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CONVOCANDO ORLANDOS: A PERFORMATIVIDADE NA OBRA DE WOOLF

CAPÍTULO III – TIRÉSIAS LITERÁRIO

3.2 CONVOCANDO ORLANDOS: A PERFORMATIVIDADE NA OBRA DE WOOLF

As normas constituídas culturalmente para cada sexo encapsulam uma gama de possibilidades limitadas para ambos, ditando o que é aceitável ou não para cada um. A expressão do gênero no indivíduo, neste contexto, deveria seguir uma série de códigos restritos destinados a identificar o sujeito em uma categoria inteligível.

O gênero não é de modo algum uma identidade estável nem lócus de agencia do qual procederiam diferentes atos; é ao contrario uma identidade constituída de forma tênue no tempo – uma identidade instituída por meio de uma repetição estilizada de atos.267

Portanto, as identidades masculinas e femininas só ganham força em suas relações entre si, em disputas de poder268 e é com o questionamento levantado pelos estudos de gênero

265

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p.08.

266 BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p.361. 267

BUTLER, Judith. Os atos performativos e a constituição do gênero: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. Série Caderno de Leituras, n. 78. Edições Chão da Feira, 2018.

268 BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p.12.

que é possível visualizar sua forma construída socialmente e tirar do gênero seu caráter “natural”, quando, em realidade ele é construído em sociedade.

Segundo Butler269, essa construção se dá por meio de atos cotidianos repetidos ao longo do tempo, não apenas corporalmente, como discursivamente. É o que a autora chama de performatividade, uma teatralização de posturas, gestos, falas, que visam dar às ações dos sujeitos um caráter “natural”. Essa construção beneficia uma estrutura binária de gêneros, pois quem estabelece o que é natural? Os grupos hegemônicos, que em nossa sociedade, são essencialmente patriarcais e heteronormativos.

Os padrões constituídos por tais grupos visam enclausurar a existência e o papel dos indivíduos, mas principalmente das mulheres a fatores biológicos, compelindo-as a determinadas experiências. Neste sentido, o corpo assume significados culturais e sociais de acordo com sua materialidade. É ela que viabiliza as “possibilidades” e vivências em sociedade.

Na obra é possível verificar como os indivíduos são enquadrados nessas perspectivas de acordo com seu sexo. Orlando aceita e ao mesmo tempo subverte essa lógica da materialidade de seu corpo. Apesar de se “curvar” ao espírito de cada época, continua a utilizar-se de artifícios para viver múltiplas experiências. Suas ações se moldam ao compasso das necessidades apresentadas para si. O menino Orlando, em pleno século XVI, queria ser guerreiro, como haviam sido seus antepassados, e suas ações o compeliam para a realização deste intento:

Os ancestrais de Orlando tinham cavalgado por campos de asfódelo [...] e tinham arrancado muitas cabeças, de muitas cores, de muitos ombros, trazendo-as, na volta, para pendurá-las nas vigas. Assim também faria Orlando, jurava ele.270

Este comportamento, porém, é construído socialmente, nas relações familiares que o personagem possui, que o inserem em um contexto específico de gestos e sensibilidades, que o posicionam de certa maneira no mundo. O ideal de masculinidade viril ideal é exposto. Porém, ao mesmo tempo, o menino é tomado pela paixão à literatura e por ações introspectivas, instabilidade emocional e apreço à solidão. Essa fluidez com a qual o

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BUTLER, Judith. Os atos performativos e a constituição do gênero: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. Série Caderno de Leituras, n. 78. Edições Chão da Feira, 2018.

personagem passa de uma “expressão de gênero” a outra, o acompanha durante toda a narrativa.

Se o corpo é a materialização das possibilidades delimitadas pelas convenções históricas271, Virginia subverte os limites ao fazer Orlando transitar entre os gêneros e captar de ambos toda uma variedade de perspectivas. Sua adaptação aos primeiros séculos de sua transformação se dá num constante jogo entre aceitação e recusa de padrões cuja cristalização foi se intensificando à medida que os anos passavam, principalmente no século XIX. Sua oscilação na representação de seu gênero, confirma o caráter histórico das possibilidades do corpo.

