• Nenhum resultado encontrado

Considerações para desenvolvimento do estudo no âmbito prisional

O Capítulo II da Lei de Execução Penal, no artigo 10, dispõe que “a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.”

O artigo 11 acrescenta que a assistência será I - material; II - à saúde; III -jurídica; IV - educacional; V - social e VI - religiosa.

Não há quaisquer dúvidas sobre o dever do Estado: prevenção do crime e orientação do preso quanto a seu retorno à convivência em sociedade.

Quaisquer pensamentos sobre responsabilidade civil têm ocasião exatamente quando se viola um dever legal.

Ao dispor, na seção V, do Capítulo II da Lei de Execução Penal135, sobre a assistência educacional, o legislador o faz com o objetivo precípuo de ressocializar.

Em plena era digital, em que muitas escolas, faculdades e universidades oferecem ensino a distância, é inconcebível pensar que o Estado prescinda de estrutura básica para o atendimento desta regra que, minimamente, deveria ser fundamental.

Há de se destacar que:

Em um espaço repressivo, como é o caso das prisões, a escola tem seu significado e sua essência mantidos, no estabelecimento de vínculos e de intersubjetividades. Se buscamos caminhos para a educação brasileira por se acreditar na sua transformação, se buscamos uma sociedade mais justa em favor daqueles que historicamente tiveram negado o acesso aos direitos essenciais à vida humana, e entre eles os direitos educativos, se apostamos no poder dos educadores porque em qualquer situação o possível existe e pode ser realizado, desde que tenhamos desejo de mudança, há que se incluir, nessa possibilidade, a educação dos excluídos que vivem no interior das unidades prisionais.136

Na prisão, há leis próprias que são criadas pelo “poder legislativo” dos Sentenciados, para uma convivência “harmônica”.

Se o Estado fornecesse apenas os meios para que eles pudessem estudar, exemplificativamente, não haveria quaisquer empecilhos como superlotação, falta de pessoal preparado, pois eles mesmos se organizariam para a realização da tarefa, simplesmente porque teriam um objetivo: remição da pena e progressão de regime.

Não desconsideramos que, obviamente, muitos, por opção, não participariam do processo restaurativo, mas o que não se pode negar é que parte deles participaria. No entanto,

135 Art. 17. A assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado.

Art. 18. O ensino de 1º grau será obrigatório, integrando-se no sistema escolar da Unidade Federativa. Art. 19. O ensino profissional será ministrado em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico. Parágrafo único. A mulher condenada terá ensino profissional adequado à sua condição.

Art. 20. As atividades educacionais podem ser objeto de convênio com entidades públicas ou particulares, que instalem escolas ou ofereçam cursos especializados.

Art. 21. Em atendimento às condições locais, dotar-se-á cada estabelecimento de uma biblioteca, para uso de todas as categorias de reclusos, provida de livros instrutivos, recreativos e didáticos.

136 Disponível em: http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais16/sem01pdf/sm01ss09_01.pdf. Acessado em: 30 de maio de 2013. EDUCAÇÃO DE ADULTOS PRESOS: RESGATANDO A CIDADANIA PELA LEITURA E ESCRITA. Elenice Maria Cammarosano Onofre.

a propósito de uma pretensa pequena adesão e dadas as desculpas do Estado quanto a superlotação e falta de pessoal, retira-se complementamente do Sentenciado sua única possibilidade de sair da vida da delinquência: formação educacional e profissional.

O não atendimento ao que preceitua o artigo 20 da Lei de Execução Penal, sobre a possibilidade de realizações de convênios com entidades públicas ou particulares, expõe a desprezível, e ao mesmo tempo incompreensível, atuação do Estado: opta-se por manter na ignorância um número grande de presos e, em decorrência, continuar a construir dezenas de penitenciárias, em vez de por iniciar o processo de ressocialização, talvez em razão de esta última iniciativa conter o potencial de subsidiar pessoas intelectualmente, com o que poderiam se voltar contra tantas arbitrariedades do Estado.

Interessa-nos, nesse sentido, determo-nos sobre o depoimento de Luciano Silva:

[...] sem dizer que, nos dias de hoje, nossas prisões nada mais são que a herança das prisões do tempo da ditadura. Eu não vi e não vivi na época, mas li muitos livros e artigos a respeito. Vivo hoje a ditadura de 2013: do passado até o presente, o que mudou só foram os governantes e a forma que eles agem nestes tempos modernos. E vale lembrar que grandes chefes de nações, por exemplo o Lula e a Dilma, no Brasil, e Nelson Mandela, na África do Sul, foram presidentes da República em seus países e com uma coisa em comum comigo: todos foram ex-presidiários, [assim] também tantos outros políticos do nosso país que estão em pleno poder. Então, por que não olham com mais humanidade e menos preconceito [para nós, os sentenciados, e reconheçam] que merecemos o direito de oportunidade? Que vocês, governantes, façam algo concreto para ressocializar o sentenciado, pois só assim as condições dos presos do nosso país verdadeiramente mudarão. E que possamos viver dignamente as nossas vidas ao lado de nossas famílias. [Dessa forma,] com certeza menos reincidência de crime haverá! [...]

