf inserir a mulher no curso da longa história.

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Este capítulo pretende discutir as relações entre história e literatura, e como a obra entrelaça elementos históricos /biográfico com o mundo ficcional. Para tal, investigam-se os percursos dessas relações, a consolidação do romance como gênero representativo da burguesia, a configuração do espaço no romance e a importância do autor como elo importante da expressão e reavaliação do momento em que a obra é produzida.

1.1 O HISTORIADOR E A OBRA LITERÁRIA: ENTRELAÇANDO HISTÓRIAS

Com efeito, o historiador e o poeta diferem entre si não por não descreverem os eventos em versos ou em prosa [...] mas porque um se refere aos eventos que de fato ocorreram, enquanto o outro aos que poderiam ter ocorrido.31

As fronteiras entre a História e a Literatura há muito são analisadas e dissecadas com afinco entre teóricos de ambas as áreas. Esse limiar, algumas vezes turvo, entre as duas áreas pode causar confusões que impedem o crítico literário e o historiador de perceberem as infinitas possibilidades de entrecruzamento de ambas, enriquecendo suas apreciações críticas.

Até a primeira metade do século XX, a historiografia estava interessada nos grandes nomes e eventos ocorridos ao longo do tempo. Uma história clássica com métodos tradicionais de análise. Esse panorama começa a mudar com o surgimento da chamada escola

dos Annales, na França, que foi a embrionária da corrente conhecida posteriormente como

Nova História.

Encabeçada por Lucien Febvre32 e Marc Bloch33, fundadores da revista Annales (1929), a escola dos Annales, como ficou conhecida, nos traz novas possibilidades de análise histórica. Buscando novos horizontes, se propôs a analisar a história partindo de problemas, de maneira a compreendermos todo um mecanismo social e econômico de determinado período, passando algum tempo depois a considerar também aspectos mais subjetivos. Esta

31

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Editora 34, 2017, p.97.

32Lucien Paul Victor Febvre (1878-1956) foi um influente historiador francês. Trabalhou na Universidade de

Estrasburgo onde conheceu Marc Bloch, com quem fundou em 1929, a Revue de Annales. Fundou a VI Seção da École Pratique des Hautes Études, núcleo de origem da EHESS (Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais), criada em 1975.

33 Marc Léopold Benjamin Bloch (1886-1944) foi importante historiador francês. Estudou na Escola Normal Superior de Paris. Lecionou História econômica na Sorbonne. Durante a Segunda Guerra Mundial, se junta a resistência francesa, sendo preso pela Gestapo e posteriormente fuzilado em 1944.

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nova perspectiva de tratamento da História permitiu uma aproximação com áreas correlatas como Sociologia, Geografia, Economia e Psicologia.34

A intermediação da História com outras disciplinas resultou numa grande diversidade de estudos, com a incorporação de pensamentos por todas elas, e isso permitiu que diferentes conhecimentos e pontos de vista fossem explorados em uma iniciativa comum. A pluralidade de instrumentos, temas, abordagens e procedimentos, ocasionaram mudanças no território do historiador, descortinando novos campos para semear.35

Os diferentes prismas agora englobados pela Nova História incluem da história do corpo, das imagens a história da música, mulheres etc. Essa multiplicidade de enfoques permite uma visão de como a Nova História se concretiza enquanto método de análise. Parte-se de uma questão colocada pelo preParte-sente para o entendimento de uma série de relações humanas, buscando assim, novas fontes para o trabalho empreendido.

