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Considerações sobre o Poeta dormindo (1941)

3.3 Os ensaios de João Cabral de Melo Neto

3.3.1. Considerações sobre o Poeta dormindo (1941)

O ensaio apresentado ao Congresso de Poesia do Recife, em 1941, contém influências marcadamente surrealistas, a começar pela epígrafe que o acompanha: “O sono, um mar de onde nasce/ Um mundo informe e obscuro,/ Vem molhar a minha face:/ Caio num ponto morto e surdo”. Trata-se de versos de Willy Lewin, amigo de JCMN quando o poeta

40 Ensaios que não constam nessa lista: “Joan Miró” (1950); “Como a Europa vê a América” (1954); “Elogio de

Assis Chateaubriand” (1969); “A diversidade cultural no diálogo Norte-Sul” (1990); “Agradecimento pelo prêmio Neustadt” (1992); “Prefácio a Antologia Poética de Marly de Oliveira” (1994).

ainda morava em Pernambuco, de quem frequentava a casa e a biblioteca e com quem dividia conversas sobre arte e literatura nos cafés recifenses.

Sabemos que o livro de estreia de JCMN, Pedra do Sono (1942), tem forte influência surrealista, embora Antonio Candido tenha-o considerado de essência mais construtivista que surrealista41. O ensaio de que ora falamos foi escrito no mesmo período em

que o livro estava sendo preparado para a publicação e, por se tratar de texto a ser apresentado em congresso, entendemos que seu autor procurou expor, além de um modelo de poesia no qual acreditava, sem manifestações sentimentais, algumas relações entre o fazer poético e o sono, embora ele advirta ao leitor, logo nas primeiras linhas que tentou, “(...) em vão dar um desenvolvimento e uma ordenação lógicos” (MELO NETO, 2007, p. 665) ao ensaio que, na ocasião, apresentava.

O texto das “Considerações” é importante para nós sob o ponto de vista de estarmos diante de algo escrito em momento inicial do trabalho poético de JCMN e isso significa dizer que ele, preocupado que foi com críticas construtivas sobre poesia, ao mesmo tempo em que trabalhava em versos supostamente surrealistas, já que Lewin e Vicente do Rêgo Monteiro, seus amigos e incentivadores artísticos, o apresentaram à vanguarda surrealista, também pensava de que modo poderia retirar das ideias do Manifeste du

Surréalisme, de André Breton, a matéria para escrever poemas que se voltassem para a

imagem das coisas e não para o funcionamento do intelecto, sem limites estabelecidos, como sugere o Manifeste, dentro de suas possibilidades de poeta estreante.

O ensaio propõe claramente que um poeta pode fazer do sonho um lugar de onde possam surgir imagens para a escrita de um poema. Quando está sonhando, um homem foge “(...) às dimensões comuns de seu mundo” (MELO NETO, 2007, p. 665). A partir dessa fuga, JCMN acredita que o poeta possa estabelecer relações “secretas” com a poesia, com o momento exato em que uma ideia poética lhe surge. Todavia, o sonho do qual ele nos fala não é sinônimo de sono – sentir-se sonolento ou estar dormindo não é garantia, embora seja condição, para que o poeta possa estabelecer contato com esse momento do sonho durante o qual poderá alcançar o instante em que a ideia poética dá-se a ver a ele.

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Antonio Candido nos diz, em conversa com Selma Vasconcelos, organizadora de João Cabral de Melo

Neto: Retrato Falado do Poeta, que “deixou Pedra do Sono dormindo um pouquinho e, após três dias, abriu o

livro e tomou um choque (...), diante de um escritor ‘anônimo’, mas de uma poesia completamente diferente (...), seca, sem sentimentalismo, sem concessão, sem querer ser simpática, sem querer captar o leitor e com uma curiosa oscilação entre o surrealismo e o construtivismo” (VASCONCELOS, 2009, p. 145-146).

Quando JCMN trata dessas questões, precisamos entender claramente que estamos diante do poeta aos 21 anos, sua intenção não era alcançar o ponto da inspiração poética, com a qual ele não concordava, mas sim entender que relações havia entre o sonho e o ofício da poesia. O texto data de 1941 e a situação histórica da poesia brasileira se configurava a partir das consequências do modernismo antropofágico de 1922 na literatura e da escrita de poetas como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, ao mesmo tempo em que o lirismo parnasiano ainda tinha força entre alguns poetas. O que JCMN procura com esse texto é entender de que modo se estabelece a relação poesia/sonho, já que muitos partiam de elementos oníricos quando escreviam poemas. Sua busca por tal entendimento não se resume a identificar quais as questões originadas de sonhos, mas se alarga por sua proposta de que os elementos que compõem o sonho formam uma atmosfera semelhante à da poesia, comparada a “tempestade” que uma e outra ocasionam: “(...) esse clima [do sonho], como o da poesia, é um clima de tempestade, uma imagem da própria aparência do homem adormecido” (MELO NETO, 2007, p. 666).

O ensaísta JCMN admite a dificuldade que encontra em tratar de assunto tão vago, apesar da tentativa que faz de entender que elementos, no sonho, contribuem para o trabalho do poeta com a escrita. Para ele, há duas formas de o sonho influenciar a poesia: a primeira diz respeito à fuga do indivíduo de seu tempo quando está dormindo, a segunda, à ideia da morte que o sono lhe concede. JCMN considerava que as pessoas, de um modo geral, pareciam fugir de alguma coisa, andavam sempre fugindo de algo, em busca de uma tranquilidade aparente. Sua ideia de relacionar sonho e poesia partiu de observações que ele fez, além da poesia lírica (com a qual não concordava), do modo como as pessoas se comportavam. Portanto, a relação feita pelo poeta integra, além de sonho e poesia, também a realidade. No texto dessas Considerações, o poeta se mantém “(...) andando a longas pernadas dentro de sua noite” (MELO NETO, 2007, p. 668), ao mesmo tempo em que deixa os olhos voltados para a realidade à qual está ligado.

Finalmente, não entendemos que “Considerações sobre o poeta dormindo” seja uma espécie de prova que confirme a ligação de JCMN com o Surrealismo nos anos iniciais de seu percurso poético. Consta no Manifeste du Surrealisme, que surrealismo é o “(...) automatismo psíquico pelo qual alguém se propõe a exprimir seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de qualquer preocupação estética ou moral”

(BRETTON apud TELES, p. 191). JCMN tratou o sonho como instância, como atmosfera, repleta de elementos particulares da mente de um indivíduo, capazes de influenciar o trabalho poético, não como fator que automatizasse um comportamento ou ponto de vista em relação a algo. Sua preocupação com a organização da linguagem poética, mediada pelo sonho, assim como os modos de lidar com o real, através do sonho, mostram que ele não buscou provar de que maneira se estabelece a relação entre sonho e poesia, mas sim ficar mais próximo de possíveis elementos originados do sonho, influenciadores da poesia, por uma via simbólica.

Sua iniciativa de escrever a esse respeito partiu da observação que fez do modo como elementos abstratos (imagéticos, fantasmáticos), oriundos da mente de um indivíduo, estavam presentes em alguns poemas. JCMN voltou a escrever sobre o assunto em ensaios posteriores; o texto das “Considerações” está situado no momento em que o poeta dá os primeiros passos na construção de sua obra poética e ensaística e não deve ser retomado fora desse contexto, como fonte de explicação para produção posterior.