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A consolidação da acusação de sangue e a pregação franciscana contra os judeus nos

Capitulo 1. O Crime ritual e o libelo de sangue: as dinâmicas da canonização local e a

1.5 A consolidação da acusação de sangue e a pregação franciscana contra os judeus nos

A pregação das ordens mendicantes tornou-se uma parte importante na religiosidade da Idade Média Central. Os sermões se intercalavam com o anseio dos leigos em uma participação

225 STACEY, Robert C. Op. Cit. p. 15. 226 LANGMUIR, Gavin. Op. Cit. p. 302.

mais efetiva em suas respectivas salvações. A fala publica dos frades unia um grande número de fiéis e por meio de artifícios como os exempla, conferia-se um tom didático aos sermões a partir de histórias edificantes e oferecia-se as chaves de um ensinamento da ortodoxia através de exemplos salutares que buscavam ser convincentes e de fácil entendimento. A partir de uma ênfase em diversos temas, os sermões normalmente eram proferidos em uma festa de comemoração a algum santo ou a um ponto das vidas de Jesus e da Virgem. As pregações acompanhavam o calendário litúrgico e, consequentemente, relembrava os temas importantes de uma data específica. A fala dos frades além de sugerir um direcionamento aos preceitos da ortodoxia católica, também buscava coordenar as ações dos fiéis a partir da memorização de questões caras à fé cristã como: a Paixão de Cristo, a Anunciação, a Natividade. Orientar as ações dos leigos e sugerir uma preocupação progressiva com o Destino Final era uma das prerrogativas principais das Ordens Menores227.

A fundação da Ordem dos dominicanos surgiu após Domingos de Gusmão (1170-1221) ter tomado consciência da heresia cátara no início do século XIII. Com o aval do Papa Inocêncio III (1198-1216), a primeira pequena comunidade de pregadores se instalou em Toulouse em 1215 e logo se dispersou para importantes cidades como Paris e Bolonha. Pedro de Verona, membro da Ordem, tomou para si o objetivo de pregação contra os cátaros228. Como a sua hagiografia sugere que o avido pregador haveria sido morto em uma armadilha planejada pelos cátaros em 1252. Em apenas alguns anos Pedro de Verona seria canonizado pelo Papa como mártir, tornando-se ao lado de Tomás Becket (1118-1170) um dos poucos exemplos de mártires canonizados ao longo da Idade Média Central. Se a morte do dominicano Pedro de Verona, motivada pela pregação contra heresia, tornou-se a razão para a rápida canonização do frade, torna-se evidente os anseios de toda a Igreja na pregação contra os dissidentes.

O discurso normatizador dos sermões mendicantes podem se configurar como uma das faces ao aumento da perseguição a grupos desviantes dos ensinamentos da Igreja. Como aponta Jeremy Cohen, já a partir do século XIII, nota-se uma progressiva associação entre judeus,

227 BEAULIEU, Marrie-Anne Polo de. Prédication in : LE GOFF Jacques ; SCHMITT Jean-Claude. (Orgs.) Dictionnaire raisonné de l’Occident médiéval. Paris : Fayard 1999 p. 910.

228 O início do movimento cátaro está diretamente ligado à região campestre do sul da França, esses dissidentes se

expandiram para as regiões do norte da península itálica no final do século XII, instalando sua primeira igreja em Concorezzo, vilarejo próximo a Milão. A presença de um outro importante grupo de cátaros em Desenzano, lugar não distante de Verona, fez da localidade a cadeira para uma outra igreja cátara. Milão foi a cidade onde mais se desenvolveu o catarismo. O movimento cátaro na região italiana estava, majoritariamente, associado ao ambiente urbano, já que ao longo do século XIII cidades como Milão, Verona e até Florença se tornaram um certo refúgio para este grupo de heréticos. Cf: VIOLANTE, Cinzio. Hérésies urbaines et hérésies rurales em Italie du (11e au

13e siècle). In : LE GOFF, Jacques (Org.) Hérésies et sociétés : dans l’Europe pré-industrielle (11e au 18e siècles)

hereges e pagãos, sobretudo na pregação franciscana229. Ao exemplo dos sermões do frade Davi de Augsburgo (1200-1272), nos quais se afirmava como os hereges e os judeus conferiam as mesmas afrontas e injurias a Cristo e a Virgem Maria, enganavam os cristãos pobres e dirigiam uma serie de maldições à Cristandade230.

