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Muitos homens, em diversas partes do mundo, experimentaram o teatro como uma ponte – sempre ameaçada – entre a afirmação das próprias necessidades pessoais e a exigência de contagiar com elas a realidade que os circunda.

Eugenio Barba

Além das Ilhas Flutuantes

O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.

João Guimarães Rosa

Grande Sertão: Veredas

Intencionalmente não nomeei esse fechamento como “conclusão” a fim de não dissimular as lacunas voluntária ou involuntariamente deixadas, mas também porque a pesquisa de que tratei nesta dissertação foi baseada em um experiência múltipla e aberta. Dessa forma, deixo para retomar nestas “considerações finais” a organização de um método que, justamente por ter sido desenvolvido pela prática e posterior análise dessa experiência cênica e reflexiva, não se propõe como um modelo fechado ou conclusivo. Não pretendo aprofundar demasiadamente tal formulação agora, mas apenas deixá-la mais evidente, o quê, após todo o percurso desenvolvido neste trabalho, se mostra mais produtivo.

Porém, antes de entrar propriamente na questão do método, e para que ela seja melhor tratada, gostaria de tecer algumas considerações sobre o trabalho com a recepção e os aspectos discutidos por ela, pois o que me parece mais relevante neste momento de duplo distanciamento – em relação à experiência e à análise dessa experiência – diz respeito a este aspecto. A análise realizada da oficina teatral sob o amparo da teoria mobilizada – as perspectivas críticas adotadas para a adaptação, a análise das falas da encenação, as relações entre elementos estéticos e teóricos da oficina e do teatro de aprendizagem de Brecht, entre outros aspectos – só ganhou sentido e força em sua relação com a recepção, pois foi a partir dela que se pôde realmente entender essa experiência.

Mesmo tendo integrado o grupo “grandesertão.br” e participado ativamente de suas atividades, e talvez, por outro lado, justamente por isso, fiquei impressionada no decorrer da pesquisa com a complexidade e quantidade de material reflexivo gerado pelos participantes. Fiquei surpresa igualmente em descobrir que apesar do trabalho ter sido realizado em contextos bastante diferentes, existiu um eixo comum nas discussões. Acredito que estas

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sensações não sejam resultado apenas da distância que a pesquisa tomou no tempo em relação às experiências práticas da oficina, mas acredito que se devam também à existência do registro de um trabalho já finalizado, o que me deu a oportunidade de analisá-lo como um todo e com um distanciamento também físico. Através da documentação resgatada das gravações, pude perceber tanto as particularidades como as semelhanças do desenvolvimento do trabalho com cada grupo de participantes. Assim, a experiência guardada na memória transformou-se e ampliou-se. Trabalhando com o registro audiovisual, não baseio a análise em algo pouco confiável como lembranças subjetivas e imprecisas, embora recupere neste trato justamente a memória da oficina, evitando a perda ou o esquecimento deste significativo material reflexivo.

Em relação ao teor das reflexões e discussões dos participantes da oficina, ater-me-ei aqui ao já referido eixo comum. Naturalmente, esse aspecto se deve em muito ao fato de a oficina, mesmo com as especificidades de cada contexto de realização, apresentar a mesma proposta em todos os lugares onde foi realizada: a experimentação cênica de um universo violento e a sua discussão. O próprio título da oficina “atores da violência – atores do diálogo” já indicava a proposta de que os participantes lidassem com a temática da violência encenada através da ação e da reflexão.

Porém, se é verdade que uma mesma proposta tende a uniformizar caminhos, isso não é definitivo na medida em que propostas surgem como pontos de partida para uma investigação. O que se descobrirá na investigação e os rumos que podem ser tomados neste caminho são surpreendentes. Pode-se até esperar, prever e torcer por determinada trajetória, mas não existe nenhuma garantia de quais caminhos serão seguidos, onde se chegará ou sequer se a proposta motivará algum debate ou investigação, pois cada contexto e público é sensível a diferentes aspectos do trabalho.