Enquanto o rapaz Orlando parecia predestinado à vida de guerreiro e grande lorde, a mulher Orlando, busca a segurança do casamento para concretizar sua realização pessoal: “„Em quem‟, perguntava, lançando olhares às revoltas nuvens, entrelaçando as mãos ao se ajoelhar no parapeito da janela e parecendo, assim, a própria imagem da feminilidade suplicante, „Posso me amparar?‟.”272

Essa “feminilidade suplicante” por alguém que a proteja, de fato é uma construção social que acaba por submeter mulheres à dominação masculina, criando uma fragilidade que se pretende inerente. Por isso, sua relação com Shelmerdine, o navegante com quem se casa, desordena essa inerência do ser masculino e do ser feminino. Ambos destoam da representação social atribuída a seu sexo e reconhecem, um no outro, a pluralidade da identidade.

Seu encontro com a arquiduquesa Harriet é revelador das diversas facetas das performances de gênero. Harriet é descrita de maneira suscinta, como demasiadamente alta para uma mulher, mas é seu comportamento que destoa mais da maioria das mulheres. Conhecedora de vinhos e armas de fogo, Harriet difere não apenas fisicamente, como também em comportamento socialmente prescrito. Orlando, inclusive, temendo apaixonar-se pela duquesa foge para Constantinopla onde se transforma em mulher, em meio a uma rebelião local. Ao retornar, descobre que Harriet é, na verdade, Harry, que se travestiu de mulher por se dizer apaixonado por Orlando independente de seu sexo. Neste ponto, apesar de parodiar o gênero, nota-se a conformação do personagem com as leis de normatização do desejo do

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BUTLER, Judith. Os atos performativos e a constituição do gênero: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. Série Caderno de Leituras, n. 78. Edições Chão da Feira, 2018, p.05.

indivíduo, que não permitiria um homem sentir-se atraído por outro, recorrendo assim, a um recurso que permita realizar seu desejo.

Ao se reencontrarem, Orlando e Harry representam então seus papéis designados273, numa série de gestos considerados adequados. Essa representação corporal indica determinados padrões estabelecidos socialmente para ambos os sexos. O gestual, a linguagem e todos os artifícios utilizados por ambos são indicadores de normas que regulam os corpos a se portarem “de acordo” com o sexo de cada um.274

Essas “práticas regulatórias” enquadram os indivíduos em um padrão de normas das quais é difícil desviar, transformando as ações muito mais em atos performáticos e teatrais para fazer convencer e se convencer do que um estado natural. Orlando, já transformada e vestida de homem, ao encontrar uma prostituta faz todas as mesuras necessárias para conduzi- la a seu quarto, ao passo que a moça faz exatamente o mesmo para lhe oferecer a sensação de abandono, que em tese, atenderiam sua virilidade:

Senti-la apoiada levemente em seu braço, ainda que na posição de suplicante, despertou nela todos os sentimentos próprios de um homem. Ela parecia um homem, sentia como um homem, falava como um homem. Mas, tendo ela própria se tornado mulher há pouco tempo, suspeitava que a timidez da moça e suas hesitantes respostas e a falta de jeito com a chave na fechadura e a dobra no casaco e o gesto de abandono da mão, era tudo encenado para satisfazer a masculinidade dela.275

Esse comportamento da jovem, que visa agradar ao homem, some rapidamente ao perceber que está lidando com alguém do mesmo sexo, deixando entrever um espírito totalmente diferente da jovem suplicante de antes: “„Bom, minha querida‟, disse ela [...] „não fico nem um pouquinho triste em ouvir isso. Pois, a verdade nua e crua é [...] que não estou, esta noite com nenhuma disposição para me entreter com a companhia do outro sexo‟.”276

273

“Em suma, por dez minutos representaram com veemência os papéis respectivos de homem e mulher, entrando, depois no rumo da conversa natural.” WOOLF, Virginia. Orlando: uma biografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.119.

