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Considerações sobre nossa concepção de linguagem

5. Nós, autores: metodologia

5.2 Considerações sobre nossa concepção de linguagem

Consideramos a linguagem no centro do nosso estudo, não somente por ser o meio pelo qual se faz possível a tradução de códigos binários em organizações de enunciados compreensíveis aos usuários, mas por ser a ferramenta cultural por excelência, capaz de permitir o compartilhamento da experiência, dar-lhe sentido coletivo e constituir o sujeito e a própria cultura da qual advém. É, portanto, ferramenta-e-resultado (Newman and Holzman, 1993).

Assim, fez-se necessário um permanente tornar-se sensível à cultura, ao contexto e à construção conjunta da realidade através da linguagem, esta sendo vista sempre como um processo de contextualização contínua das ações conjuntas. A consideração da subjetividade como se constituindo somente em relações de alteridade, o que preferimos tratá-la como

intersubjetividade, orientou-nos no sentido de nossos sujeitos não serem considerados senão

inseridos em práticas sociais e discursivas.

Assumimos que os artefatos tecnológicos resultam de um desenvolvimento tecno- científico e afetam nossas vidas, direta ou indiretamente, mas a tecnologia não progride por si só e sua evolução é decorrente da atividade de programadores, designers, técnicos e outros participantes desse momento de desenvolvimento, mas também decorre da atividade de todos aqueles que fazem uso dela. Sob este ponto de vista, não estando o valor dos artefatos nas suas estruturas intrínsecas, mas na integração do mesmo com o mundo e suas contribuições sociais e materiais a esse mundo, seu ambiente de uso, orientamo-nos no sentido de compreender os sujeitos inseridos em práticas, as quais configuram os contextos de autoria e uso.

Um possível salto qualitativo para a IHC, que é possível a partir de teorias como as de Vygotsky e Bakhtin, permite sondar o fenômeno da relação humano-computador como

um processo discursivo sócio-histórico. Do ponto de vista das condições de uso e aplicação dos recursos do computador, entendemos que os mesmos são determinados conjuntamente por ações de desenvolvedores e usuários.

O psiquismo humano tem a base no externo, sendo que este externo – e aqui isso merece destaque – chega-lhe e é produzido discursivamente. Para assim pensarmos, o mundo material não pode ser reduzido, mas, ao contrário, deve ser expandido para incluir a riqueza social e simbólica que lhe preenche. Em Vygotsky, é mesmo explicitado no conceito de “mediação” o argumento de que a realidade chega ao humano não diretamente e de modo imediato, mas de forma mediada, na ação auto-reguladora do sujeito.

Segundo Kosik (2002):

“Cada coisa sobre a qual o homem concentra seu olhar, a sua atenção, a sua ação ou a sua avaliação, emerge de um determinado todo que o circunda, todo que o homem percebe como um pano de fundo indeterminado, ou como uma conexão imaginária, obscuramente intuída.” (p. 31).

Visto por essa lente, o mundo só existe porquanto existem os sujeitos, entendidos como constituídos lingüisticamente, capazes de produzir sentido neste mundo. O mundo é um dos modos construídos pela subjetividade humana, mas, ao mesmo tempo, é por ela apropriado, passando a regular suas ações. O ser humano, dessa forma, é parte da natureza e da história, e tanto é criado como cria a sua realidade histórico-social:

“Na indústria, na técnica, na ciência e na cultura, a natureza existe para o homem como natureza humanizada, mas isto não significa que a natureza em geral seja uma “categoria social”. O conhecimento da natureza e o domínio da natureza são socialmente condicionados, e neste sentido a natureza é uma categoria social que varia historicamente, mas a absoluta existência da natureza não é condicionada por coisa alguma ou por ninguém.” (p.249 – Grifos do autor)

Assumir uma não existência da natureza seria uma idéia contraditória com a própria condição filogenética que marca a condição humana. Seria ingênuo pensar desse

modo e, pior que isso, não seria dialético. Não é assim também que procede Vygotsky ao construir uma teoria que visa a explicação da transformação da natureza humana (e seus processos elementares) em formas superiores de existência (as funções mentais superiores). E a linguagem é ferramenta-e-resultado desse processo.