Em relação à recepção da oficina analisada, percebemos que em cada lugar de atuação, a proposta gerou processos diversos em relação à dinâmica geral da oficina, como o tempo e a intensidade dedicados à preparação e ao debate, os focos temáticos priorizados nestes debates e seu tom. Mas o que gostaria de ressaltar é que a relação entre o teor encenado e aspectos da realidade dos participantes ocorreu em todos os locais de aplicação da oficina, demonstrando uma proximidade entre realidades sociais de contextos tão diversificados.

A partir de um recorte de Grande Sertão: Veredas e da utilização de fragmentos de falas do romance, se propôs a encenação de um sistema de poder e violência através de discursos que remetem ao crime, à miséria, ao poder, à demagogia. Assim, sem dúvida, a

“universalidade” percebida nas discussões se deve em muito ao tratamento dado a estes aspectos por parte do autor Guimarães Rosa, que ao representar um sistema de poder e violência no sertão, trata da própria lógica do “poder” e da “violência”. Por outro lado, foi o teatro que possibilitou a discussão na sua dimensão coletiva. Através do teatro, esperava-se que o espectador-leitor não apenas pudesse reconhecer esses discursos, mas experimentá-los. E foi desta experimentação que surgiu este eixo comum a quase todos os grupos de participantes: a autonomia em relacionar a obra à realidade.

Esse diálogo ativo com a obra literária por meio da adaptação cênica foi o que me permitiu, ao aprofundar a discussão dessa experiência, organizá-la em um método de aprendizagem autônomo. Este esteve de alguma forma sempre latente e foi se desenvolvendo na prática do trabalho teatral na medida em que o aprendizado ia sendo construído de forma coletiva, dinâmica percebida por uma espectadora:

Eu gostaria de agradecer muito mesmo, porque eu acho que esse é o único trabalho assim digamos de formação, fora as palestras, mas que propõe que as pessoas atuem, né? Que façam interferências, é um workshop prático diria né? Ele cruza o teatro e a literatura, mas com esse objetivo de ter uma compreensão melhor da obra e também do nosso contexto social. (Ana Célia72 – 2006: São Bernardo do Campo-SP)

Um método anti-modelo

Pensar então numa formulação mais objetiva desse método só foi possível através da relação entre práxis e teoria desenvolvida nesta dissertação. Como vimos, principalmente no último capítulo, mesmo que a oficina não tenha sido explicitamente elaborada com base em um conjunto teórico, ela possuía uma proposta e um método, que foi se desenvolvendo ao longo de sua prática e reflexão. O que se buscou aqui foi justamente aprofundar e organizar os elementos teóricos e estéticos presentes ou relacionados a essa experiência, juntamente à sua relação com a recepção. Assim, através da análise da experiência cênica e suas relações com a teoria, principalmente a respeito da peça de aprendizagem de Brecht, é possível apresentar um método de aprendizagem para se trabalhar com textos literários através do teatro, visando assim a participação ativa do leitor na obra.

Dessa forma, a aprendizagem em relação à obra literária que se propõe neste método é, com diria Brecht, dialética e autônoma na medida em que é construída na prática de um

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Ana Célia foi uma das organizadoras do evento “Mire e Veja: o sertão está em toda parte – Leituras e percursos com Grande Sertão: Veredas”, que ocorreu entre os dia 24 de agosto e 23 de setembro de 2006, no qual a oficina se realizou. Apesar de não ter podido participar da oficina, seu apoio e colaboração foram fundamentais para o bom resultado do trabalho.

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trabalho teatral que estimula a experimentação e a reflexão. Assim, este método – que envolve literatura e teatro, manifestações artísticas que dissolvem as fronteiras entre ficção e realidade – visa proporcionar um mergulho profundo na obra literária trabalhada em diálogo com questões políticas e sociais dos contextos de seus participantes.

