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O conceito de gênero discursivo em Bakhtin

3. Os contornos discursivos da ação e da cognição

3.3. O conceito de gênero discursivo em Bakhtin

“Os campos da atividade humana estão ligados no uso da linguagem” – assim Bakhtin (2003, p. 261) inicia o texto “Os gêneros do discurso”, que compõe Estética da

“Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.”(p.262)

Isso implica que os enunciados são, em suas origens, impregnados pelo contexto que os rodeia. Logo, ao definir a enunciação como um processo social, Bakhtin aponta para um contexto mais amplo, caracterizando a produção de sentidos como atrelada a uma participação ativa da história e do sujeito. Chama atenção para um jogo entre discursos que extrapola os limites estreitos das situações imediatas, cujos contextos são co-construídos pelos sujeitos.

A realização de um enunciado está ligada à especificidade de um campo da comunicação, melhor dizendo, da interação. Estes campos específicos estabelecem restrições ao que pode ser enunciado, embora tendo o enunciador o poder de criar, acrescentando seu estilo e demonstrando sua própria habilidade de manusear a língua. Há coerções impostas pelo sistema, que impingem limites, mas há um componente vivo próprio à unicidade de cada ação na atividade de linguagem.

Os gêneros permitem uma certa estabilidade para a dinamicidade e contínua particularização de nossas ações, situados sócio-cultural e historicamente. Isso responde sobre a unicidade e generalidade em cada ação humana, atentando para o fato de que a ação não existe fora das situações concretas e estas são sempre únicas. Porque a cognição humana é social e histórica e não pode ser tomada como existindo à parte de tais situações.

Quem enuncia, portanto, escolhe signos para interagir com outros que respondem e moldam com contornos iniciais tal enunciação. As necessidades culturais permitem com que re-elaboremos dialogicamente os enquadres cognitivos necessários quando transitamos entre os vários gêneros discursivos.

Bakhtin (2003) se esmera em trabalhar os gêneros, distinguindo duas grandes modalidades: gêneros primários e gêneros secundários, dois grandes modos pelos quais o

diálogo pode ser considerado, respectivamente: diálogos cotidianos (simples), como a conversa face-a-face de alunos antes da aula, e diálogos mais amplos (secundários), como uma tese de doutorado, um informe publicitário, um memorando e outros.

Nos gêneros secundários, mais complexos do que aqueles que se dão cotidianamente (primários), a alternância entre sujeitos não é tão evidente e imediata, mas os diálogos são estabilizados, institucionalizados, embora se transformem e se alimentem dos diálogos cotidianos. Transformando-se em gêneros secundários, os gêneros primários perdem a relação imediata que os interlocutores mantinham entre seus enunciados. A escrita, pois, possibilita novos contornos aos enunciados, permitindo que os sujeitos discursivos não precisem de um compartilhamento espaço-temporal para participarem da cadeia dialógica.

Marcuschi (2004) aborda a temática dos gêneros, ao tratar de hipertexto e cultura digital. Novos gêneros emergem e outros se transformam nesse contexto sócio-histórico. Os gêneros podem ser depreendidos daquelas formas de enunciar que se mantém relativamente estáveis, sensível à cultura e mantendo-se relativamente estável, do ponto de vista “estilístico e composicional”, tal qual entendia Bakhtin. Mas acrescenta ainda, fundamentado em Swales (1990) e Miller (1984), o fato de os gêneros servirem a propósitos específicos e serem formas de ação social.

O conhecimento de suportes é fundamental para a compreensão de como os gêneros circulam e são difundidos na sociedade. Entendemos por suporte o local físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação. Ao fixar-se, o texto se tornará acessível para fins comunicativos (Marcuschi, 2003, p. 11). Estabelece-se uma diferença entre canal – que permite a circulação para transportar e veicular o texto – e suporte. Mas vemos que essas fronteiras que os diferenciam não são tão nítidas e a perspectiva de análise pode interferir no nosso olhar sobre o que seria canal e o que seria suporte.