A propósito desse investimento na formação educacional dos presos, podemos evocar a utilidade e conveniência do ensino a distância para o processo. Bastaria, para sua operacionalização, que o Estado autorizasse a remessa de material de estudo, sem restrições quanto ao endereço de onde partisse a demanda.

Esse primeiro passo, no entanto, ainda não seria suficiente. A superlotação, a falta de higiene, entre outras condições desumanas que caracterizam as celas brasileiras, não forneceriam um ambiente adequado para ensejar qualquer tipo de estudo. Às dificuldades que o preso atravessa em razão da violação de seus direitos, somar-se-ia uma outra: estudar em meio a tão conturbado e inapropriado ambiente.

Há iniciativas que pretendem efetivar a formação educacional, tal como ocorre com um projeto de incentivo à leitura voltado aos presos catarinenses.

A gente vive apenas dentro deste mundo, e ler me ajuda bastante”, revela, timidamente, M.Z., que está cumprindo pena no Presídio Regional de Joaçaba (SC) por tráfico de drogas. Agora, aos 40 anos, ela começa a descobrir o prazer da leitura e desbravar outra realidade a partir de grandes clássicos. Márcia e outros 60 detentos fazem parte do Projeto Reeducação do Imaginário, implementado há oito meses na Vara Criminal do município, pelo juiz de Direito Márcio Umberto Bragaglia.137

Para este juiz,

O projeto visa à reeducação do imaginário dos apenados pela leitura de obras que apresentam experiências humanas sobre a responsabilidade pessoal, a percepção da imortalidade da alma, a superação das situações difíceis pela busca de um sentido na vida, os valores morais e religiosos tradicionais e a redenção pelo arrependimento sincero e pela melhora progressiva da personalidade, o que a educação pela leitura dos clássicos fomenta.138

Observa-se, aqui, que por meio da ação do Poder Judiciário, intervenção importante para dar vida à lei, implantou-se o Projeto Reeducação do Imaginário.

O entrave da inadequação do ambiente para a implementação dos estudos teria, ainda, um desdobramento: seria necessário destacar um recinto específico para a realização das avaliações, prática obrigatória na modalidade de ensino a distância.

Outra demanda, além do lugar, seria pessoal administrativo para aplicar as avaliações, algo, no entanto, bem mais plausível de ser resolvido do que o atendimento às providências anteriores. Sob que justificativa se alegaria a insuficiência de funcionários para esse mister, uma vez que tais aplicações costumam ocorrer, em média, duas ou três vezes no semestre, seis vezes ao ano, no máximo?

Considerando-se a necessidade – diríamos, inclusive, urgência – da implementação das medidas até aqui discutidas, que proporcionem reeducação ao Sentenciado, devemos perguntar: qual é o dano que o Estado causa na vida do indivíduo quando não o ressocializa?

Podem-se tecer algumas considerações.

137 Disponível: http://www.livrosepessoas.com/2013/07/23/projeto-com-presos-catarinenses-estimula-a- reeducacao-atraves-da-leitura/ Acesso em 25 de junho de 2013.

138 Disponível: http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2012/11/presos-que-lerem-dostoievski-terao-pena- reduzida-em-comarca-de-sc.html. Acesso em 25 de junho de 2013.

1. Ao retornar à sociedade, qual será a função social deste indivíduo dentro dela? Independentemente do crime cometido, este indivíduo é um filho, um pai de família, um irmão, um tio, enfim, um parente de alguém, possivelmente com a necessidade de manter a própria família ou a si próprio.

Mas em quais condições a sociedade o recebe? Nas mesmas em que acabou de sair da cadeia: como um preso, ou melhor, como sendo, a partir de então, o eterno ex-presidiário, que, obviamente, não recebeu do Estado quaisquer amparos para que se ressocializasse. De volta à sociedade, dificilmente encontrará empresas que lhe deem bolas para serem costuradas ou condições mínimas de sobrevivência.

Quando este indivíduo for procurar se recolocar no mercado de trabalho, quais serão as suas chances reais, considerando-se, além do rótulo inseparável que lhe deprecia, a ausência quase completa de qualificação?