Com novas áreas se unindo à análise histórica, e as novas perguntas sobre o passado surgindo, a Nova História não pôde se valer apenas de métodos e fontes da história tradicional. A necessidade do uso de outras fontes se fez presente para que pudessem dar conta de um novo campo se estendendo à frente da História

O historiador, nessa perspectiva, reconstrói os acontecimentos das histórias vividas, informando aos seus leitores o esquema interpretativo no qual se descortina o passado vivido, demonstrando conjuntamente os seus procedimentos narrativos e os recursos metodológicos e teóricos empregados, dando possibilidade de reconhecer que as novas abordagens e objetos de estudos utilizados revelam a diversidade de leituras possíveis e, portanto, diversas formas diferentes de escrita, complementares entre si.36

Sendo a história tradicional apegada à política, ao Estado, a Nova História admitia interesse por toda e qualquer atividade humana. Tudo seria passível de se tornar objeto de estudo histórico. Enquanto historiadores tradicionais veem a história como basicamente a narrativa dos acontecimentos, a chamada Nova História privilegia a estrutura dos acontecimentos, como eles se constroem. A perspectiva que se adota ao estudar a história

34

FERREIRA, Celso Antonio. Literatura: a fonte fecunda. In: PINSKY, Carla Bassanezzi; LUCA, Tânia Regina. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2015, p.63.

35 SANTOS, Zeloi Aparecida Martins dos. História e Literatura: uma relação possível. Revista Científica/ FAP. Curitiba, v. 2, p.117-126, jan./dez. 2007, p.119.

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também difere em ambas, a tradicional preferindo uma visão “de cima”, dos grandes nomes e acontecimentos tidos como concretos e essenciais e a Nova História dando ênfase à “história vista de baixo”37, das camadas populares, do homem comum vivenciando as mudanças sociais.

O prestígio que os documentos têm para a história tradicional passa a ser apenas mais um recurso de análise para os adeptos desta nova corrente, que também buscam evidências nos registros orais, visuais etc. A Nova História, diferentemente da tradicional, quer ampliar o leque de perguntas ao acontecimento histórico, já que para ela não se pode explicar um dado momento da história respondendo a apenas uma pergunta, e sim a várias. O paradigma tradicional tinha a História como objetiva, direta, não tendenciosa. Porém, é indiscutível que a escrita da história passa pela perspectiva de quem escreve, de suas experiências.

Esse movimento de expansão do universo da história e dos historiadores leva a uma fragmentação da análise, levando a uma especialização cada vez maior dos diversos campos: história urbana, rural, cultural, econômica etc. Com a interdisciplinaridade crescente da história, há a geração de uma série de dificuldades em diagnosticar as fronteiras, os limites de cada área, onde termina um e começa o outro. Porém, apesar das dificuldades presentes nessa nova forma de se pensar a História, é inegável que se ampliou também um campo de possibilidades de análises, entre elas a de cunho literário38 se abriram por completo para o historiador.

As relações entre História e Literatura tem se dado de maneira cada vez mais presente nas mais diversas obras e nos mais diversos períodos. Observar a obra literária como um canal pelo qual as sensibilidades de um autor se expressam e ao mesmo tempo como uma fonte de estudo histórico traz uma riqueza para as múltiplas análises que se podem fazer.

A arte é social nos dois sentidos: depende da ação de atores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles os sentimentos dos valores sociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independe do grau

37 Termo cunhado pelo historiador inglês E. P. Thompson em seu texto History from below para o Times Literary Suplement, publicado em abril de 1966. O termo nos dá a dimensão do tipo de história que se pretende fazer,

utilizando-se de fontes variadas que normalmente são excluídas da historiografia tradicional.

38 “A pesquisa histórica tem contribuído justamente para a compreensão dos modos como a literatura foi concebida, particularizada em relação a outras expressões orais ou escritas, transmitida, lida, compartilhada ou apropriada pelos diferentes grupos sociais das diversas épocas e sociedades.” FERREIRA, Antonio Celso. Literatura: A fonte fecunda. In: PINSKY, Carla Bassanezzi; LUCA, Tânia Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2015, p.68.

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de consciência que possam ter a espeito os artistas e os receptores da arte.39

Entender a dimensão histórica de uma obra é parte essencial para que se possa compreendê-la de maneira mais abrangente A obra literária, assim como a análise histórica, não é totalmente desprovida de subjetividade. Pois tanto para um autor quanto para um historiador, é praticamente impossível não fazer sua obra ser permeada por suas próprias experiências, sendo ambos pessoas vivendo um dado momento histórico e colocando sua própria perspectiva em sua escrita.

