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Poesia e Composição: a inspiração e o trabalho da arte (1952)

3.3 Os ensaios de João Cabral de Melo Neto

3.3.2. Poesia e Composição: a inspiração e o trabalho da arte (1952)

Composição como “o ato de aprisionar a poesia no poema” ou “elaborar a poesia em poema” ou “momento inexplicável de um achado” ou ainda “horas enormes de uma procura” (MELO NETO, 2007, p. 703): são esses os lugares comuns que JCMN quis desmistificar no ensaio que nomeia esta subseção. Os dois últimos, o momento de um achado para o qual não há explicação e as horas intermináveis de uma procura, são caracterizadores das duas famílias poéticas às quais o ensaísta JCMN se refere ao longo do ensaio. A primeira família é a dos poetas que entendem a poesia como algo inexplicável e não estão muito preocupados, segundo o ensaísta, com a composição – para eles, os poemas “(...) brotam, caem” (MELO NETO, 2007, p. 703) naturalmente. Todavia, para a outra família, que considera a poesia como “procura”, a familiaridade com o fracasso é constante, é preciso não se cansar de buscar um poema, tampouco sentir-se desanimado quando a demora parecer excessiva – é a essa família que JCMN diz pertencer, ideia que o acompanhou sempre, como em entrevista a Victor Manzolillo42, ocasião em que ele aponta a existência de dois tipos de

42 Trata-se de “Anti-Entrevista com João Cabral de Melo Neto – Nobel de Literatura: a vez do Brasil?”,

concedida por JCMN à Florida Review (jornal brasileiro em circulação na Flórida), em 1994, portanto, 42 anos depois de escrito o ensaio “Poesia e Composição”, de 1952. Tivemos acesso a esse documento em visita à Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ) nos dias 25 e 26 de março de 2015.

escritores: “(...) aquele que escreve por excesso de ser, para quem o texto é uma sangria. E o outro, o que considera o poema como uma muleta. Um sujeito não tem a perna e usa a muleta para compensar a perda”. Portanto, o poema é o apoio de JCMN para lidar com o mundo, é o meio que compensa sua natureza muito racional.

Essa divisão é um tanto redutora, pois se trata de uma dicotomia; entretanto, precisa ser compreendida no sentido de que JCMN estava concentrado em discutir acerca de poesia, não de particularidades referentes a poetas, quando a propôs. Sob essa perspectiva, ele se queixa a respeito de um “juízo” (MELO NETO, 2007, p. 703) que direcionasse a poesia para o moderno, no que se refere às propostas de 1922, às quais ele mesmo se voltou para construir as bases de sua obra poética. O moderno defendido por JCMN diz respeito às propostas iniciadas com os modernistas de 1922. O grupo de poetas chamados da geração de 45, sob iniciativa de Ledo Ivo, procurou redescobrir retornando às formas utilizadas antes de 1922. O problema foi pensar apenas na forma, enquanto a matéria, ou seja, a palavra, foi posta em segundo plano. Quando JCMN trata de composição, ele está se referindo diretamente ao trabalho que deve ser feito com a palavra para a construção de sentidos, e não à forma que a envolverá, especificamente.

A composição enfrenta, segundo JCMN, um duplo problema: ao mesmo tempo em que a forma parece ser o fator mais importante e a palavra parece “brotar” de moldes para a escrita, a crítica literária à época (anos em torno de 1952, quando foi apresentado o ensaio), exceto alguns nomes, não referenciados, parece “(...) capaz de apreender o que a atinge, mas incapaz de raciocinar sobre o que foi capaz de atingi-la” (MELO NETO, 2007, p. 704). Isso significa que, para ele, não é importante se posicionar sobre um poema porque ele alcançou instâncias de gosto ou sensibilidade de um crítico, apenas. É preciso identificar e analisar o que há de novo e relevante no texto lido, o que não acontece pela ausência de um juízo comum, de gosto e de valor, para quem lê e para quem escreve. Para quem escreve, a situação é ainda mais séria: se tudo o que é escrito pode ser considerado poesia e se há uma crítica em potencial capaz de gostar de um poema, então há espaço para todos, mas cada um ocupando limites estabelecidos, tanto por seu juízo pessoal do que seja e de como deva ser feito um poema, quanto pela crítica que lhe garantirá alguma divulgação pública.