Se, por um lado, a sociedade lhe fecha as portas, ele e sua família, por outro, não deixam de ter necessidades. E estas, sobretudo quando não são satisfeitas, costumam transformar negativamente as pessoas.

2. A pecha de ser o eterno ex-presidiário.

Quando se pensa na ressocialização, há de se considerar que dificilmente um ex- presidiário consegue um trabalho. O estudo, sem dúvida, pode lhe deparar oportunidades, mas a folha de antecedentes sempre deporá contra ele. Ora, se ele já pagou o que devia para a sociedade, não lhe caberia como direito estar isento de tal negativação? Em outras palavras, o acesso ao histórico passado de condenações não deveria ser uma prerrogativa exclusiva do Poder Judiciário, especificamente dos membros do Ministério Público e dos Magistrados?

No entanto, subsiste, à semelhança de um traço hereditário, para quem quer que deseje examiná-la, a marca de ex-presidiário, com a qual, efetivamente, sua reinseção na sociedade fica bem difícil.

Na prática, as seguintes situações são encontradas pelos egressos do cárcere:

Depois que saí de [fui posto em] liberdade pela primeira vez, me deparei com diversas dificuldades. Exemplo: donos de empresas (empresários) não me deram uma simples oportunidade; ao contrário, fecharam as portas e ignoraram minha força de vontade. Em pouco tempo, fiz diversas entrevistas para empregos, algumas empresas até gostaram da minha postura, do meu diálogo etc. Mas ao se depararem com minha ficha criminal, fui condenado pelo passado. Só esqueceram que sou ser humano e mereço uma oportunidade. (Alex Leandro Bispo dos Santos)

[...] Neste período que estive em liberdade, não tive a oportunidade de trabalho, porque infelizmente todas as portas foram fechadas para mim. Vagas para emprego

até tinha [havia]. Mas quando relatava minha vida de ex-presidiário, ninguém me aceitava. Sempre alegavam que não seria possível, por eu ter problema com a justiça e ser ex-presidiário, e isso me deixava muito frustrado. (Luciano Silva)

[...] Minha primeira dificuldade foi me ressocializar com as pessoas, pois pude ver como as pessoas são preconceituosas com quem passa na [pela] cadeia, principalmente nos [em razão dos] crimes de assalto. As pessoas olham pra você com desconfiança, observam todos os seus movimentos quando você entra em algum lugar, como numa casa de uma pessoa que saiba que você estava preso, numa loja, supermercado etc. São muitos os preconceitos sofridos pelas pessoas que passam na [pela] cadeia. Um emprego? Nem pensar! Quando é puxado seu antecedente criminal e é visto que você foi condenado por assalto, a primeira coisa que vão pensar é que você vai trabalhar ali para mandar alguém até o local cometer um roubo. Ou até mesmo, quando acontece alguma situação onde você trabalha, a primeira pessoa que vai se tornar um suspeito é aquele que tem antecedente criminal. Isso quando não corre o risco de ir preso, injustamente, na covardia. Muitas vezes presenciei acontecer isso, já estive preso com várias pessoas assim [...]. (Anderson Souza Roza)

Embora a Lei de Execução Penal discipline a assistência aos egressos139, constata-se, como exposto anteriormente, a inexistência de sua aplicação.

Vale pôr em relevo a descrição de Percival de Souza:

O Brasil possui hoje 514 mil prisioneiros, representação da quarta maior população carcerária do mundo, perdendo apenas para os EUA (2,2 milhões), China (1,6 milhão) e Rússia (740 mil). Só que a disponibilidade brasileira de vagas é de 306 mil, em 1.312 estabelecimentos prisionais – déficit, portanto, de 208 mil vagas. Criar uma vaga nova custa hoje pelo menos R$ 20 mil. Assim, suprir as vagas custaria R$ 4,2 bilhões. O DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) calcula que deste meio milhão de presos, 37% são provisórios. Laborterapia? 82% não trabalham. É preciso subsidiar a ociosidade. O custo de um preso chega a R$ 1.500,00, aumentando para R$ 4.500,00 em presídios de segurança que se pretende máxima, mas não consegue ser. Nelson Mandela, com o seu sofrimento de 30 anos no cárcere, ensinou: “Para avaliar a situação socioeconômica de um país, visite as suas prisões”.140

Pergunto a um homem que passou aproximadamente cinco anos no Regime Disciplinar Diferenciado (em que só se dispõe de livros, não há televisores nem rádios, e o sentenciado fica sozinho em uma cela fechada a ponto de não enxergar sequer o pátio, em um

139 Art. 25. A assistência ao egresso consiste:

I - na orientação e apoio para reintegrá-lo à vida em liberdade;

II - na concessão, se necessário, de alojamento e alimentação, em estabelecimento adequado, pelo prazo de 2 (dois) meses.