O valor40 que atribuímos a qualquer obra é decorrente do tempo em que vivemos, é dado culturalmente, quando encerra em si as maneiras de ser, viver e pensar de uma sociedade e, mesmo que a história mude de curso esses valores continuam a ter importância. É possível, porém, que em tempos vindouros uma obra que consideramos valiosa perca este status dependendo dos valores vigentes.

Todas as obras literárias, em outras palavras, são “reescritas”, mesmo que inconscientemente, pelas sociedades que as leem; na verdade, não há releitura de uma obra que não seja também uma “reescritura”. Nenhuma obra, nenhuma avaliação atual dela, pode ser simplesmente estendida a novos grupos de pessoas sem que, nesse processo, sofra modificações, talvez quase imperceptíveis. E essa é uma das razoes pelas quais o ato de classificar algo como literatura é extremamente instável.41

A história também passa pelo mesmo processo, pois, sendo o passado objeto de estudo ausente, ele é “sempre condicionado por nossas próprias visões, nosso próprio presente”42 e o historiador só o faz emergir por outros meios, via discursos.

Bosi43 nos adverte, entretanto, para a importância do cuidado ao analisar uma obra literária. Não é possível usar apenas o olhar extremamente ligado à crítica literária, enclausurando a obra em si mesma. Ao mesmo tempo em que também é preciso cautela com o uso de expedientes históricos que possam confundir a interpretação. É necessário equilibrar

39 CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010, p.30.

40 De acordo com Lukács, o “valor” é um termo passageiro: “significa tudo aquilo que é considerado valioso por certas pessoas em situações especificas, de acordo com critérios específicos e à luz de determinados objetivos.” LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2009.

41 EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.19. 42 JENKINS, Keith. A história repensada. São Paulo: Contexto, 2001.

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a análise da forma, da construção do romance, dos personagens e suas perspectivas e análise social e histórica.

Ainda pensando em termos cunhados por Bosi, devemos nos atentar para as dimensões expostas pelo autor que estão presentes em toda obra literária. São elas: dimensão construtiva, expressiva e representativa. Estas dimensões nos auxiliam no trabalho de compreender a obra. Vejamos como estas dimensões se apresentam em Orlando.

1.1.1 Um biógrafo “solto”44

A dimensão construtiva diz respeito especificamente à forma com que a obra literária é executada, sua estrutura. Ao analisarmos este ponto é importante percebermos as diferenças estruturais entre como narrar o que é fato e o que é ficção. De acordo com Aristóteles45, nenhum evento histórico, deixa de ser histórico porque está escrito em forma de versos: “A especificidade da linguagem literária, aquilo que a distinguia de outras formas de discurso, era o fato de ela „deformar‟ a linguagem comum de várias maneiras.”46

A linguagem literária, portanto, difere da histórica pelo uso “criativo” do discurso, usando as palavras, o estilo a serviço da fruição estética, ao passo que o discurso histórico tem como propósito o uso da linguagem em sua forma mais objetiva e livre de ambiguidades.47

A estrutura da obra também nos fornece subsídios para avaliá-la de diversas maneiras. A adjetivação exacerbada e a tentativa de recursos retóricos próprios da ficção podem contaminar o relato histórico. Um historiador deve se atentar ao uso sóbrio e objetivo da língua, sob o risco de transformar seu relato histórico em ficção, portanto, a estrutura da língua utilizada na construção de ambas as formas de escrita é muito importante na concretização das obras. Um historiador não pode usar nada que indique processos internos de pensamento de quem pretende falar. Indicar o “conhecimento” do pensamento de alguém pode indicar aí o início do discurso literário. Anatol Rosenfeld exemplifica esta questão nos dizendo que “Numa obra histórica pode constar que Napoleão acreditava poder conquistar a

44 Em seu ensaio “A arte da biografia”, publicado postumamente em 1942, Virginia Woolf explica que o romancista é livre para criar a vida de seus personagens de acordo com suas intenções sem maiores problemas, já o biógrafo está „amarrado‟ a convenções e a limitações que uma vida real lhe impõe no ato da escrita.

