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Penélope é uma personagem valorizada tanto na Odisseia como em A

odisseia de Penélope por sua relevância no enredo e sua característica

ambivalência, que, não esclarecida em nenhuma das obras, acrescenta uma profundidade misteriosa que atrai estudiosos há séculos.

Se, desde Homero, Penélope já era extremamente interessante, o processo de adaptação literária (que, segundo Hutcheon, sempre transforma a obra original em algo novo, definido tanto pela repetição como pela inovação) abre ainda mais possibilidades de leitura. No caso de A odisseia de Penélope, Margaret Atwood se propõe a abordar e discutir questões que não interessavam ao épico homérico, seja pela estrutura social e intelectual do período em que a Odisseia se desenvolveu na tradição oral, seja pela temática a que o gênero se prestava, explorando Homero e outras fontes da tradição em contraste com o papel feminino na atualidade.

Conforme apresentado, as vozes de Penélope e das escravas, as narradoras de A odisseia de Penélope, se distanciam criticamente da narrativa da

Odisseia, criando uma inversão irônica da obra homérica. A ironia, segundo

Hutcheon (1995, p. 31-32), tem o poder de desestabilizar, e seu uso nas reescritas de teor feminista funciona como uma arma que questiona e altera a interpretação do discurso patriarcal.

Em Homero, a narrativa se presta, desde os primeiros versos, a contar as aventuras do herói multiastucioso, Odisseu, cujo nostos se completa graças à preservação do oikos familiar por sua esposa Penélope. A rainha de Ítaca se encaixa nas expectativas de como uma mulher agiria idealmente na ausência do esposo, mantendo-se sexualmente fiel, demonstrando seus sentimentos de abandono e preservando a linhagem e os bens do marido, de acordo com suas habilidades e possibilidades.

Ainda que suas ações não tenham resultados perfeitos – vide o “cerco” dos pretendentes como resultado do ardil da mortalha –, Penélope figura, de sua limitada área de atuação, como uma engrenagem bem encaixada na máquina da Odisseia, agindo de modo a beneficiar o marido. Ela é bem sucedida, mas não a ponto de ameaçar a autoridade de Odisseu.

Atwood, em contrapartida, se propõe, também desde o princípio da narrativa – ou até mesmo antes, desde sua introdução –, a contar a história de Penélope, sua heroína falha e questionadora. A obra tira o holofote do retorno do herói e o foca no cotidiano do lar, espaço feminino por excelência, no qual as duas vozes narrativas, de Penélope e do coro, se posicionam para criticar, com o julgamento distanciado pelo tempo, não apenas a sociedade apresentada no épico e os papéis que lhes cabiam, mas também as imagens atribuídas a elas no decorrer dos séculos, raspando um palimpsesto de histórias e rumores em busca de uma “verdade” extremamente subjetiva, própria de cada uma.

A narrativa homérica e seus desdobramentos na tradição são atacados em A

odisseia de Penélope por meio de uma retomada metaficcional em que as

narradoras agem de modo iconoclasta contra a imagem da esposa perfeita de Odisseu, cada qual com suas estratégias e motivações. A voz de Penélope, mantendo a ambiguidade que apresenta na Odisseia, questiona o patriarcado (condenando Odisseu por seus adultérios) ao mesmo tempo em que se alinha com ele (não defendendo as escravas nem dos ataques dos pretendentes, nem do assassinato por Telêmaco). A voz das escravas, silenciada em Homero, radicaliza ao criticar tanto a Penélope homérica quanto a de Atwood, que não parece querer ir tão fundo assim em busca da verdade, usando variados argumentos e métodos.

Como este trabalho busca apresentar, Penélope é extremamente importante nas duas obras estudadas, apresentando figurações variadas em cada uma delas para alcançar seus objetivos. Para manter seu kleos, na Odisseia, ela engana os pretendentes, mantém o lar e preserva a memória de Odisseu apesar de todos os obstáculos: é sábia – periphron –, prudente e fiel. Sua ambiguidade e sua metis são usadas apenas contra os inimigos do oikos, os pretendentes, sempre figurando como esposa e mãe acima de tudo. Em Atwood, para rejeitar seu kleos de lenda edificante, Penélope propõe versões alternativas e aponta as contradições e tensões de sua história. Ela e as escravas se revezam em argumentos para destruir o ícone de lealdade e substituí-lo por figurações mais profundas, traiçoeiras e marginais. Não é à toa que Penélope tem vontade de gritar nos ouvidos femininos que não sigam seu exemplo: depois de tudo que fizera para manter-se à tona no barco afundando que era Ítaca (manipulando os pretendentes, aguentando em silêncio as traições do marido, arriscando as escravas – a primeira comunidade que parecia

aceitá-la – e condenando-as à morte), a tradição a transformara em nada além de um “chicote para fustigar outras mulheres” (ATWOOD, 2005a, p. 16).

A inter-relação entre as duas obras, e, principalmente entre as duas Penélopes, exemplifica extremamente bem a paródia destacada por Hutcheon como o tipo de produção artística típico da contemporaneidade. Mais do que recontar a

Odisseia, Atwood se propõe, anunciadamente, a retomar as interpretações dadas à

personagem Penélope em Homero, nas variantes mitológicas e nas leituras posteriores do clássico grego, em uma “combinação de homenagem respeitosa e ironia” (HUTCHEON, 1991a, p. 33). Quando Penélope e as escravas refletem sobre as diferentes releituras de suas vidas e, principalmente, sobre as várias interpretações de um só fato, criando múltiplas histórias, espelham as criações pós- modernas que tanto continuam a tradição quanto se libertam dela.

A Penélope fiel de Homero nada deve à Penélope crítica de Atwood como personagem. Ambas são complexas e fundamentais às narrativas que habitam, apesar de figurarem em papéis muito diferentes. Prova maior é o fato de a rainha de Ítaca ser perturbada pelo passado da Odisseia a ponto de querer contar a própria história mesmo sabendo que ninguém a ouvirá, e que nada no passado será alterado. Ela é assombrada não só pelos fantasmas das escravas e pela ausência renovada de Odisseu, mas, principalmente, pela própria Penélope homérica.

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