Os hereges e judeus, assim como sugerido no tópico anterior, conferiam uma suposta ameaça aos sacramentos cristãos. O descredito vindo desses grupos, em relação à eficácia da eucaristia e do batismo, era convertido em acusações de rituais que supostamente buscavam deturpar a fé cristã e violar não só Corpo de Deus, mas também todo o corpo social da Cristandade. Aos dissidentes e judeus cabiam o lugar da corrupção dos valores e das virtudes. A pregação sugeria essas minorias como um contraexemplo ao que devia ser feito para se obter a salvação eterna. Por esse viés, a tolerância aos judeus, preconizada por Agostinho de Hipona, ruía-se. A partir da associação entre judeus e hereges traçava-se uma linha, cada vez mais tênue, de diferenciação entre esses grupos. Dessa forma tanto os leigos como parte do clero sugeriam uma perseguição sistemática às comunidades judaicas. No mesmo patamar dos dissidentes, os judeus passaram a serem vistos como os responsáveis pela disseminação do mal no plano terrestre.

Dentre os diversos exemplos de frades que encorajavam o antijudaísmo em suas pregações durante o século XIII e XIV, Jeremy Cohen cita alguns como: Berthold de Regensburg (1220- 1272), Giordano de Rivalto (1260-1311) e Matfre Ermengaud231. O primeiro e o terceiro atuavam nas regiões germânicas e o segundo na Península Itálica. Bernardino de Siena (1380- 1444) foi um franciscano que se destacou, durante o século XV, pelas suas pregações por diversas cidades ao sul dos Alpes. O pregador atraia grandes multidões por sua ênfase na instrução moral e na exortação penitencial. Seus discursos possuíam uma grande carga de experiência em narrar histórias e se pautavam no entretenimento teatral232. A sua pregação prometia um manto de proteção contra o mal, ensinamentos para se fugir do Inferno e uma preocupação excessiva de como se evitar o Diabo. Sua fala enfatizava a necessidade dos fieis cristãos de estarem sempre atentos em relação as suas atitudes, a vida era basicamente, na sugestão de Bernardino de Siena, uma escolha constante entre o bem e o mal, a salvação e a danação:

229 COHEN, Jeremy. The Friars and the Jews: The Evolution of Medieval Anti-Judaism. Ithaca: Cornell University

Press, 1982. p. 235.

230 Ibid. p. 236.

231 COHEN, Jeremy. Op. cit. p. 226 – 244. 232 Ibid. p.1.

Oh! Quantos presentes aqui hoje que dirão: “Eu não sabia o que eu estava realmente fazendo. Eu pensava que estava realizando o bem ao invés do mal” E então, lembrando-se deste sermão, eles dirão para si mesmos: “Ah! Agora está claro em minha mente o que eu fiz.” [...] E agora quando você firmar um contrato, será o primeiro a pensar e dizer para si: “ Agora o que o frade Bernardino disse? Ele falou tanto e tanto: isto é o mal e não deve ser feito; isso é o bem; isso é o que eu vou escolher233.

Naturalmente, os dissidentes e principalmente os judeus foram o alvo das pregações feitas por Bernardino de Siena. O IV Concílio de Latrão (1215) postulou não só a vigilância dos judeus na Semana Santa afim de evitar possíveis violações ao sacramento ou iconoclastias, mas também o uso de distintivos para a identificação das comunidades judaicas. Os sermões de Bernardino enfatizavam a necessidade de separação entre os judeus e os cristãos, ponto que demonstram o acirramento nas relações entre ambos. Por meio de uma lista o frade enumera proibições e restrições feita aos cristãos dentre elas:

- É uma sina mortal comer e beber com judeus. - É uma sina mortal procurar ajuda a um doutor judeu.

- Os Cristãos não estão permitidos a tomar banho na companhia de judeus. - Os judeus não podem construir novas sinagogas, nem a aumentar as antigas. - Os judeus devem estar sob vigilância durante a Semana Santa “ Deixe-os murmurar sobre a Paixão de Cristo”

- Os judeus devem vestir algum sinal ou distintivo que os identifique como judeus. - Dinheiro, em qualquer caso, não deve ser aceitado por usurários judeus por tais serviços obstétricos, pois este dinheiro na verdade pertencente ao outro234.

Não há nenhum ponto atípico nas proposições de Bernardino, mas evidentemente um

destaque à questão da usura era sugerido pelo frade em questão. A relação entre o pecado da usura e o judeu foi fortemente presente ao longo dos séculos XIV e XV. Na iconografia, os

233 Tradução livre do autor do trecho: “Oh! How many will there be here today who will say: “I didn’t know what I was really doing. I thought I was doing good and instead I was doing evil.” And then, remembering this sermon, they will say to themselves: “Oh! Now my mind is clear about what I have to do”…And when you go to draw up a contract, you will first do some thinking and say to yourself: “Now what did friar Bernardino say? He said such and such: this is evil and mustn’t be done; this is good; this is what I’m going to choose.” MORMANDO, Franco. Op. cit. p.3.