45

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Editora 34, 2017, p.97.

46 EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.05.

47 O fato é que a linguagem literária é facilmente reconhecível entre os diversos estilos de escrita, configurando-se num estilo próprio que difere do relato histórico ou científico.

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Rússia, mas não que naquele momento cogitava desta possibilidade”48. Indicar, portanto, conhecimento de “processos psíquicos”49 é desprender-se do discurso histórico, objetivo e migrar para as sendas da ficção.

Em Orlando, a intenção biográfica é evidenciada por seu subtítulo: “uma biografia”. Sua estrutura, porém, subverte todas as tendências do estilo. A princípio, a obra possui todos os indicadores de se tratar de uma biografia verídica. Há vários elementos que visam dar à obra um caráter autêntico: um prefácio elaborado com agradecimentos diversos, uso de índice e fotografias de Orlando em diversas fases da vida, pinturas de Sasha, Harriet e Shelmerdine. Estes elementos funcionam como o que Chartier chama de “técnicas modernas de persuasão do relato histórico”50.

Todas essas provas do “ter sido”, porém, são usadas de maneira sarcástica. Os agradecimentos sinceros se misturam com ironias, como o agradecimento direcionado ao “cavalheiro da América, que generosa e gratuitamente corrigiu a pontuação, a botânica, a entomologia, a geografia e a cronologia”51 de algumas obras da autora.

A adjetivação em excesso, que não deve figurar em uma obra biográfica também é um recurso utilizado por diversas vezes. O biógrafo relata a beleza de Orlando e emite opiniões sobre ele: “Impossível encontrar rosto mais cândido, mais circunspecto. Feliz a mãe que gera a vida de alguém assim; mais feliz ainda o biógrafo que a registra! Ela nunca precisará se atormentar; ele nunca sentirá a necessidade de invocar a ajuda do romancista ou poeta.”52

Se a biografia deve se ater aos fatos de vida do indivíduo, visando dar credibilidade ao relato, prezando pela objetividade e evitando adjetivação, o biógrafo de Orlando, apesar de sua constante afirmação de que o dever do biógrafo é apresentar os fatos da forma como aconteceram, se move em direção totalmente oposta, sendo vago ou omitindo situações em muitas passagens: “A história toda, dizíamos, é tediosa [...] e a história de sua aventura com um mouro em Veneza, de quem comprou (mas apenas à ponta de espada) a escrivaninha laqueada, poderia, em outras mãos, valer a pena ser contada.”53

48

ROSENFELD, Anatol. Literatura e Personagem. In: CANDIDO, Antonio (et al.). A personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.24.

49 Ibidem. 50

CHARTIER, Roger. O passado no presente. Ficção, história e memória. In: ROCHA, João Cézar de Castro (Org.). Roger Chartier - A força das representações: história e ficção. Chapecó, SC: Argos, 2011.

51 WOOLF, Virginia. Orlando: uma biografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.10. 52 Ibidem, p.12.

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Já a dimensão expressiva ou existencial nos diz respeito à intenção do autor e da obra, como ele deseja abordar sua temática, seja de maneira satírica, filosófica ou política. Um estilo adotado pelo autor pode levá-lo a conseguir determinado resultado expressivo, como a escolha errada também pode desfazer a intencionalidade pretendida.

A expressão em Orlando é satírica, pois brinca com as convenções dos estilos histórico e biográfico para a realização da obra. “Indicadores de veracidade” para corroborar a “existência rela da personagem”, como o prefácio e as fotos, são intercalados entre a relatos carentes de objetividade histórica/biográfica.

A dimensão representativa nos faz pensar como o escritor está posicionado no tempo e no espaço e quais os estímulos lhe foram postos no decorrer de sua produção. É preciso pensar também como o personagem se insere neste espaço, tempo e como recebe estes estímulos. Observar o “externo que se torna interno”, ou seja, como a conjuntura social é absorvida pelo autor e repassada ao narrador e /ou personagem também se torna parte integrante do entendimento da obra como um todo.

