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Considerações sobre a unidade, hierarquia e sistematicidade do

2. LIMITAÇÃO DOS EFEITOS DA DECISÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE

2.4. Valor jurídico do ato inconstitucional

2.4.1. Considerações sobre a unidade, hierarquia e sistematicidade do

O Direito é um conjunto coordenado de normas jurídicas. Não é apenas uma norma jurídica isolada, mas sim uma variedade de normas jurídicas ligadas entre si, formando um ordenamento. Dessa maneira, o ordenamento jurídico é um conjunto de normas jurídicas de conduta, de competência e de estrutura que regulam o comportamento humano e as condições e procedimentos para o surgimento de novas normas jurídicas válidas245.

No mundo moderno, os ordenamentos jurídicos são complexos, isto é, as normas jurídicas emanam de diversas fontes, pois nenhum poder ou órgão consegue satisfazer sozinho a necessidade de criação de regras de conduta numa sociedade. O poder supremo originário utiliza-se de dois métodos para a produção de normas jurídicas: 1) recepção de normas já produzidas por ordenamentos diversos e precedentes; e 2) delegação do poder de produzir normas jurídicas a poderes ou órgãos inferiores. Contudo, em que pese a diversidade de órgãos produtores de normas jurídicas, pode se dizer que o ordenamento jurídico possui unidade, pois o poder supremo originário é o ponto de referência de todas as normas do ordenamento jurídico246.

243 MEDEIROS, Rui. A decisão de inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Católica, 1999. p. 673-4 e 724-32.

244 O ordenamento jurídico estipula efeitos jurídicos negativos ao ato inconstitucional. Este desvalor atribuído pelo ordenamento jurídico ao ato inconstitucional confirma a supremacia da Constituição. Contudo, em casos excepcionais, o próprio ordenamento jurídico pode prever efeitos positivos ao ato inconstitucional, ou seja, pode isentar o ato inconstitucional de conseqüências jurídicas negativas para preservar princípios ou interesses constitucionais mais importantes que o princípio da constitucionalidade no caso concreto. Cf. GOUVEIA, Jorge Bacelar. O valor positivo do acto inconstitucional. Lisboa: Associação Acadêmica – Faculdade de Direito de Lisboa, 1992. p. 17-20; 25-29. Para Marcelo Rebelo de Sousa, o valor jurídico do ato do ato inconstitucional é o efeito da inconstitucionalidade e representa uma depreciação ao ato que surge em desconformidade com a Constituição. SOUSA, Marcelo Rebelo de. O valor jurídico do acto inconstitucional. Lisboa: Gráfica Portuguesa, 1988. p. 145.

245

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 19 e 31.

246 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 37-9 e 48-53 e 58-64.

Em outras palavras, o ordenamento jurídico é uno, pois todas as normas que o compõem podem retrotrair, regular ou irregularmente, ao núcleo normativo originário, ou seja, qualquer norma jurídica deriva do núcleo originário de normas, estabelecido pelo poder constituinte originário, que cria e estabelece os órgãos básicos de produção normativa247.

Porém, há de se destacar que o núcleo normativo originário institui tão-somente uma unidade formal do ordenamento jurídico, pois funciona como critério formal de existência (pertinência) das normas jurídicas. Não há unidade material ou de conteúdo, pois o ordenamento jurídico tolera, até como condição de funcionamento do sistema, o ingresso irregular de normas jurídicas, reputadas como inválidas, dentre estas as normas inconstitucionais.

Questão correlata à unidade do ordenamento jurídico é o problema da hierarquia e da construção escalonada do ordenamento jurídico. A construção escalonada do ordenamento jurídico ou a pirâmide normativa, elaborada por Kelsen, explica a unidade e a hierarquia do ordenamento jurídico. Conforme o entendimento kelseniano, as normas e as fontes do ordenamento jurídico não estão todas situadas no mesmo plano, mas escolanadamente em diferentes níveis. Por conseguinte, há normas e fontes jurídicas superiores, de maior hierarquia, e normas e fontes jurídicas inferiores, de menor hierarquia. As normas e fontes jurídicas inferiores estão numa relação de dependência das normas e fontes jurídicas superiores. Isto significa que as normas jurídicas inferiores só pertencem validamente ao ordenamento jurídico se estiverem em conformidade com as normas jurídicas superiores. Subindo-se ao ápice da pirâmide normativa, encontrar-se-á a norma suprema, fonte das fontes, que não depende de nenhuma outra norma jurídica ou fonte. Sobre esta norma suprema reside a unidade do ordenamento e Kelsen a denomina de norma fundamental248.

247

NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 23-6.

248 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes., 1998. p. 246-7; KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado.. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 181 e BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 48-53 e 58-64. José Afonso da Silva argumenta que a compatibilidade vertical das normas no ordenamento jurídico advém da supremacia da Constituição, de modo que as normas de grau inferior só valerão se forem compatíveis com as de grau superior. Assim, as normas que incompatíveis com a Constituição serão inconstitucionais e não podem prevalecer em razão da supremacia da Constituição.

Esclarece-se que a pirâmide normativa ou a estrutura escalonada do ordenamento jurídico advém de uma relação estritamente formal entre as normas jurídicas, não é lógica-dedutiva a organização hierárquica do ordenamento jurídico, o que implica a falta de coerência ou de unidade material e de conteúdo do ordenamento jurídico249.

