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Capítulo 4 As narrativas textuais dos incunábulos Die geschicht und legend von dem

4.2 A estrutura narrativa do Livro Die Geschicht und Legend von dem seyligen kind und

4.2.3 O elogio à memória do menino mártir e o vitupério dos judeus

As últimas quatro páginas do livro, posicionadas após a xilogravura de Simão sendo

venerado na Igreja, estão relacionadas a uma tentativa do autor em rememorar o fiel acerca das

dores simonianas detalhadas no tópico anterior. Neste trecho fica mais evidente uma comparação entre a Crucificação de Cristo e a Crucificação de Simão e com comandos como: (Sich du!) olha, (Nym!) veja! e (Merck!) observa! o leitor é convidado diretamente a refletir sobre o peso da amarga morte do menino Simão e do papel dos judeus neste “cruel e obscuro” sacrifício.

Alguns antônimos são importantes para entender a parte final deste livreto. No entanto o mais importante é a oposição entre o elogio do Martírio de Simão e a condenação do ritual judaico seguido da maldição dirigida a toda cristandade. Esses dois pontos são destacados, a conclusão é a vitória dos cristãos obtida pela dor de um sacrifício de uma criança de condição humilde. O crime ritual, mais uma vez cometido pela comunidade judaica, teria como resultado, o caminho oposto daquele supostamente esperado pelos seus praticantes. Ao amaldiçoar toda a cristandade, sacrificar uma criança para reconfigurar a Crucificação afim de afrontar a fé cristã

572 Tradução de minha autoria do trecho: „Und wañ wir das thuen/ So gelaubet nyemand/ das die iuden das kind

getöttet haben/ Diser ratt und urtayl gefyel den Iuden allen wol/ Und also gieng der blüttent verräter Tobias auf zü dem bischoff/und sagt im als sy in irem ratt von wort zewort beschlossen hetten/ wa daz kind wäre/ Des ward der Bischoff fro/ und hyess mit im gan/ hansen von salis richter/ und iacoben von sporo pfleger seiner statt Trient/ dahin/ da das kind lag/ sy giengen ab/ und fanden von stundan daz kindlen in dem wasser/ angeleget mit seinen tüchlen/ Sy zogen den todten leyb bald herauss/ uñ geschautten fleyssigklichen die wunden die der leyb hette.“ TIBERINO, Giovanni Mathias. Die geschicht und legend von dem seyligen kind und marterer gennant Symon. f. 7v.

573 Tradução de minha autoria do trecho: „Dahin vil gross menig der völcker und der krancken menschen emssigklichen zesamen komen/ und das kind mit vil grossen zaichen von tag tzü tag erscheynet.“ TIBERINO, Giovanni Mathias. Die geschicht und legend von dem seyligen kind und marterer gennant Symon. f. 7v.

e a memória da Paixão de Cristo na Semana Santa, os judeus, por conseguinte, são descobertos, punidos e condenados ao inferno pela eternidade. Em um embate de significado ritualístico, presente na narrativa criada pelos cristãos, apresenta como desfecho: a derrota judaica, a exaltação do povo cristão e o triunfo do menino Simão como mártir no Paraiso.

A parte final da narrativa se inicia com um convite explicito ao leitor para se meditar como Jesus Cristo foi sacrificado novamente através de uma “criatura inocente” (unschuldigen creatur):

Veja fiel cristão como o nosso abençoado Senhor Jesus Cristo, através de sua inocente criatura, foi novamente e vergonhosamente crucificado. Veja o que fizeram os judeus quando eles, sob o domínio cristão, o que com violência fizeram. O altamente digno Simão, virgem e puro. Um sangue inocente e martirizado que foi sugado e tirado dos seios de sua adorável mãe e de sua língua que mal podia falar. Tudo isso para a vergonha da nossa fé. Ele foi estendido na cruz pelos judeus574.

Um ponto importante a observar é como Simão é classificado como “virgem e puro” (iunckfraw und rainer). Como aponta o historiador inglês Anthony Bale, a virgindade, no caso das supostas vítimas do crime ritual, estaria diretamente associada à imagem de fragilidade do Menino Jesus575. Ser menino, puro e virgem se constituía como elemento essencial para a narrativa, uma vez que este distinguia as vítimas como puras e virgens, dos praticantes do ritual que tinham os seus corpos associados à corrupção resultada dos pecados576.

A narrativa segue e relembra como os judeus amaldiçoavam dia após dia não só o sagrado sacramento, como também a Virgem Maria, afrontas que seriam feitas contra a Igreja romana:

Os judeus, sempre, foram reconhecidos por amaldiçoar diariamente não só Maria: mãe, pura e virgem, como também sagrado sacramento divino e dizem todas as palavras para mancha-los e pelo encontro dessas palavras que são tomadas e pelas quais eles dizem para envergonhar a Igreja Romana. Item, na caixa onde estava o

574 Tradução de minha autoria do trecho: „O sich du cristtgelaubiger mensch unser lieber herr Jhesus Christus ist in seyner unschuldigen creatur czwischen den schachern widerumb gekreucziget worden/ Nym war was tätten die Juden wann Sy under den kristenmenschen herschung uñ gewallt hetten/ Der hoch wirdig Symon ein iunckfraw oder rainer degen/ ein marterer und unschuldigs blüt/ der nit lang nach dem und er abgeseuget ist worden võ den brusten seiner lieben müter/ und des zungen noch nit hat kunnen reden/ zü ainer schmach unsers gelaubens ist er võ den iuden aussgedönet worden in kreuczweyss.“ TIBERINO, Giovanni Mathias. Die geschicht und legend von dem seyligen kind und marterer gennant Symon. f. 8r.