274 “In other words, „sex‟ is an ideal construct which is forcibly materialized through time. It is not a simple fact or static condition of a body, but a process whereby regulatory norms materialize „sex‟ and achieve this materialization through a forcible reiteration of those norms.” Em outras palavras, “sexo” é uma construção ideal que é forçosamente materializada através do tempo. Não é um simples fato ou condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas reguladoras materializam o “sexo” e alcançam essa materialização através de uma reiteração forçada dessas normas. BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York & London: Routledge, 1993, p.02.

275 WOOLF, op. cit., p.142-143. 276 Ibidem, p.143.

É notório como as representações dos papéis sociais estão calcadas em normas que visam dar inteligibilidade a cada sexo, de maneira que ser homem ou mulher está intimamente atrelado a uma série de paradigmas que se constituíram social e historicamente.

3.3 “SÃO AS ROUPAS QUE NOS VESTEM E NÃO NÓS A ELAS”: O PAPEL DO VESTUÁRIO NA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES

Há, em todo o ser humano, uma vacilação entre um sexo e outro e, com muita frequência, são apenas as roupas que mantêm a aparência de homem ou de mulher, enquanto por debaixo o sexo é exatamente o oposto do que está em cima.277

Se pensamos na multiplicidade das identidades, devemos admitir que o binarismo é, por si só, um conceito muito limitado e limitante para abordarmos as subjetividades. Woolf, ao defender esta variedade do eu, defende também o uso que se faz das roupas como um artefato que encobre uma série de possibilidades dos indivíduos.

Entre as práticas reguladoras do gênero, não há nenhuma mais visível nem mais restrita do que a do vestuário. Elas não apenas recobrem nosso corpo, nos protegem do frio e de outras intempéries. São um símbolo palpável das distinções de gênero, classe, etnia etc.

Ao longo da História, a moda tem influenciado pessoas e comportamentos, estabelecendo novos padrões e novas socializações. Com o crescimento da Revolução Industrial e o maior número de pessoas circulando nas grandes cidades, a demanda por novas formas de consumo crescia de maneira acelerada. E os produtos ligados à aparência não foram exceção. Este padrão cruzou todo o século XIX e adentrou o XX com força total. Seja para cobrir, seja para mostrar, no eterno jogo erótico entre os sexos, as roupas desempenharam (e ainda desempenham) um papel relevante na constituição das relações entre homens e mulheres. Elas aparecem, inclusive, como um tema relevante em Orlando, pois não apenas recobrem os corpos, como também influenciam na percepção que se tem dos personagens:

Ele – pois não podia haver nenhuma dúvida sobre o sexo, embora a moda da época contribuísse para mascará-lo – estava golpeando a cabeça de um mouro que pendia das vigas.278

277 WOOLF, Virginia. Orlando: uma biografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.125. 278 Ibidem, p.11.

O texto revela, já na primeira página, o papel constante das roupas na constituição e deslocamento das identidades. No início, Orlando é um nobre do século XVI (mais precisamente 1586) e sua indumentária se mostra de acordo com padrões da época:

Figura 1 – Representação de Orlando quando menino. “Honorável Edward Sackville”, pintura a óleo, por Cornelius Nuie, 1637.279

279

Com autorização de lorde Robert Sackville-West. Fotografia de Alex Saunderson. A pintura na verdade é do “Honorável Edward Sackville”, antepassado de Vita Sackville-West, musa inspiradora do romance de Virginia Woolf. Está alocada na mansão Knole, que atualmente é administrada pelo National Trust, órgão de preservação do patrimônio histórico britânico. Ver: WOOLF, Virginia. Orlando: uma biografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.04.

