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Considerações iniciais

No documento Monarquia e República (páginas 118-121)

ProBLEMas PoLítICos José mauricio de carvalho *

1. Considerações iniciais

A Europa começou o século XX sob o impacto de mudanças significativas. Tais transformações sempre causam inquietação nos homens porque os colocam diante do inesperado que povoa sua existência. A vida rotineira, as instituições consolidadas e as formas de pensamento instaladas não têm uma resposta pronta para os novos desafios quando eles surgem no horizonte. Emerge, na consciência das pessoas, a percepção de que além daquilo que planejam algumas coisas lhes chegam e exigem mudança no seu modo de viver e pensar, querendo elas ou não. A relação entre crises históricas e uma desorientação provocada pelas mudanças profundas da vida foi um tema caro à Ortega y Gasset1 pelas implicações políticas e fez parte de suas análises sobre a conjuntura histórica. Foi detalhado em ensaios como Ideas y creencias e em livros como En torno a Galileo onde a vivência negativa e desorientação com as novidades “deixa o homem sem saber a que agarrar-se nem o que fazer” (MIÚDO, 2007, p. 123). Nessas ocasiões é preciso buscar um novo entendimento das coisas e também novos modos de organização social e política. É

* Universidade Federal de São João del-Rei (Brasil). Departamento de Filosofia.

1 José Ortega y Gasset, escritor e filósofo espanhol, nasceu e morreu em Madrid, respectivamente nos anos de 1883

e 1955. Começou seus estudos no Colégio Jesuíta próximo à Málaga (Andaluzia). Mais tarde estudou nas Universi- dades de Marburgo, Leipzig e Berlin (Alemanha). Voltando à pátria em 1914 tornou-se professor na Universidade de Madrid. Em 1923 fundou a conhecida Revista do Ocidente. Em 1931 teve breve experiência política, elegendo-se deputado da República. Entre os anos de 1920 e 1933 desenvolve suas principais ideias políticas que examinaremos neste trabalho. Com a explosão da Guerra Civil em 1936 é obrigado a deixar a cátedra e refugiar-se no exterior. Reside muito tempo longe de seu país em vários países: França, Holanda, Portugal e Alemanha, voltando à Espa- nha em 1948. No mesmo ano funda com Julián Marías o Instituto de Humanidades. Suas obras mais importantes são: Meditações do Quixote, A Desumanização da Arte, A rebelião das massas e O Homem e a Gente. Ortega y Gasset desenvolveu uma filosofia da vida, partindo de fonte diversa da empregada por Unamuno. Ele foi discípulo de Her- man Cohen, mas revela influência de vários autores como observa Sciacca (1968): “Notam-se nele, além da escola neokantiana, as influências do historicismo de Dilthey, do relativismo de Simmel, do intuicionismo de Bergson e do vitalismo em geral” (v. III, p. 199).

o que Ortega y Gasset procurará fazer com sua atuação política pela qual esperava alterar a circunstância e construir uma nova Espanha e uma nova Europa.

No início do século XX surgiram dificuldades que afetaram não só os indi- víduos ou nações isoladamente, mas toda a toda a Europa cujos domínios cul- turais iam além dos limites geográficos do continente. Por esse motivo, quando Edmund Husserl começou a falar de crise da consciência européia por volta de 1930, podemos entender que as dificuldades que ele percebia eram perceptíveis, ao menos, em todo o ocidente. O destino de grande parte da humanidade estava como que suspenso naqueles dias de transformação, pedindo que se investigasse o significado do mundo e a realidade do homem. O filósofo francês Roger Garaudy coloca a raiz da mencionada dificuldade num duplo malogro (1966): “O malogro de um duplo dogmatismo: o da religião e do cientificismo” (p. 11). A síntese do pensador francês para os problemas de então faz sentido porque abarca a revisão que se segue do conhecimento da natureza, da história e de nossa responsabilidade com a existência que temos para viver. Esses acabam sendo os problemas marcantes da filosofia e da ciência na contemporaneidade, encontrar respostas para os problemas que emergiram dessa crise.

Os problemas surgidos com a mudança profunda na vida durante as primeiras décadas do século XX afetaram não só a forma de pensar, mas também a organização social e política das sociedades nacionais. Embora a Europa apresentasse dificuldades comuns a todas as nações, os diversos países construíram respostas particulares, teceram uma espécie de roupagem própria para enfrentar as dificuldades amplas que se abateram sobre o ocidente. O fato deu a sensação de uma particularização da crise, pelo menos foi o que começou a pensar o filósofo espanhol Ortega y Gasset, cada nação deveria buscar suas respostas próprias, sem prejuízo dos seus intelectuais buscarem também explicações mais amplas do fenômeno.

Neste trabalho vamos começar abordando a compreensão orteguiana da crise da Europa, privilegiando o entendimento das soluções políticas que propôs para ela. Nossa atenção privilegiará os escritos políticos posteriores a 1920 quando seus comentadores consideram que o filósofo alcançara a maturidade intelectual. Há ainda um outro motivo para tomarmos a data como referência geral: os desafios políticos ficaram potencializados com o término da Iª Guerra Mundial e a Revo- lução Socialista na Rússia em 1917. Mudou a realidade política do continente o que pedia que as nações se posicionassem no novo quadro.