Virginia Woolf realiza em Orlando uma série de empreendimentos que vão ao encontro do momento social, cultural e histórico que vivia. A sátira do gênero biográfico, muito apreciado durante a era vitoriana54, em um claro afastamento dos padrões estéticos dominantes; a defesa de uma androginia no ser humano que o possibilitasse mover-se com liberdade em sociedade e não mais limitado por determinações biológicas, o que resulta, em consequência, na defesa dos direitos das mulheres em uma sociedade em transformação após a Primeira Guerra.

Todas as dimensões da obra literária nos ajudam a compreender como ela se caracteriza como ponto de estudo histórico. Mesmo não tendo compromisso rigoroso com a verdade, a literatura oferece todo um registro do tempo, mesmo que não seja essa a intenção primordial do autor. É por meio do “fio do relato que ajuda a nos orientarmos no labirinto da realidade”55 que estabelecemos sua relação com os inúmeros rastros que as sociedades nos legam. Esta realidade perscrutada pelo historiador é dada em um determinado tempo, e muitas vezes este tempo se apresenta fraturado, como é constante nas obras de Woolf.

54

Leslie Stpehen, pai de Virginia Woolf, inclusive, foi um eminente biógrafo do século XIX. Escreveu biografias de Alexander Pope, Samuel Johnson entre outros. Foi também o primeiro editor do Dictionary of

National Biography, de 1885 a 1891.

55 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.07.

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1.1.2 “Tarefa difícil, essa de cronometrar o tempo”

No romance moderno, diversos elementos, e especificamente os ligados ao tempo – sucessão temporal, cronologia, continuidade temporal, foram abalados. Os modernistas trouxeram para o discurso o fluxo de pensamentos e a quebra das noções temporais tradicionais.

O tempo, na obra de Virginia Woolf é sempre um tema bastante amplo e trabalhado. Em Orlando, a autora adota uma visão de experiência temporal diacrônica e sincrônica. Diacrônica com o decorrer de três séculos de história e sincrônica ao pensarmos na presença da própria Orlando. A cronologia do tempo passa para todos e, ao mesmo tempo, tempos diferentes coincidem – passam-se 300 anos durante a obra e Orlando é, ao mesmo tempo, a materialização de outros tempos que passaram. São o que Woolf chama de “centenas de horas diferentes batendo ao mesmo tempo dentro de si”, pois “nossa consciência não passa por uma sucessão de momentos neutros, como os ponteiros de um relógio, mas cada momento contém todos os anteriores”56.

Essas horas passam de maneira distinta dependendo do momento e possuem um efeito diverso sobre o corpo também

Mas o Tempo, infelizmente, embora faça os animais e os vegetais vicejarem e definharem com espantosa pontualidade, não tem efeito tão simples sobre a mente humana. A mente humana, além disso, age com igual estranheza sobre o corpo do tempo. Uma hora, uma vez alojada no estranho elemento do espírito humano, pode ter sua duração tal como assinalada pelo relógio aumentada cinquenta ou cem vezes; por outro lado, uma hora pode ser acuradamente representada no cronometro da mente por um segundo. Essa extraordinária discrepância entre o tempo do relógio e o tempo da mente é menos conhecida do que deveria e merece uma investigação mais aprofundada. Mas o biógrafo, cujos interesses, são, como dissemos, altamente restritos, deve se limitar a uma simples afirmação: quando um homem atinge a idade de trinta anos, como é o caso de Orlando agora, o tempo, quando ele está pensando, torna-se excessivamente longo; quando está agindo, excessivamente curto.57

É este desacordo entre o tempo externo e interno que possibilita a Orlando permanecer, fisicamente, como uma mulher na casa dos 30 anos por mais de dois séculos:

56 ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: Idem. Texto/Contexto I. São Paulo: Perspectiva, 1996, p.82.