Ora, o que queremos chamar atenção dentro dessa discussão é para o fato de o ser humano construir-se a si próprio nas suas ações de produção e organização social. O desenvolvimento do psiquismo está intrinsecamente ligado à relação do sujeito com o contexto social e a apropriação desse contexto, sendo o que tratamos ao longo deste trabalho como, na verdade, um intersujeito.

Interessa-nos muito mais o fato desse sujeito se fazer enquanto tal não a partir de uma base natural em seus princípios, mas a partir das formas externas materiais e históricas que lhe acolhem socialmente desde antes do nascimento. Isto desemboca num mar bastante vasto que implica a visão do psíquico constituído pelo não-psíquico e só uma teoria materialista daria conta disso.

No entanto, como mostramos nas análises, defendemos que, de algum modo, nas vozes encapsuladas nas realidades materiais concretas, há algo da ordem do psíquico mesmo no aparentemente não-psíquico. Isso porque assumimos que a relação entre humanos e entre humanos e coisas está permeada por vozes de outros sociais. Partindo disso, defendemos e evidenciamos nas análises uma subjetividade que está também encapsulada nas coisas.

O que encontramos é uma configuração subjetiva do social. Por isso mesmo, e assim já o compreendíamos, o sujeito é aquele que é, ao mesmo tempo, constituído no e pelo social (que é lingüístico, em qualquer instância) e que, embora responsivo, é também autor em relação a este social.

Esse sujeito localiza-se numa corrente de pensamento filosófico que o descentraliza e não o torna soberano absoluto pelas suas ações. Ao contrário, limita-o e o

torna cindido pelo contexto, não podendo ser visto fora do plano discursivo. Mas vemos esse contexto como sendo, ao mesmo tempo, criado pelo sujeito. Esse sujeito dialogando com o social e estando sempre numa postura ativa responsiva, axiológica e criativa, não perdendo sua unicidade diante das circunstâncias materiais que são, elas próprias, únicas.

Por isso assumimos uma perspectiva sobre linguagem que advém das idéias do círculo de Bakhtin, que nos chama atenção para a necessária compreensão dos signos como vinculados aos momentos históricos únicos de sua enunciação. Cada vez que enunciamos, aspectos como a entonação, orientam a possíveis alcances compreensivos. Cada vez que é enunciamos, os aspectos relacionados ao contexto da enunciação são necessários para o entendimento e compartilhamento da situação. Aspectos relacionados ao contexto, portanto, fornecem certa estabilidade aos enunciados. Esta estabilidade advém das regularidades das práticas sociais, que estabelecem contornos discursivos para aquilo que pode ser enunciado e aquilo que não pode, ou como pode e como não pode, bem como para as respostas que aí podem ocorrer.

Isso deu-nos certo direcionamento para perceber que aquilo que é organizado em interfaces, fruto de longas discussões entre desenvolvedores, é “encapsulado” em um signo único (um desenho, uma palavra, um link), abarcado por um todo maior na interface do sistema, e é resgatado de forma única a cada situação de uso. A possibilidade de haver estabilidade para a eterna particularização de nossos atos, levando à compreensão e, para nossos fins, levando a um uso fluido de um software, é entender os enunciados encapsulados vinculados à idéia de gêneros discursivos. A compreensão disto pode ser útil nas práticas de desenvolvimento de sistemas de informação.

No nosso próprio percurso metodológico, percebemos aspectos como os que concluímos nas análises. Quando usamos um editor de textos para a escrita da tese, ou outros artefatos que nos auxiliam nas atividades de construção do corpus e análises, tais como

câmeras de vídeos e softwares capazes de capturar as imagens videografadas, por exemplo, entramos em diálogo com múltiplas vozes encapsuladas na interface, logo, com outros humanos situados em práticas discursivas.