Todas as mudanças não passaram despercebidas ao filósofo que nelas enxergou inspiração para pensar os problemas da Espanha e propor uma forma hispânica

de pensar os desafios daqueles dias2. Examinar os elementos políticos da proposta orteguiana para a Espanha enfrentar os problemas de então, notadamente as investigações intelectuais decorrentes de sua atuação parlamentar, é o propósito principal deste trabalho. Nos volumes de El Espectador o filósofo desenvolveu meditação imprescindível para entender seu pensamento político. Ali fez um balanço da discussão política para o corpo de suas ideias3.

Mesmo não sendo a política o núcleo da vida intelectual das pessoas, boa parte dos problemas vividos naqueles dias passava pela política, esclarece Ortega y Gasset. Estavam nela as esperanças de enfrentar as tarefas diárias que surgem no convívio social. A vida em grupo é muito mais importante na sociedade contemporânea que foi noutros tempos de nossa história, razão pela qual a pro- blemática política ganhou destaque. O vínculo entre a política, inspiração moral e os problemas sociais leva Ortega y Gasset a concluir que o destino humano está associado à capacidade das pessoas de pensar a vida social e fazer política. Chega a esta compreensão em Antitópicos do seguinte modo (1931): “o destino

2 A resposta de Ortega y Gasset para os problemas daquele tempo a partir da sensibilidade hispânica é um pensamento

metafísico que aproxima o eu e a circunstância. Consiste nisso o núcleo de seu pensamento filosófico. O assunto foi elaborado nas Meditações do Quixote e nos livros que compõem a coleção El Espectador. Os aspectos fundamentais da metafísica orteguiana foram estudados no artigo publicado na Revista de Ciências Humanas da UFSC. Ali escrevemos (2009): “É importante entender o que significa circunstância para se chegar ao objeto central da filosofia orteguiana: a vida. A vida é única e não se confunde com circunstância, pois ela não é pura recepção do que se passa em volta do eu, explica Ortega y Gasset em Temas de viaje (1922). A vida é o que cada pessoa faz com a circunstância como já comentamos (CARVALHO, 2002, p. 71): “mesmo que fossem iguais os elementos da habitação, não seriam iguais as vidas de dois gêmeos uni vitelinos que vivessem juntos no mesmo local”. Dito de outro modo, vida é realidade radical que aproxima eu e circunstância. A conhecida passagem orteguiana eu sou eu e minha circunstância encontrada nas Meditações do Quixote une o eu e a circunstância de modo inseparável. A realidade vital é a vida, eu estou aqui no meio de muitas coisas: sentimentos, ideias, valores, época, sociedade, com as quais permaneço em relação enquanto vivo. Eu e circunstância interagem e se completam. A vida é o resultado desta relação, mas não se confunde com ela, eu e circunstância só se deixam ver de verdade na vida que é a realidade concreta e real. O principal estudioso da filosofia orteguiana precisa este núcleo metafísico do seguinte modo (1991): Encontro-me, pois, desde logo, na vida, encontro- me vivendo, na vida encontro as coisas e me encontro a mim mesmo; isto é, a vida é o primário, é anterior as coisas e a mim, me é dada, sem suma, e tanto o eu como as coisas são secundárias a ela, ingredientes seus, realidades derivadas, ou, se se prefere, realidades radicadas nela, que é, ao contrário, a realidade radical (MARÍAS, 1991; p. 27). Considerar a vida como o núcleo da metafísica orteguiana exige que a consideremos como algo maior do que um fenômeno biológico, exige enxergá-la como expressão de valores: “apontar a vida como o grande problema a ser investigado não significa mergulhar numa forma de viver primitiva, anterior à estruturação da cultura e seus valores” (CARVALHO, 2004; p. 69). E diríamos ainda mais. Segundo Ortega y Gasset a situação concreta, nuclear e vital do sujeito é o ponto de onde se parte para pensar toda a realidade: “o filósofo olha a vida como um princípio, e um princípio é de natureza racional, é uma forma de esclarecimento da razão” (p. 332-333). O resumo do núcleo da metafísica orteguiana nesta nota é suficiente para a compreensão do assunto, razão pela qual não vamos considerar à questão no corpo do texto.

3 No primeiro ensaio de El Espectador intitulado Verdad y Perspectiva, Ortega y Gasset expressa convicção que orienta

sua meditação sobre política. Para ele as ideias políticas são importantes, mas não são o centro de nossa vida mental. Se elas assumem tal condição estabelecem uma doença grave em nossa vida intelectual. Afirma (1998): “A política ou o pensamento útil é uma saudável força de que não podemos prescindir (…), mas quando a política entra na consciência e preside toda nossa vida mental, se converte em uma doença gravíssima” (p. 16).

é a política e vice-versa. Política é o conjunto de problemas que é preciso aceitar (…) a vida não tolera o capricho, ela é uma coisa muito dura, muito séria, com que é forçoso lidar” (p. 152).

2. Raiz da crise vivida na España: as relações entre maiorias e minorias

No documento Monarquia e República (páginas 118-121)