Da mesma forma que a autonomia em relação ao modelo literário é primordial neste método – assim como em Brecht –, essa autonomia deve ser aplicada em relação ao método exposto aqui. Porém, o uso nesta dissertação de conceitos como “modelo” e “método” devem ser diferenciados, a fim de se evidenciar a intenção da proposta cênica da oficina analisada, assim como sua ampliação em um método:

O modelo é efetivamente exemplar na medida em que nos propõe

uma organização coerente dos diferentes elementos de uma representação teatral desta ou daquela peça, um certo número de relações

entre a linguagem literária e a linguagem cênica. Mas é enganador na

medida em que nos faz acreditar que poderemos reencontrar esta organização em outra representação da mesma peça, em condições sociais e políticas diferentes, para outro público. Partindo do “modelo”

devemos voltar ao método, e o que precisa ser seguido é este método, não o “modelo”. Cada apresentação de Brecht deve obrigar-nos a colocar de novo o problema de relacionamento entre todos os elementos, não somente do espetáculo mas também da representação, entendida em seu sentido mais amplo (inclusive as relações palco-platéia). (DORT, 1977, p. 328, realce meu)

Assim, o método proposto em questão não configura-se como um modelo a ser seguido, mas um método de trabalho vivo, em que o aprendizado ocorra para e com todos, e que possa ser aplicado e experimentado nos contextos dos participantes e adaptado conforme surjam novos interesses e necessidades. Propõe-se um método para que se crie um novo método, como parece ter ocorrido no trabalho do grupo “grandesertão.br” a partir do “método” brechtiano. Como vimos, muitas das propostas do dramaturgo foram incorporadas e adaptadas na oficina aqui tratada. Além do mais, a experiência desta oficina teve dinâmicas diferentes em cada lugar em que ela foi realizada, pois o público e os participantes de cada contexto exigiram desenvolvimentos, ritmos, experimentações e discussões bem particulares. Não caberia desse modo propor assim um modelo:

Somente a utilização deste método radical é capaz de provocar este trabalho em comum entre o palco e a platéia que é o de tomar posição em relação à realidade comum a ambos – trabalho no qual Brecht via a própria função do teatro. Então poderemos falar não da eficácia imediata do teatro de Brecht, mas de sua produtividade social, podemos procurar superar a pseudo-oposição entre um teatro de pura cultura e um teatro de ação direta, e

denunciar esta falsa alternativa como um produto ideológico da sociedade neocapitalista. (DORT, 1977, p. 328)

O teatro no meio do caminho: arte e realidade

A função social do teatro levantada por Brecht, que pretende fazer com que o ator e o espectador tomem posição em relação à realidade, me fez refletir justamente sobre a relação entre arte e realidade, por esta ter sido discutida nos debates promovidos, e por estar, dessa forma, presente no método de aprendizagem evidenciado. O motivo da escolha em se discutir aspectos da realidade através da ficção ficou mais claro após a realização desse estudo. A ficção se mostrou um bom instrumento de análise, como pudemos observar nos debates entre os participantes e na própria teoria subjacente às obras aqui discutidas. Dessa forma, ela é parte – material e meio – do método tratado aqui. A partir da ficção (literatura) e através dela (teatro) pôde-se tanto discutir elementos da realidade como perceber o quão ficcionais – no sentido de “fabricados” – são os discursos e sistemas existentes em nossa realidade. A estetização que pretende cristalizar regimes, pensamentos e sistemas não passou desapercebida por Brecht, Goethe ou Rosa. Reativamente, é também a partir da estética que esses autores desconstroem os sistemas e pensamentos vigentes e propõem alternativas a eles: Goethe se utiliza principalmente da ironia; em Rosa, o grande recurso é sua “(re)invenção linguística”; e Brecht apresenta sua intervenção por meio dos diversos recursos já tratados de seu teatro, principalmente e mais sinteticamente no estímulo a uma tomada de posição crítica por parte do espectador.

O diálogo entre ficção e realidade se amplia muito no teatro e daí uma boa razão para o dramaturgo ter acreditado poder realizar mudanças através de seu teatro: “mergulhar-se, como grupo, no círculo da ficção para encontrar coragem de não fingir” (Barba, 1991, p. 144). Além disso, o teatro é o lugar por excelência das relações humanas: “Produto de um coletivo de linguagens em combinação e luta, é também sempre o produto imediato de um específico coletivo humano, onde a ação do sujeito encontra seu espaço na luta e no acordo com outros sujeitos” (PASTA, 1986, p. 14). É neste espaço, “entre todos o mais „dramático‟, por fronteiriço, instável, múltiplo” (PASTA, 1986, p. 15), que nas mais diversas épocas se buscou e ainda se busca compreender, reagir e interagir com a realidade.