A era elisabetana foi de grande luxo e ornamentação. As rendas, babados e detalhes finos faziam parte da vestimenta da corte. Na ilustração nota-se que Orlando é um típico nobre da época. Os sapatos com saltos e a espécie de meia calça ajustada auxiliam numa possível incerteza sobre seu sexo. Mesmo assim, sua postura distinta revela seu lugar no mundo daquele período, pois

[...] as pessoas pareciam estar demonstrando ser membros de uma casta aristocrática. Ficavam empertigadas de roupas acolchoadas e duras que formavam uma verdadeira cuirasse. Os historiadores de arte notam que a pintura de retratos de pessoas da corte em toda a Europa mostra-as de pé, com um pé à frente, em atitude de reserva altiva, hierática e rígida.280

As roupas, na obra, acentuam os deslocamentos das identidades e possibilitam novas formas de ser para os indivíduos. Se a moda é comandada pela lógica da teatralidade281, portanto, vestir uma roupa significa encarnar uma “persona” que se enquadre no que a “roupa pede”. Sendo assim, as roupas se tornam um elemento agregador no estabelecimento das relações de gênero e também no imaginário que se cria sobre “como deve ser” de cada indivíduo.

A moda age como um modulador das relações dos indivíduos em sociedade, é mais uma das tecnologias que reforçam padrões heteronormativos de comportamento, cuja fixidez não aceita a fluidez indumentária. Na obra, porém, há um desvio dessa cristalização do vestuário. Por mais de uma vez, o leitor é levado à dúvida com relação ao gênero de um personagem por sua vestimenta “deslocada”. Como quando conhece Sasha282, cuja roupa e atitudes, num primeiro momento, fizeram o personagem acreditar se tratar de um homem.

280 LAVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.90. 281

LIPOVETSKY Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011, p.40.

282 “[...] quando viu, saindo do pavilhão da Embaixada Moscovita, uma figura que, fosse rapaz ou mulher, pois a túnica e as calças amplas da moda russa serviam para mascarar o sexo, despertou-lhe a maior curiosidade.” WOOLF, Virginia. Orlando: uma biografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.26.

A moda está ligada à fantasia, ao universo das possibilidades que escapam das formas tradicionais. Por isso sua função de criar nos corpos possibilidades subjetivas e o sucesso de grandes festas283 se deve também a essas possibilidades criadas para os indivíduos. São momentos de ruptura do tradicional e de permissão de performance.

As mudanças da moda dependem da cultura e dos ideais de uma época. Sob a rígida organização das sociedades, fluem anseios psíquicos subterrâneos de que a moda pressente a direção. Na sociedade democrática do século XIX, quando os desejos de prestígio se avolumam e crescem as necessidades de distinção e de liderança, a moda encontrará recursos infinitos de torna-los visíveis. Por outro lado, quando a curiosidade sexual se contém sob o puritanismo dos costumes de uma sociedade burguesa, a moda descobrirá meios de, sem ofender a moral reinante, satisfazer um impulso reprimido.284

Orlando, ao regressar para Inglaterra, se vê frequentando inúmeras festas na alta sociedade, e são estas ocasiões que lhe permitem experimentar sua nova condição feminina na companhia de distintos nobres da sociedade inglesa. A própria utiliza-se das roupas como um artifício para ampliar suas vivências, trocando-as de acordo com o momento:

Mas fornecer um relato exato e circunstanciado da vida de Orlando nessa época torna-se cada vez mais impraticável. [...] A tarefa se torna ainda mais difícil pelo fato de ela ter achado conveniente, então, trocar com frequência um conjunto de roupas por outro. Assim, muitas vezes ela figura nas memórias da época como “lorde” Fulano de Tal, que era, na verdade, seu primo; sua generosidade é atribuída a ele e diz-se que foi ele quem escreveu os poemas que, na verdade, eram de autoria dela. Ela não tinha ao que parece, nenhuma dificuldade em representar os diferentes papeis, pois mudava de sexo com muito mais frequência do que conseguem imaginar as pessoas que usavam apenas um tipo de roupa; tampouco pode haver qualquer dúvida de que por esse artifício ela obtinha um duplo proveito; as experiencias de vida se multiplicavam e os prazeres que dela extraía também. Ela trocava a probidade das calças pela sedução das saias e desfrutava por igual do amor de ambos os sexos.285

Essa facilidade em representar diferentes papéis só é possível ao se utilizar as variadas molduras disponíveis para o corpo. Se o corpo é “uma maneira de fazer, dramatizar e

283 “A festa era, para uma sociedade deste tipo, mais que para qualquer outra, a ruptura na rigidez dos costumes.” SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.146.

