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3 ANÁLISE DO MATERIAL AUDIOVISUAL:

3.8 Análise Retórica do material audiovisual

3.8.5 Considerações sobre o cânone Memória

No primeiro capítulo apresentamos os conceitos de memória presentes na antiguidade, ligados à retórica clássica; Platão considerava o exercício da memória como a própria verdade e o berço do conhecimento, Aristóteles apresentou uma divisão entre a retenção de informações para posterior utilização, a que chamou de mamnesi, e a conservação na mente humana de acontecimentos ligados à experiência, ao sentimento, denominada por ele como mneme, que permite o armazenamento de fragmentos do passado de forma, muitas vezes inconsciente.

Também o autor de Ad Herennium chama de memória o tesouro de coisas inventadas, vinculando assim o cânone memoria ao cânone inuentio/invenção. A prática de estocar lugares-comuns ou outro material conseguidos através dos tópicos de invenção, para uso quando se fizesse necessário, relaciona-se com a memória, entendida como repositório de conhecimentos.46 Nesse sentido, memória também se liga mais às necessidades de improvisação de um falante do que à necessidade de memorização de uma fala inteira a ser reproduzida.

O cânone memoria também sugere que se considerem os aspectos psicológicos da preparação para a comunicação e para a própria apresentação da comunicação, especialmente na comunicação oral e de improviso. Tipicamente, memória tem a ver somente com o orador, mas leva a refletir sobre como a audiência vai reter coisas na mente. Para essa finalidade, certas figuras de linguagem são disponíveis para ajudar a memória, incluindo o uso de uma descrição vívida (ékphrasis), a repetição e a enumeração. Junto com o cânone apresentação, a memória foi frequentemente excluída da Retórica. Todavia, ela foi um componente vital no treinamento de oradores na Antiguidade.

Este componente continuou sendo, ao longo de centenas de anos, determinante para a adequada reprodução de todo tipo de discurso, inclusive já na era do rádio, em que, mesmo encobertos por um estúdio que retirava os oradores da arena onde se dispunha a audiência, era necessário dominar as técnicas para memorização das informações e improvisação quando necessário. O surgimento, na televisão, da possibilidade de gravação e regravação de cenas, altera este cenário na medida em que seria possível avaliar a cena feita de acordo com a fala programada, a apresentação do ator, para somente assim seguir adiante.

46 Identifica-se aqui a ligação da Retórica com a História, bem como com a intertextualidade, nos termos

A partir deste momento a memória como retenção de informações passa a ser flexibilizada neste canal de comunicação, continuando como exercício de memorização no teatro, no rádio e em outras instâncias em que se fala ao vivo.

Em se tratando de comunicação organizacional, do ponto de vista interno o cânone pode se relacionar ao armazenamento de informações para posterior difusão, porém na forma de registro físico, em que dados da instituição seriam considerados memória para posteriores atividades. Externamente a memória já poderia ser relacionada ao sentido, entretanto este caminho foi percorrido de forma lenta até o avanço da internet e o desenvolvimento das redes sociais online, o grande marco da comunicação humana na atualidade.

Este cânone, apesar de menos estudado pelos autores clássicos, é bastante pertinente a esta pesquisa, pois, o Storytelling nada mais é do que criar ou contar histórias que mexam com o interlocutor justamente no que ele tem como memória de sentido. As representações sociais que o constituíram primariamente, sentimentos e sensações que ativam no cérebro a imaginação, identificação e até mesmo um deslocamento temporal em que o interlocutor permite-se entrar em contato com a experiência passada (mneme) formando imagens mentais que mesclam o que ele foi, o que ele é hoje e o que deseja ser. As memórias coletivas são invocadas (mamnesi) para construir uma história que tocará o repositório individual do auditório criando diferentes sensações que culminarão na adesão, ou não, da tese proposta.

A utilização do vídeo, atualmente, como recurso na narração de histórias também remete ao cânone, pois ao produzir tal material, tanto interna quanto externamente, a Instituição cria memória sobre si mesma, seus preceitos e valores norteadores em dado período. Sobre o uso deste suporte tecnológico pode-se inferir que ele se inscreve nos dois tipos de memória descrito por Aristóteles, tanto na mamnesi, pois servirá como registro físico ao qual se pode recorrer a todo o momento, podendo representar a própria mamnesi, quanto na mneme, pois ao compartilhar histórias vividas a marca pode despertar e tocar afetos da audiência até então adormecidos. Com destaque para o potencial persuasivo de um material ao qual o acesso seja livre e ilimitado conforme o vídeo, que permite que o interlocutor tenha à mão (principalmente hoje com as plataformas móbile) a história para acesso em momentos distintos no tempo e no espaço.

A cena persuasiva estará sempre montada, pronta para entrar em ação novamente e podendo provocar a cada exibição diferentes emoções. A memória, neste caso, transita entre o orador (marca) e a audiência, lançando como desafio a reflexão entre o que rememorar e de

que forma estas memórias podem fazer sentido e tocar as emoções da audiência. Lançar mão de acontecimentos que marcaram época em uma sociedade como apoio à narrativa organizacional pode constituir uma estratégia retórica para a retenção do discurso na memória de seus ouvintes, pois evoca a experiência, vivência, que são basicamente o que compõe o indivíduo e faz com que ele se movimente em direção a uma marca negando outras do mesmo seguimento. É uma maneira de associar a memória do auditório ao ethos da marca, legitimando, assim, o seu lugar de fala na sociedade.

Deste modo os vídeos analisados demonstram prescindir de avaliação individual em relação ao cânone memória, uma vez que se utilizam do suporte audiovisual como fonte para produção de material físico de registro de memória ao mesmo tempo em que buscam despertar na audiência sentimentos ligados à sua constituição como ser social, historicamente situado.