JCMN preocupa-se com a poesia que substitui a “(...) preocupação de comunicar pela preocupação de exprimir-se” (MELO NETO, 2007, p. 704) e, por isso, defende a preservação da “mitologia pessoal” (BARTHES, 1972, p. 149) de cada poeta, mas com

respeito a um juízo composicional previamente estabelecido, com receio de que o ofício poético se reduza aos limites de compreensão de quem o opera. Nesse sentido, se forem respeitadas as conquistas alcançadas pela poesia ao longo do tempo, será possível falar claramente acerca da composição. Havendo poéticas e retóricas em comum, a poesia será capaz de alcançar horizontes mais largos e os poetas aperfeiçoarão suas obras em conjunto, respeitadas as individualidades e possibilidades de renovação poética, mas compartilhadas as leituras e ensinamentos iniciais.

Quanto à inspiração, ou teoria dos “filhos da improvisação” (MELO NETO, 2007, p. 713), sabemos que JCMN não acredita em sua existência. Para ele, isso pode ser explicado através da psicologia pessoal de um autor: há poetas que têm mais facilidade para escrever poesia e há outros (o que ele pensava sobre si) que têm muita dificuldade em trabalhar um poema – são estes que se demoram antes de considerar um poema finalizado, são capazes de dedicar anos à escrita de um único poema.

Para JCMN, a inspiração é uma espécie de tradutor de experiências vividas para o papel. Ele sabe que todo poeta começa a escrever por iniciativa pessoal, de maneira despreocupada; escreve os primeiros versos e aos poucos vai descobrindo caminhos. Todavia, a composição poética não é sinônimo de tradução de experiências, ela começa de maneira instintiva e, aos poucos, vai passando pelo crivo de seu autor, o único responsável por sua forma de pensar sobre poesia: “(...) o homem que existe nele [no jovem poeta] vai determinar se o autor será ou não um autor rigoroso, se pensará em termos de poesia ou em termos de arte, se se confiará à sua espontaneidade ou desconfiará de tudo o que não tenha submetido antes a uma elaboração cuidadosa” (MELO NETO, 2007, p. 707). É nessa medida que a psicologia de um autor é determinante para os direcionamentos que ele dará à composição poética.

Quando o autor escolhe uma “teoria” composicional particular, ele corre o grave risco de tornar superficial o texto escrito. Além disso, possivelmente não se tratará de poesia para ser relida ou revisitada ao longo do tempo: estará esgotada na primeira leitura, por sua ligação restrita com a subjetividade de seu autor. É preciso, pois, partir da realidade, da experiência para a poesia, mas não procurando reproduzi-la no espaço do papel, pois o poeta é capaz, apenas, de retomar pontos da realidade e é necessário fazer isso com a finalidade de lançar novos olhares sobre o real, de modo que o leitor se depare com versos não que

contenham situações vividas pelo poeta, mas que o ajudem a compreender circunstâncias e pontos de vista relacionados ao real.

Finalmente, o poeta comprometido com a composição acreditado por JCMN é o poeta-crítico, aquele que observa a realidade e, a partir dela, escreve um poema com “olho crítico” (MELO NETO, 2007, p. 713). Para esse poeta, o poema não surge vindo de lugares misteriosos, o poeta é que o procura e enfrenta as longas horas de espera e busca até conseguir escrevê-lo. Esse poeta é também o “artista intelectual”, aquele que sabe que “(...) o trabalho é a fonte da criação e que a uma maior quantidade de trabalho corresponderá uma maior densidade de riquezas” (MELO NETO, 2007, p. 713). Não se trata de uma relação de causa e consequência: em poesia, o trabalho com a composição originará o poema rico, com possibilidades múltiplas de leituras (sempre dentro de seus limites textuais). A experiência particular do poeta, sua maneira instintiva de começar a escrever sem grandes pretensões, aliada à experiência do observador da realidade são critérios para o poeta que considera importante a composição e não apenas as mitologias pessoais. A partir do entrecruzamento das duas, o poeta poderá começar a escrever seus poemas.