284 SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.25.

reproduzir uma situação histórica”286, Orlando ultrapassa as demarcações postas, trocando sua aparência externa para desfrutar da liberdade de um homem ou das possibilidades de sedução da mulher.

Essas possibilidades de sedução são, segundo a autora, adquiridas por meio de rigorosos métodos de construção do ser feminino, do penteado às rendas, o devir feminino só é possível graças a uma série de procedimentos considerados “normais” para as mulheres. A arquiduquesa Harriet/arquiduque Harry é uma clara parodia às identidades cristalizadas, e a roupa ajuda a deslocar a referencialidade do gênero.

Figura 2 – Representação da arquiduquesa Harriet. “Mary Curzon”, pintura a óleo, por Marcus Gheeraerts, o Jovem, c. 1605.287

286 BUTLER, Judith. Os atos performativos e a constituição do gênero: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. Série Caderno de Leituras, n. 78. Edições Chão da Feira, 2018, p.05.

287

Com autorização de lorde Robert Sackville-West. A pintura na verdade é de “Mary Curzon”, ancestral de Vita Sackville-West, musa inspiradora do romance de Virginia Woolf. Está alocada na mansão Knole, que atualmente é administrada pelo National Trust, órgão de preservação do patrimônio histórico britânico. Ver: WOOLF, Virginia. Orlando: uma biografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.77.

A arquiduquesa aparece em pleno século XVII e tanto seu penteado quanto sua roupa é considerada já “fora de moda”, pois uma das pinturas utilizadas por Woolf para a caracterização da personagem é de Mary Curzon, condessa de Dorset em 1605, em que ela usa um grande farthingale288 à moda que Elizabeth I e todas as grandes damas da corte usavam. A arquiduquesa, porém, supõe-se aparecer entre meados de 1660, em pleno reinado de Charles II, quando a moda do farthingale já estava ultrapassada.

Postas de lado aparentes incongruências históricas, o traje de Harriet ajuda a conduzir a visão do leitor para uma crença absoluta de sua identidade de gênero. Crença essa que é posta abaixo dois capítulos depois com a descoberta de que a arquiduquesa sempre havia sido um homem. A roupa é utilizada aqui, de maneira a subverter as configurações impostas a ambos os sexos.

Dentre as oposições existentes entre os indivíduos “a que mais nos impressiona porque se estampa numa diferença marcada de configuração física é a que existe entre os sexos. Aqui, não só um contraste biológico, mais acentuado que entre os animais, afasta a mulher do homem. Mas todo um conjunto de diferenças acentua através da roupa as características sexuais, modula de modo diferente a voz da mulher, produz um vagar maior dos movimentos, um jeito de cabeça mais langue sobre os ombros”.289

Todo conjunto de diferenças sexuais são acentuadas pelo uso das roupas, e ao desviar o padrão inteligível de vestuário para cada sexo, cria-se uma perspectiva diferente no sujeito e sobre ele. Sendo assim, de acordo com a autora, “são as roupas que nos vestem, e não nós a elas”290. É possível perceber nitidamente esse raciocínio ao observarmos os retratos de Orlando em momentos distintos.

288 Estrutura feita de barbatana de baleia que criava uma enorme circunferência ao redor do corpo. Era utilizada para dar volumes às saias das mulheres da corte. A rainha Elizabeth I utilizava gigantescos farthingales em seu vestuário.

289 SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.55.

Figura 3 – Representação de Orlando quando embaixador. “Richard Sackville”,