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E, de fato, não se pode negar que os mais bem-sucedidos praticantes da arte da vida, pessoas, aliás, com frequência desconhecidas, conseguem, de alguma forma, sincronizar as sessenta ou setenta diferentes horas que batem simultaneamente em todo sistema humano normal, de maneira que, quando batem as onze horas, todas as outras soam em uníssono e o presente não é um violento corte no passado nem é inteiramente esquecido nele. Deles só podemos dizer com justiça que vivem precisamente os sessenta e oito ou setenta e dois anos a eles atribuídos na lápide. De resto, alguns sabemos estarem mortos, embora andem entre nós; alguns ainda não nasceram, embora experimentem formas de vida; outros têm centenas de anos, embora proclamem ter trinta e seis.58

A vivência dos séculos externamente e na mente, é tratado de maneira menos densa em Orlando do que em obras como Rumo ao Farol ou Mrs. Dalloway, por exemplo, em que o fluxo de consciência corta a cronologia temporal em espasmos de um personagem a outro. Em

Orlando, o tratamento do tempo é mais sutil, mas a ideia de que internamente a personagem

vive em um ritmo diferente é exposta. Neste ponto, vemos a influência das ideias de Freud – pois com suas considerações sobre o mundo do inconsciente do indivíduo, Freud postulava que neste campo não há tempo cronológico, algo que foi bastante explorado na literatura modernista.

[...] camadas infrapessoais do it, para o poço do inconsciente; mundo em que, segundo Freud, não existe tempo cronológico e em que se acumulariam, segundo Jung, não só as experiencias da vida individual e sim as arquetípicas e coletivas da própria humanidade.59

De acordo com Bakhtin, “a vida biográfica é impossível fora de uma época, cuja durabilidade, que vai além dos limites de uma vida única, é representada antes de tudo pelas gerações”, que “introduzem os contatos de vidas de tempos diferentes”.60 Orlando, portanto, sintetiza em si não apenas o seu tempo corporal, de sua experiência única, mas carrega consigo as marcas do tempo coletivo. Ela é um constante ponto sincrônico na diacronia da história. Ela é “diferentes gerações”: foi e é, se será ainda não é claro, mas para a autora fica evidente, por meio da personagem e de sua paixão pela Literatura, que a obra de arte é o único objeto verdadeiramente passível de romper as aporias do tempo, pois a arte foi, é e será o único objeto que permanece na cronologia da história.

58

WOOLF, Virginia. Orlando: uma biografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.200.

59 ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: Idem. Texto/Contexto I. São Paulo: Perspectiva, 1996, p.85.

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As artes são, portanto, os vestígios da história que chegam a nós. Qualquer utensílio que perpasse o tempo e chegue até nós, é um testemunho material do que passou. Uma prova de costumes, sociedade, crenças. São estes resquícios que nos impedem de desacreditar por completo na história e nos colocam em contato com todo um caminhar da humanidade até o ponto em que nos encontramos.

A fé histórica “nos permite superar a incredulidade, alimentada pelas objeções recorrentes do ceticismo, referindo-se a um passado invisível, graças a uma série de oportunas operações, sinais traçados no papel ou no pergaminho, moedas fragmentos de estatuas erodidas pelo tempo etc.61

A análise histórica de uma obra literária não pode, entretanto, basear-se apenas em valores estéticos, pois o caráter dessa análise é diverso. Porém, é possível ao historiador reconhecer estes valores estéticos como uma condição análoga à sociedade retratada. E há diversas obras que possibilitam essa análise.62

Entre os gêneros literários mais propícios para esta inquirição histórica podemos apontar o romance como o gênero mais fecundo para tais análises, pois sua forma não rígida63 adapta-se às contingencias históricas.

As possibilidades, portanto, de se entender a conjuntura de uma sociedade por meio de sua produção artística é imensa e fornece ao pesquisador vestígios do momento de sua produção, a sociedade da época e/ou aspirações coletivas.

61 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.93.