Parágrafo único. O prazo estabelecido no inciso II poderá ser prorrogado uma única vez, comprovado, por declaração do assistente social, o empenho na obtenção de emprego.

Art. 26. Considera-se egresso para os efeitos desta Lei:

I - o liberado definitivo, pelo prazo de 1 (um) ano a contar da saída do estabelecimento; II - o liberado condicional, durante o período de prova.

Art. 27. O serviço de assistência social colaborará com o egresso para a obtenção de trabalho.

140 SOUZA, Percival de. Cárceres Selvagens. Tribuna do Direito. Ano 20, nº 237 (São Paulo, janeiro de 2013), p. 12.

universo que é equivalente, em tamanho, a um banheiro de um apartamento médio – mais ou menos, cinco metros quadrados) se ele gosta de determinado gênero literário, pois havia lido inúmeros livros durante o confinamento. A resposta é surpreendente: o hábito da leitura que, sem dúvida, é excelente, para ele tornou-se algo difícil, pois leu compulsoriamente muitos livros, já que foi esta a opção encontrada para não enlouquecer. Atualmente, a experiência com a leitura o remete inescapavelmente a lembranças ruins e sensações que transformaram um hábito prazeroso numa tarefa insuportável e traumática.

Esta opinião reflete a experiência comum de um sem-número de Sentenciados.

Vejamos, a seguir, a divulgação de dois exemplos de situações em que o Estado viabiliza condições mínimas para a ressocialiazão, prova inequívoca de que a adoção desta medida é possível.

Presos do Sistema Penitenciário participam até quinta-feira (25) da próxima semana do Curso de Mediação de Leitura. Parceria entre a Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos e a Fundação Cultural de Curitiba permitiu também a doação de livros para o programa de remição de pena pelo estudo e leitura, implantado pela Secretaria nos estabelecimentos penais do Estado.

Participam do curso 35 mulheres na Penitenciária Central Feminina do Paraná (PCEF) e 20 homens da Penitenciária Central do Estado (PCE), unidades de regime fechado instaladas em Piraquara, Região Metropolitana de Curitiba. O curso é ministrado pela Fundação, no recesso escolar, como reforço ao Projeto de Remição da Pena pelo Estudo através da Leitura.

A parceria foi firmada com a Coordenadoria de Educação, Qualificação e Profissionalização de Apenados, do Departamento de Execução Penal (Depen), vinculado à Secretaria de Estado da Justiça.

DOAÇÃO – Em outra ação, a FCC vai doar cerca de 500 livros ao Depen, pela Casa da Leitura. A entrega será feita às 10 horas desta quarta-feira (17/07), na sede da FCC. A doação de livros surgiu com o curso de Mediação de Leitura denominado “A Fase Hieroglífica do Pensamento”, que será ministrado por dois servidores da FCC. O curso consiste em intervenções orientadas e quatro eixos condutores: Leitura, Literatura, Contação de Histórias e Ludicidade.141

Presos vão poder diminuir pena com horas de leitura.

BRASÍLIA - Os presos que se dedicarem à leitura de obra literária clássica, científica ou filosófica poderão ter as penas, em regime fechado ou semiaberto, reduzidas. A cada publicação lida, a pena será diminuída em quatro dias. No total, a redução poderá chegar a 48 dias em um ano com a leitura de até 12 livros, de acordo com a Portaria 276 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) publicada nesta sexta-feira no Diário Oficial da União.

As normas preveem que o detento terá o prazo de 21 a 30 dias para a leitura de uma obra literária disponibilizada na biblioteca de cada presídio federal. Ao final, terá que elaborar uma resenha que será analisada por uma comissão de especialistas em assistência penitenciária. O participante do projeto contará com oficinas de leitura.142

141 Disponível em: http://www.aen.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=75563&tit=Parceria-leva- estudo-e-leitura-para-presos. Acessado 27/07/2013.

142 Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/presos-vao-poder-diminuir-pena-com-horas-de-leitura-5284411. Acessado em 19 de dezembro de 2012.

Já na antiguidade clássica, Platão escrevia em sua obra “A República” um raciocínio, a nosso ver ainda hoje atual, que tomamos à guisa de censura não aos projetos em si, mas à forma como são levados a efeito: “tudo que é imposto pela força não permanece na alma”.

Não existe estímulo, o famoso “mecanismo de recompensa” é anulado. Não há, por parte do Estado, nada que mereça ser chamado de “ressocialização”. Apenas o “punir” permanece.