234 Tradução livre do autor do trecho: “It is a mortal sin to eat or drink with Jews. It is a mortal sin to seek help from a Jewish doctor. Christians are not allowed to bathe in the company of Jews. Jews may not construct new synagogues, nor enlarge old ones. Jews must be under curfew during Holy Week “lest they murmur about the Passion of Christ”. Jews must wear some sign or badge identifying them as Jews. Money, in any case, must not be accepted from usurious Jews for such obstetric services, because this money in reality belongs to another.” Ibid. p.170.

judeus ocasionalmente eram representados com uma bolsa de moedas em sua cintura, símbolo direto ao oficio do usurário. O empréstimo de dinheiro sob juros era visto como uma blasfêmia a Deus e a todos os cristãos. A usura estava estritamente associada à avareza, pecado capital. Para Tomás de Chobham haveria duas maneiras de se cometer o supracitado pecado, de forma velada ou aparente, à usura cabia o patamar de forma mais evidente para se exercer a avareza235. Peyraut, ao escrever a Suma sobre vícios e de virtudes, afirmou que haveria dedicado um longo capitulo apenas a avareza por creditar que o combate a esse pecado fosse uma das partes mais importantes de qualquer pregador236. Se ao longo dos séculos X e XI, o pecado da soberba era um dos que possuíam a maior visibilidade, uma mudança lenta de um ethos econômico no Ocidente Medieval tornou a avareza o centro das atenções do que deveria ser combatido237. De fato, não era apenas o judeu que lucra a partir dos empréstimos a juros ou pelo comércio. No entanto - a partir do arquétipo do judeu como ameaça ao corpo da Cristandade - era possível creditar a esse grupo minoritário, o posto do enriquecimento ilícito a partir do roubo das riquezas que deveriam pertencer aos cristãos:

E esta concentração de riquezas na mão de poucos é perigosa para a saúde da cidade, isto é ainda mais perigoso quando esta riqueza e dinheiro está concentrado e mantido na mão dos judeus. Neste caso, o natural calor da cidade – por aquele que a riqueza representa – não está voltando para o coração para dar assistência ao invés disso se apressa de um abscesso para uma hemorragia mortal, desde então todos os judeus, especialmente aqueles que são usurários, são os arqui-inimigos de todos os cristãos238.

Bernardo de Siena, como visto no trecho anterior, denota uma analogia entre os usurários e a responsabilidade por uma hemorragia mortal. Já no século XIII, Jacques de Vitry qualificava os homens que emprestavam dinheiro a juros como os seres repugnantes que invadiram as cidades. Aos que exerciam esse oficio, Vitry compara com o parâmetro das sanguessugas já que os usurários empobreciam os mais humildes, saqueavam as igrejas e inundavam as rotas das peregrinações com o sangue inocente239. Ao sangue interno era conferido na Idade Média

235 CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. Histoire des Péchés Capitaux au Moyen Âge Paris : Éditions

Flammarion, 2009. p.155.

236 Ibid. p.156. 237 Ibid. p.157.

238 Tradução livre do autor do trecho: “And this concentration of wealth in the hands of the few is dangerous to the health of the city, it is even more dangerous when this wealth and money is concentrated and gathered into the hands of the Jews. For in that case, the natural warmth of the city – for that its wealth represents – is not flowing back to the hearth to give it assistance but instead rushes to an abscess in a deadly hemorrhage, since all Jews, especially those who are moneylenders, are the chief enemies of all Christians.” MORMANDO, Franco. Op.cit. p.189.

o sentido similar ao de vida e ao sangue externo, o de morte240. Ao associar, os usurários às sanguessugas se afirmava que os praticantes desse ofício roubavam as vidas dos cristãos ou lhe tiravam uma parte de sua força vital.

Como apontado no tópico anterior, no século XIII se consolidou uma tensão entre os cristãos e os judeus na Semana Santa graças à confirmação do dogma da transubstanciação. Bernardino de Siena demonstra, em uma de suas pregações, esse receio dos cristãos da exposição do sacramento e do descredito judaico na rememoração da Paixão de Cristo. Em seu sermão, Bernardino afirma que os judeus não respeitariam o sofrimento cristão durante a Semana Santa e postula que os judeus não deveriam circular nas ruas durante esse momento do calendário litúrgico. Só por meio dessa proibição se evitaria as insultas e as blasfêmias que a comunidade judaica supostamente costumava a fazer à celebração da Páscoa cristã:

Eles não devem aparecer em público em todos os dias da lamentação e no domingo de Páscoa; pois alguns deles nestes dias, como nós já ouvimos, não se envergonham de desfilar com ornamentados vestidos e não possuem medo de afrontar os cristãos que estão presenciando o memorial da mais sagrada Paixão e mostrando sinais de aflição. O que nos é mais estritamente proibido, no entanto, é aquilo que eles se atrevem, de qualquer maneira, em fazer para o escárnio da Redenção. Nós ordenamos os príncipes seculares a restringir com punições condignas aqueles, os quais se atrevam a fazer, a fim de que eles não se atrevam a blasfemar, de qualquer forma, aquele que foi crucificado por nós desde então nós não devemos ignorar os insultos contra Ele que se maculou por nossos erros241.