575 BALE, Anthony. The Jew in the Medieval book: English Antisemitisms, 1350-1500 London: Cambridge

University Press, 2006. p. 128.

terceiro livro do Talmud o qual os judeus encantadoramente apreciam e então os cinco livros de Moises [...] Lá estão as mentiras, as mentiras ou meias verdades que os judeus veneram e como eles afirmam que Deus ensina pelo Talmud. E então os judeus ofertam todos os dias em suas orações e amaldiçoam os cristãos577.

Os rituais judaicos então não seriam apenas uma inversão, feita na Semana Santa, da consagração da hóstia realizada pelo padre na igreja, mas também um exercício diário de constante afronta e acirramento contra a cristandade. Pela pratica diária do cotidiano da religiosidade judaica, a presente narrativa, sugere que os judeus não só propagavam “mentiras ou meias verdades” como também realizavam cantos, orações e discursos de maldição contra todos os cristãos e seus símbolos e dogmas relacionados à fé e a vivencia cotidiana da Eclésia. Não de proposito, neste trecho destinado à rememoração do sacrifício de Simão e o rito judaico, a santidade, a pureza e castidade da vítima é intercalada com a maldade, corruptibilidade e os pecados dos praticantes do libelo de sangue. A partir dessa antítese se cria uma forma de se edificar a devoção ao menino Simão de Trento, um culto baseado em premissas antijudaícas578. No entanto, uma profunda analise textual demonstra como o antijudaismo é apenas uma das faces da edificação do culto simoniano. O embate entre significados ritualísticos, criado pelos próprios cristãos, denota uma necessidade de um espaço de disputa onde um grupo minoritário colocaria supostamente em xeque os valores e dogmas da fé cristã como a transubstanciação da hóstia e a prerrogativa de Jesus Cristo como o Filho de Deus e principalmente a memória da Crucificação. Essa disputa, como demosntrado anteriomente, é vencida pelos próprios cristãos a partir do encontro do corpo e a punição dos supostos culpados. Em contrapartida o antijudaismo, sugerido por esse conflito, é apenas uma das bases para a formação do culto tanto no caso de Simão, como de qualquer vítima de crime ritual. As aproximações das dores de Simão, com as de Cristo são essenciais para o fiel elucidar a dimensão da dor da morte do menino e assim provar como esta vítima morreu, assim como Jesus para salvar a humanidade como sugere o seguinte trecho:

577 Tradução de minha autoria do trecho: „Die iuden haben ein ewiges gesacz erkennet/ dz dem heyligen göttlichen sacrament und der werden müter Marie der raynigisten iunckfraw entägichen geflüchet werde/ und sprechen/ dz alle wort vermayliget und fund seyen aussgenomen die wort die durch sy beschehen zü schmach d‘ römischen kirchen/ Item in kester theusesim/ das ist dem dritten büch Talmut/ das dañ die iuden höcher schäczen/ dañ die funff bücher Moysi/ […] Do setzen die iuden lugmät seinen lugen halftigen digen und sprechen/ das gott Talmut lerne/ darinn wiert den iuden geboten/ das sy alletag weystund in irem gebett all kristenmenschen verflüchen.“ TIBERINO, Giovanni Mathias. Die geschicht und legend von dem seyligen kind und marterer gennant Symon. f. 8v. – 8r.

578 Conceito formulado pelo historiador Mitchell Merback. Ver: MERBACK, Mitchell. Pilgrimage and Pogrom:

Violence, Memory and Visual Culture at the Host-Miracle Shrines of Germany and Austria. Chicago: University of Chicago Press, 2012. p. 3.

Para que a legenda desse mártir inocentes, o defunto Simão tenha um fim com Cristo o Senhor que afasta de nós todas as nossas dores, nos presenteou com a vida eterna deste mártir que através de seu amargo Martírio morreu por todos nós. Escrito em Trento no dia 4 de abril do ano de 1475 desde o nascimento do nosso mais alto Senhor579.

A tradução do livro Passio beati Simonis resultou no pequeno incunábulo de Augsburgo

impresso entres os anos de 1476 e 1477 na cidade de Augsburgo, tradução do texto escrito originalmente em latim em abril de 1475. O livreto acompanha imagens e o constante convite de se refletir sobre as dores simonianas para se reafirmar a prerrogativa da descrição do Simão como puro e mártir. Em setembro de 1475, um outro livro escrito por um autor anônimo traria alguns acréscimos e pequenas modificações na história do pequeno beato Simão em relação ao texto do Giovanni Matia Tiberino. Demonstrar essas singularidades e compara-las com os pontos abordados nesse primeiro tópico é objetivo da segunda parte do presente capítulo.