A partir disso, Marcuschi considera as páginas de internet, sites, portais e homepages em geral como suportes ou serviços eletrônicos, mas não como um gênero eles próprios. Concordamos com Marcuschi e especificamos que, de fato, podemos tomar os softwares apenas como suportes, como são os livros, jornais impressos e revistas. Dar-se conta disso leva-nos a pensar em gêneros discursivos que orientam as mais variadas práticas sociais e que são transformados para interfaces de softwares. Ao serem transpostos, tanto se transformam os próprios gêneros quanto abrem para a emergência de novos, alterando, por seu turno, as práticas dos usuários. Isso quer dizer que esses suportes envolvem ações sociais que estabelecem gêneros na sua configuração. Como um jornal impresso é um suporte para notícias, crônicas, cartas, entrevistas, e outros gêneros, assim também um mesmo software pode ser suporte para interfaces que contemplam vários gêneros como lista de discussão, bate- papo virtual, formulários a serem preenchidos, currículos para preenchimento, informações sobre eventos, anúncios, etc. Nessas regularidades, transmutados de gêneros outros, constituem novas ações sociais.

Como usuários, demarcamos o “tipo de mundo” que entramos ao usar um software e desempenhamos ações de uso, como por exemplo, o que fazer diante de uma “mensagem de erro do sistema”. Os gêneros nos permitem, como usuários, evocarmos procedimentos interpretativos e avaliativos apropriados aos enunciados na tela, segundo seu tipo.

Os múltiplos sentidos possíveis permitem aos desenvolvedores estabelecer os contornos aos enunciados encapsulados e, por sua vez, esperam dos usuários respostas específicas no desencapsulamento.

A ênfase é que as práticas sociais são organizadas por gêneros que orientam o que é “dito” e como é “dito”, guiando nossa compreensão para a realização de ações de modo recorrentes.

Para clarear essa discussão e construirmos um argumento sobre a pertinência de envolver desenvolvedores em situações contextuais típicas ao grupo social para o qual se direcionará o software, recorremos às idéias de Bazerman (2005). Para este autor, a noção de gênero é expandida ao chamar atenção para que a produção, a circulação e o uso ordenado de textos na sociedade são “a própria atividade e organização dos grupos sociais.” (p. 19) Defende que muitos textos são produzidos nos eventos humanos e que os fatos sociais surgem a partir destes textos.

O processo de compreensão, definido nesses termos, é uma atividade dialógica que, diante de um texto, gera outros textos. Autores e leitores estão ambos situados e organizados socialmente, constituídos por múltiplas relações sociais. Nos diferentes pólos em que agem, cada um já está presente no pólo oposto, de um modo específico.

Para compreendermos a dinâmica entre as vozes envolvidas no processo de desenvolvimento e uso de softwares, tornou-se inevitável recorrer ao conceito de Gênero

discursivo. Assim, podemos relacionar os elementos constituintes do contexto que

investigamos com as características dos enunciados e a dinâmica dialógica entre desenvolvedores e usuários.

Ora, os desenvolvedores estão inseridos em práticas sociais cujos gêneros discursivos que delas emergem não são, necessariamente, aqueles gêneros emergentes nas práticas sociais em que os usuários se engajam. E conhecer essas práticas dos usuários para extrair as regularidades das ações dos mesmos, inseridos em tais práticas, pode levar a alternativas interessantes no design de interfaces (esse ponto será mais bem desenvolvido no capítulo 4, quando abordarmos as perspectivas em design de interface).

Também, tomando a cognição como situada, o que implica negar que as ações sejam pré-determinadas, não quer dizer que elas sejam frutos do acaso. Não são ao acaso, pois ao relacionar as circunstâncias em que o conhecimento e a ação invariavelmente ocorrem,

podemos conhecer as contingências regulatórias da ação sobre um mundo complexo de artefatos, registros e sujeitos, localizados no tempo e no espaço.

Para o presente capítulo, enfatizamos que cada sujeito possui seus enunciados limitados por bordas que dizem respeito aos gêneros discursivos que emolduram tais enunciados. Isso implica que muito pode ser transposto dos gêneros discursivos presentes nos contextos dos usuários às organizações dos elementos na interface de determinado software. Para isso, o contato dos desenvolvedores imersos e engajados nos contextos de uso e nas práticas dos usuários é fundamental para um jogo de ações responsivas mais fluido e preciso. No capítulo seguinte, faremos análises mais especificamente ligadas a esta interação humano- computador, as quais nos conduzem para uma proposta interessante de engajamento de desenvolvedores em práticas de usuários a quem se direcionarão os programas desenvolvidos.