A partir da estrutura hierárquica do ordenamento jurídico, pode-se perceber que todas as normas que o compõem são ao mesmo tempo atos de execução (aplicação) e produção. É ato estritamente executivo ou de aplicação em relação à norma superior, enquanto que, concomitantemente, é ato de produção em relação à norma inferior. No entanto, a norma ou fonte jurídica de mais alto grau, o poder constituinte originário no caso, é ato exclusivo de produção e, por sua vez, a norma de mais baixo grau, ato de mera execução, é ato exclusivo de aplicação250.

A estrutura escalonada e hierárquica do ordenamento jurídico não é linear e uniforme. De fato, o ordenamento jurídico tolera, como condição de funcionamento, o ingresso de normas inválidas por desconformidade, material ou formal, com normas hierarquicamente superiores. Esta irregularidade e afronta à pirâmide normativa perdurará até que a norma jurídica inválida seja retirada do ordenamento jurídico por órgão competente251.

Outro problema do ordenamento jurídico oriundo das relações entre as normas jurídicas que o compõem diz respeito à sistematicidade do ordenamento jurídico, isto é, agora analisar-se-á se o ordenamento jurídico constitui um sistema coerente.

Sistema é uma totalidade ordenada. Para se falar em ordem, é necessário que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também que sejam coerentes entre si. Um ordenamento jurídico como sistema significa um conjunto de normas jurídicas coerentes entre si e com o todo. Portanto, se um ordenamento jurídico constitui

Cf. SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 538.

249

NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 27.

250 KELSEN, Hans.. Teoria pura do Direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 260-2 e KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 193-4.

um sistema, não podem coexistir nele normas incompatíveis. Logo, a sistematicidade do ordenamento jurídico está assentada no entendimento de que o Direito não tolera antinomias252.

Como já adiantado anteriormente, o sistema jurídico possui somente unidade formal, faltando-lhe coerência e unidade material e semântica. De fato, o ordenamento jurídico não está submetido às leis da lógica e da não contradição, vez que sua unidade advém da derivação de todas as normas do núcleo normativo originário que prescreve a forma e os órgãos de produção legislativa. Portanto, o ordenamento jurídico não é um sistema absolutamente coerente e tolera, até certo limite, normas contraditórias, em razão da pluralidade de órgãos produtores normativos253.

Ao tratar da coerência do ordenamento, Bobbio retoma a divisão kelseniana entre ordenamento jurídico estático, onde há unidade material entre as normas jurídicas, que se relacionam umas com as outras segundo um padrão dedutivo, e ordenamento jurídico dinâmico, onde as relações entre as normas jurídicas são formais, as normas derivam umas das outras por meio de delegações de poder. Ao final, Bobbio conclui que num ordenamento jurídico estático o aparecimento de uma contradição faz ruir todo o sistema, enquanto que no ordenamento jurídico dinâmico a incompatibilidade derruba, no máximo, as normas em oposição. Assim, no ordenamento jurídico dinâmico duas normas jurídicas em oposição são legítimas e este conflito é solucionado por meio da análise do conteúdo destas normas. Logo, a coerência é uma exigência e um objetivo a ser buscado, mas não uma condição de existência do ordenamento jurídico. A total exclusão de antinomias não é uma condição necessária para a existência do ordenamento jurídico254.

Com efeito, é condição de funcionalidade do ordenamento jurídico a tolerância limitada de antinomias, por meio da presunção iuris tantum de

252 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 71-2.

253

NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 34.

254 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 217-21 e BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 71-4 e 110-4.

constitucionalidade das normas jurídicas produzidas255. As normas jurídicas elaboradas ingressam no ordenamento jurídico com uma presunção, que pode ser derrubada, de constitucionalidade, pois, caso contrário, se inviabilizaria o funcionamento do ordenamento jurídico, que ficaria submetido às interpretações divergentes de toda a sociedade. Assim, as normas inconstitucionais existem e são válidas até serem expulsas pelo órgão competente ou revogadas por outra norma jurídica.

Pode se dizer, então, que o ordenamento jurídico é um sistema, ressalvando-se apenas que lhe falta coerência absoluta, uma vez que é tolerável, até certa medida, antinomias entre as normas jurídicas que o compõem.

Bobbio entende que há duas condições para a ocorrência de antinomias: 1) as normas jurídicas em conflito devem pertencer ao mesmo ordenamento e 2) as normas jurídicas conflitantes devem ter o mesmo âmbito de validade (temporal, espacial, pessoal e material). Bobbio classifica as antinomias em próprias e impróprias, sendo as antinomias impróprias contradições ideológicas ou de princípios, enquanto que as antinomias próprias são as antinomias entre normas jurídicas, isto é, um conflito estrutural ou sintático. Por conseguinte, as antinomias próprias se dividem em aparentes ou solúveis e reais ou insolúveis. Há casos onde não se pode resolver a contradição normativa pelo fato de não poder se aplicar nenhuma das regras de solução ou pelo fato de serem aplicáveis mais de uma regra de solução, cada uma produzindo um efeito diferente256.

As antinomias próprias e aparentes são resolvidas segundo três regras: a) critério cronológico (lei posterior revoga a antecedente); b) critério hierárquico (lei hierarquicamente superior revoga a inferior); c) critério da especialidade (lei especial revoga a lei geral) 257.

Para o presente trabalho, tem especial relevo as contradições entre norma constitucional e lei infraconstitucional, ou seja, as antinomias entre

255 NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 46.

256

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 86- 110.

257 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 91-7.

norma superior e norma inferior, que são solucionadas pelo critério hierárquico. É relevante dizer que neste caso, apesar de tratar-se de uma antinomia aparente ou solúvel, este conflito perdurará até a expulsão da norma inconstitucional do ordenamento jurídico pelo órgão competente ou até que a norma reputada inconstitucional seja revogada.