62 Um exemplo é “O grande Gatsby” (1925), do escritor americano F. Scott Fitzgerald (1896-1940). O romance oferece uma ampla visão da sociedade americana pós-Primeira Guerra. Apesar de próspera, a década de 20 deixava entrever os reveses que se estabeleceriam em breve, além de demonstrar as vicissitudes da alta sociedade americana. No Brasil, o escritor Mario de Andrade (1893-1945) oferecia à literatura brasileira “Macunaíma, o

herói sem nenhum caráter” (1928), onde podemos vislumbrar em sua escrita descontínua a tentativa de projeto

nacional e as complicações disso em uma “nação criança”. Macunaíma sendo um “anti-herói”, que se metamorfoseia de acordo com o que é necessário, deixa à mostra uma sociedade que ainda busca sua essência, sua “brasilidade”.

63 A estrutura do romance se adapta às modulações, ultrapassa limites temporais e geográficos, nas palavras de Sandra Guardini Vasconcelos, “o romance desestabiliza convenções, alia continuidades e descontinuidades reinventa-se e franqueia ao romancista liberdade de imaginação, de recriação das formas e de proposição de novos caminhos”. A própria Virginia Woolf utilizou-se de estratégias de desconstrução de tempo, espaço e narrativa numa nova forma para o romance modernista. Ver: VASCONCELOS, Sandra Guardini. Crítica - O romance como gênero planetário: a cultura do romance. Novos estudos - CEBRAP . São Paulo, n. 86, mar. 2010, p.188.

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1.2 O ADVENTO DA ERA VITORIANA E A CONSOLIDAÇÃO DO ROMANCE COMO GÊNERO LITERÁRIO BURGUÊS

1.2.1 Tempos modernos - “O encanto da Londres moderna é ser construída não para durar, mas para passar”64

“O inferno é uma cidade muito parecida com Londres. Uma cidade com muita gente e muito fumo.”

Percy Shelley65

A Londres do início do século XIX era uma locomotiva a todo vapor em direção ao futuro. As mudanças desencadeadas pela Revolução Industrial possibilitaram um novo ritmo de vida, consumo e expansão da atividade urbana.

[...] ela [a Revolução Industrial] não representou um simples processo de adição e subtração, mas sim uma mudança social fundamental. Ela transformou a vida dos homens a ponto de torna-las irreconhecíveis. Ou, para sermos mais exatos, em suas fases iniciais ela destruiu seus antigos estilos de vida, deixando-os livres para descobrir ou criar outros novos cursos, se soubessem ou pudessem. Contudo, raramente ela lhes indicou como fazê-lo.66

Os séculos XVIII e XIX foram eras de profundas transformações políticas, econômicas, culturais e sociais na Europa e com reflexos importantes em outros países, mas sobretudo nas Américas, que teve como consequência mais expressiva os movimentos de libertação nacional. França e Inglaterra estavam na dianteira do desenvolvimento econômico e os fatos mais importantes destes séculos são protagonizados por ambos. O florescimento de eventos históricos importantes como a Revolução Industrial e a Revolução Francesa transformou o mundo e lançou as bases da sociedade moderna.

No século XVIII, o mundo, até então primordialmente rural, começava a caminhar para uma nova configuração em que a otimização da produção estava cada vez maior e a necessidade de se lucrar mais se fazia com uma força irresistível. Os países europeus lidavam com esta “corrida industrial” cada um à sua maneira e se posicionaram neste novo mundo de maneiras diferentes também.

64

WOOLF, Virginia. Cenas Londrinas. Tradução Myriam Campelo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p.36. 65 Percy Bysshe Shelley (1792-1822) foi um dos maiores poetas românticos ingleses. Trecho retirado da obra “Peter Bell The Third”, escrita em 1820 e publicada postumamente em 1839.

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Em Orlando, as mudanças ocasionadas pela aceleração da modernidade, são pontuadas sutilmente no decorrer da obra. No início da história, ao final do século XVI, Orlando circula por um ambiente totalmente campestre. A enorme mansão na qual vive, funciona como uma pequena cidade:

Passou ao largo de todos os estábulos, canis, cervejarias, carpintarias, lavanderias, lugares onde se fabricam velas de sebo, matam bois, forjam ferraduras, cerzem gibões (pois a propriedade era como um vilarejo, zumbindo com homens ocupados em seus variados ofícios), chegando, sem ser visto, à trilha marcada por samambaias que passava, subindo a colina, pelo parque.67

Apesar de ser um mundo ainda “menor”68, devido à parca mobilidade dos habitantes comuns (fazendo com que somente uma pequena parcela da população mundial em geral saísse de seus locais de nascimento), já começava a se desenvolver uma sociedade que precisava suprir sua necessidade de matéria prima. A Grã-Bretanha foi a pioneira em alcançar territórios além e suprir um crescente mercado externo.

