• Nenhum resultado encontrado

Selinonte: uma cidade de fronteira (Veronese, 2006). Essa é uma das formas com que podemos observar esta cidade e vários são os fatores que poderiam justificar essa colocação: seu posicionamento geográfico no contexto Mediterrânico, suas vizinhas, comunidades indígenas e fenícias. A projeção que seu complexo religioso monumental exibe na paisagem, com sua ênfase nas dimensões e amplitude de territórios sob sua esfera de influência.

Dentre todos os aspectos que foram observados neste trabalho, o que mais nos chamou atenção é a inconsistência que alguns termos bastante usuais na literatura arqueológica e histórica apresentam quando tentamos empregá-los para descrever ou interpretar essa pólis. Podemos afirmar que os colonos megáricos empreenderam a helenização de populações ao fundar Selinonte nos limites ocidentais da Sicília? Podemos garantir que o seu complexo arquitetônico monumental carrega apenas um discurso de helenidade? Podemos afirmar que a cidade prosperou graças ao contato com populações não-gregas ou seria, ela própria, uma sociedade multicultural?

E como afirmar que os santuários da colina da Gaggera e da colina oriental eram extra-urbanos? Apenas porque foram edificados fora dos muros da ásty? Não esqueçamos que, ao final da infra-estruturação urbanística e monumental, ocorrida em meados de 500 a.C. a cidade era dotada de muros

apenas no lado leste da ásty, no Vale do rio Cotone, e alguns metros de

muros ao norte do planalto de Manuzza; portanto, seus santuários e edifícios monumentais não estavam divisados da paisagem urbana por muros, mas

completamente integrados do ponto de vista visual. Selinonte é uma das pólis gregas que mais chama a atenção dos estudiosos no tocante a organicidade do seu desenho urbanístico e arquitetônico, como se tivesse sido concebida em um croqui já no século VII a.C. e apenas materializada, pouco a pouco, até o desenho final almejado pelos primeiros colonos. Seria temerário afirmar que isto ocorreu. Mas acreditamos que vale a pena colocar em relevo este panorama que parece ultrapassar as tentativas de classificações e generalizações que ainda muito fortemente marcam os estudos arqueológicos e históricos sobre as pólis arcaicas.

No que diz respeito ao objetivo inicial, ou seja, a compreensão da

khóra e da ásty em Selinonte, acreditamos que conseguimos demonstrar

que, a despeito da exígua quantidade de informação obtida em trabalhos de campo nesta vastíssima khóra, seus resultados em termos de implemento urbanístico e monumentalização nos indicam que a prosperidade alcançada pela comunidade selinontina resultava de exploração intensa do território agrícola e que a isto se conjugava o profícuo comércio com populações estrangeiras. Quanto a este aspecto, salientamos novamente a validade da perspectiva adotada desde o capítulo 2, qual seja, de compreensão de Selinonte dentro de uma perspectiva colonial de aquisição de territórios e expansão de atividades econômicas da comunidade de origem (Mégara Hibléia). Acreditamos, portanto, que Selinonte é uma resposta à expansão almejada pelos colonos megáricos no contexto de intensificação das atividades comerciais observadas no período arcaico em toda a região do Mediterrâneo.

Da parte final do trabalho, aquela que colocamos em perspectiva cronológica a infra-estruturação urbanística da cidade e principais eventos que indicariam esforço por conquista ou defesa de território cultivável, emergem duas conclusões: a comunidade selinontina perseguiu com enorme empenho a busca por amplas extensões de áreas cultiváveis e, posteriormente, aplicou enorme quantidade de recursos para projetar uma paisagem de poder que comunicava para todos que aquele objetivo, além de alcançado, seria defendido a todo custo. A monumentalização da cidade não estava expressa somente na arquitetura dos edifícios cívicos, mas no próprio desenho da malha urbana projetado sobre o território. A cidade em termos de articulação das vias principais, de conexão entre as distintas áreas especializadas, o desenho obtido a partir da disposição sistemática dos conjuntos templários nos diferentes, porém articulados, pontos do assentamento compõem, integralmente, uma paisagem reveladora de um consciente projeto de apropriação do espaço, ou seja, de territorialização (cf. Raffestin, 1993) por meio da projeção de uma paisagem de poder (Veronese, 2006).

Esta paisagem de poder dependia estreitamente não apenas das dimensões monumentais das construções erigidas na cidade. Daí a importância, no nosso entendimento, da replicação das paisagens sacras das comunidades de origem. Como vimos no capítulo 4, em setores distintos da cidade foram construídas estruturas deliberadamente dispostas no terreno para evocar a paisagem religiosa das comunidades de origem. E no caso de Selinonte, temos a identificação de estruturas que remetem tanto a Mégara Hibléia, sua “cidade-mãe” como também Mégara Nisea, a metrópole

balcânica de Mégara Nisea. Acreditamos que estes colonos reivindicavam e reafirmavam seu pertencimento ao conjunto social que entendemos por helênico frente a possibilidade constante de diluição deste referencial frente a sua realidade imediata: a colônia era heterogênea em termos de grupos étnicos que a formavam, mas deliberadamente a comunidade intencionava reiterar uma integração onde prevalecesse a identidade grega, expressa no conjunto arquitetônico monumental, especialmente da colina oriental da cidade. Este aspecto merece aprofundamento em um estudo posterior.

Acreditamos que estas observações são fruto de uma perspectiva adotada desde a concepção do projeto de pesquisa que primou pela verticalização da observação em um estudo de caso. Esta opção, tendo priorizado as especificidades de uma pólis colonial, acabou por nos conduzir a uma série de reflexões que se estendem, tanto em termos geográficos como teóricos, alcançando dinâmicas de apropriação territorial e construção identitária em área mediterrânica. A integração de um enfoque metodológico focalizado no estudo de caso e a sistematização cronológica em termos de diacronia, valorizando os específicos contextos observados no registro arqueológico permitiu que visualizássemos em intensidade processos de integração trans-cultural neste estudo sobre a pólis de Selinonte. Khóra e

ásty, como vimos, são completamente integradas em termos de implemento

urbanístico pois a apropriação e a subdivisão dos espaços ocorrem em processos que não podem ser estancados em virtude da localização geográfica destas áreas especializadas no assentamento, mas sim tidas como uma unidade essencialmente conectada pelas práticas da comunidade que as agencia, e também pelo que entendemos como sendo a própria

natureza da pólis – em termos de pólis colonial arcaica – ou seja, uma unidade territorial que visava soberania sobre áreas produtivas, que dispunha de áreas especializadas para comércio, atividades cívicas e religiosas. Contudo, como foi observado ao longo deste trabalho, cada “caso” deve ser analisado em uma perspectiva que valoriza a multiplicidade de práticas sendo pois, na nossa perspectiva, o caminho para a valorização e compreensão das especificidades das muitas experiências políades.

Selinonte é uma pólis excepcional em tamanho, riqueza, ornamentação e projeção de um discurso de poder. E nada disso teria sido possível sem a exploração econômica da sua pujante khóra. E nada disso seria observável sem os processos materializados em sua ásty.

Documentos relacionados