Apesar de Bernardino de Siena não ter feito uma menção direta às acusações de crime ritual e de libelo de sangue, os seus sermões e suas proposições foram vitais para o aumento do antijudaismo na Península Itálica ao longo da primeira metade do século XV242. Sua pregação reforçou, como demonstrado, estereótipos dos judeus como sanguessugas de riquezas matérias, avarentos, blasfemadores da fé cristã em potencial e um perigo eminente à comemoração da Páscoa. As palavras deste franciscano se constituíram como um parâmetro para que outros

240 BYNUM, Caroline Walker. Wonderful Blood: Theology and Practice in Late Medieval Northern Germany and

Beyond. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2007. p. 17.

241Tradução livre do autor do trecho: “They shall not appear in public at all days of lamentation and on Passion Sunday; because some of them on such days, as we have heard, do not blush to parade in very ornate dress and are not afraid to mock Christians who are presenting a memorial of the most sacred passion and are displaying signs of grief. What we most strictly forbid, however, is that they dare any way break out in derision of the Redeemer. We order secular princes to restrain with condign punishment those who do so presume, lest they dare to blaspheme in any way him who was crucified for us since we ought not to ignore insults against him who blotted out our wrongdoings.” Apud MORMANDO, Franco. Op.cit. p.175.

frades também proferissem, posteriormente, discursos contra os judeus. Após sua atividade de aproximadamente quarenta anos, Bernardino de Siena deixou muitos discípulos quando morreu em 1444243.

O caso de Simão de Trento ocorreria por volta de trinta anos após a morte de Bernardino de Siena. Um franciscano posterior, conhecido pelas suas pregações contra os judeus, foi Bernardino da Feltre (1439-1494). Seus sermões mencionavam além da necessidade de um cuidado dos cristãos com o consumo de sangue feito pelos judeus, a possibilidade da ocorrência de crimes rituais no final do período da Quaresma244. A historiadora Valentina Perini afirma que os sermões proferidos por Feltre, são indícios de como a Ordem franciscana obteve um papel considerável na disseminação do culto e da santidade de Simão de Trento245. A fundação do Monte di Pietà - organização criada pelos franciscanos, na década de 1470, no norte da península itálica, para emprestar dinheiro aos mais necessitados a juros baixos - constituía-se como uma outra medida da Ordem menor ao combate à usura246.

Se inicialmente a legenda de crime ritual se constituiu no meio beneditino e se propagou graças aos esforços dos monges ingleses, a narrativa acusatória rapidamente se expandiria pela Europa continental logo no século XII e posteriormente tomaria para si outros significados, sem, no entanto, mudar as suas bases. A partir do século XIII, o dogma da transubstanciação conferiu uma excessiva importância na memória não só da Paixão de Cristo, como também de sua Encarnação. À hóstia não era conferida apenas o momento de sacrifício do Filho de Deus, de uma maneira similar o sacramento se semelhava ao Menino Jesus devido à sua mescla de fragilidade e poder.

Logo no mesmo período, quando se nota a importância do consumo literal do Corpo e do Sangue de Cristo, assim como um aumento da perseguição aos dissidentes e judeus, em mesma medida se vê como esses grupos minoritários se constituíam como uma válvula de escape para se atenuar as repressões das dúvidas cristãs acerca da eficácia da consagração da hóstia. As fantasias irracionais, criadas pelos cristãos como forma de desqualificar os ritos dos judeus, encontraram nas pregações franciscanas ao longo dos séculos XIV e XV um de seus meios de difusão. O judeu como o contraexemplo do que ser seguido para se obter a salvação foi progressivamente sugerido como uma das causas de todo o mau existente no mundo.

243 Cf: PERINI, Valentina. Il Simonino: geografia di un culto. Trento: Società di studi trentini di scienze storiche,

2012 p.87.

244 Ibid. p.89. O papel da pregação de Bernardino da Feltre e dos franciscanos na difusão do culto do Simão de

Trento serão aprofundados nos capítulos III e IV.

245 Ibid. p. 89.

246 Para aprofundafundamento sobre a fundação do Monte di Pietà, Cf: MUZZARELLI, Maria Giuseppina. Il Denaro e la Salvezza: l’invenzione del Monte di Pietà Bologna: Il Mulino, 2001.