Houve um momento na história do mundo em que a Grã-Bretanha podia ser descrita como sua única oficina mecânica, seu único importador e exportador em grande escala, seu único transportador, seu único país imperialista e quase que seu único investidor estrangeiro; e por esse motivo, sua única potência naval e o único pais que possuía uma verdadeira política mundial.69

A Inglaterra já era um país que se estabelecia como um dos grandes líderes da expansão europeia, já iniciada nos anos anteriores pelos países imperiais que lhe deram sustentação e ambição política, que culminou com um mundo colonizado em grande parte pelo Império Britânico. Essa ampliação dos domínios britânicos impulsionou mudanças sensíveis na constituição da sociedade inglesa e, por conseguinte, na sociedade europeia. A Inglaterra obtivera grande êxito em seu desenvolvimento, em partes por ter uma aristocracia que tinha o suficiente para arcar com os grandes custos das inovações que a produção exigia,

67

WOOLF, Virginia. Orlando: uma biografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.14.

68 Em 1861 mais de nove em cada dez habitantes de 70 dos 90 distritos franceses moravam onde haviam nascido. HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: 1789-1848. 13ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p.26.

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em parte porque possuía grandes reservas de minérios.70 Esse potencial inicial foi crucial na vanguarda da revolução industrial.

Em Orlando, o período da revolução industrial propriamente não é sequer mencionado, mas o avanço das mudanças e seus efeitos sobre Londres e sua população podem ser observadas, quando Orlando retorna à cidade logo no início do século XVIII:

A própria Londres tinha mudado por completo desde que a vira pela última vez. Era, então, lembrava-se, um amontoado de casinhas de aspecto sombrio, carregado. As cabeças dos rebeldes arreganhavam os dentes do alto de suas estacas no Temple Bar. As pedras do calçamento cheiravam a lixo e esterco. Agora, enquanto o navio passava por Wapping, ela tinha vislumbres de ruas largas e em boa ordem. Imponentes carruagens, puxadas por juntas de cavalos bem nutridos, ficavam à espera à frente de casas cujas belas sacadas, cujas as límpidas vidraças, cujas aldrabas polidas davam testemunho da riqueza e da sóbria dignidade dos que nela residiam. Damas em seda florida [...] caminhavam sobre passeios pavimentados. Cidadãos em casacos bordados cheiravam rapé nas esquinas, debaixo de postes de luz.71

O “mundo rural” já não comportava mais a crescente demanda local e ultramarina por produtos da economia britânica, o que forçou a criação de estratégias para comportar e ampliar a produção. A necessidade de transportar esses materiais de maneira cada vez mais ágil impulsionou o surgimento das ferrovias, um dos principais símbolos do progresso da era moderna.

Nenhuma outra inovação da revolução industrial incendiou tanto a imaginação quanto a ferrovia, como testemunha o fato de ter sido o único produto da industrialização do século XIX totalmente absorvido pela imagística da poesia erudita e popular.72

Na obra, a chegada da modernidade não passa despercebida, e ela descreve sua primeira experiência em um trem:

Orlando ainda não tinha se inteirado da invenção da máquina a vapor [...] Vendo um trem pela primeira vez, tomou seu assento num vagão e

70 A mineração de carvão era um dos grandes destaques nas atividades econômicas britânicas. Sua produção era tão intensa que, em 1800, a Grã-Bretanha liderava as exportações do minério com larga vantagem sobre a França, seu maior competidor.

71 WOOLF, Virginia. Orlando: uma biografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.112.

72 HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: Europa 1789-1848. Tradução de Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p.61.

Referências

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