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A legenda de crime ritual e as suas percepções e repercussões no final do século

Capitulo 1. O Crime ritual e o libelo de sangue: as dinâmicas da canonização local e a

1.6 A legenda de crime ritual e as suas percepções e repercussões no final do século

Ronnie Hsia aponta que uma multiplicidade de formas haveria caracterizado a transmissão da acusação de crime ritual e do libelo de sangue, as que se destacariam no século XV seriam: a oralidade, os objetos impressos e a iconografia247. Numa perspectiva de longa duração, essas acusações se estenderam a partir de suas origens nos séculos XII e XIII respectivamente e obtiveram uma consolidação e auge nos XIV e XV248. O século XV traria mudanças significativas para Europa, bases para o posterior dinamismo econômico da parte ocidental do continente. A invenção das técnicas de xilogravura e da tipografia trouxe inicialmente modificações pontuais na forma da difusão de informação e nos hábitos de leitura. Por este víeis, a partir da década de 1470, nota-se como o libelo de sangue e acusação da profanação da hóstia teriam se beneficiado deste novo meio para efetivar a sua difusão.

Ao falar de objetos impressos, referirmo-nos a objetos feitos nos espaços urbanos acessíveis, ao menos ao longo do século XV, majoritariamente aos burgueses com recursos suficientes, seja para ser o confeccionador de livros e gravuras ou simplesmente um comprador ou leitor dos mesmos. Hsia nota como essas narrativas acusatórias estariam atreladas aos anseios e aos receios dos citadinos em relação aos judeus. Por esse víeis é considerável creditar que a difusão dessas legendas se deve, ao menos neste momento, aos esforços de intelectuais leigos como Hartmann Schedel (1440-1514). Schedel foi um importante humanista da cidade de Nuremberg249 que ao compilar a celebre Crônica de Nuremberg enumerou três casos de crimes rituais dentre eles: Guilherme de Norwich (1144), Ricardo de Pontoise (1179) e Simão de Trento (1475). Também são mencionados alguns casos de profanação da hóstia ocorridos em: Passau (1477), Regensburg (1478), Breslau (1478) e Sternberg (1492); este último é descrito com alguns detalhes e os outros três primeiros são apenas mencionados.

Ao abordar sobre os diferentes casos de crimes rituais ocorridos na Europa, a partir do caso de Guilherme de Norwich, Hartmann Schedel se constitui como indicio de como setores de uma população instruída obtinha o conhecimento de como a acusação de crime já, no século XV, se circunscrevia em um contexto de longa duração. Para Schedel não bastava apenas narrar, no folio CCLIV da Crônica de Nuremberg, o caso de Simão de Trento (1475). O humanista

247 HSIA, Ronnie Po-chia. The myth of ritual murder: Jews and magic in reformation Germany. Op. Cit. p. 46. 248 Ibid. p. 4.

249 Schedel, assim como outros membros das classes abastadas de Nuremberg, seguiu uma importante trajetória

nos estudos acadêmicos. Quando tinha apenas dezesseis anos, passou a frequentar a universidade de Leipzig, onde estudou até 1460 e ao sair obteve o grau de bacharel e mestre em Artes Liberais. Logo depois, ao decidir estudar medicina, viajou para à península itálica e na universidade de Pádua onde obteve o seu título de doutor em 1466. Cf: RÜCKER, Elisabeth. Hartmann Schedels Weltchronik München, Prestel-Verlag, 1988. p.20.

também conferiu espaços em seu texto para os casos pontuais dos supostos crimes que os judeus realizaram contra a cristandade e a maioria dessas afrontas são descritas, de maneira cronológica, a partir do caso de Guilherme de Norwich em sua crônica universal250. Diferentemente do século XII, quando a acusação de crime ritual haveria surgido, na Baixa Idade Média se havia uma expectativa, ao menos por parte da população, de que os judeus possivelmente matariam outra criança cristã. A narrativa já consolidada além de se firmar nas propostas inicias feitas pelo monge Tomás de Monmouth, também se beneficiava, nesse momento, de sua própria exaustiva repetição feita ao longo de três séculos.

Schedel, a partir da enumeração desses casos, buscava conferir como os judeus eram uma ameaça eminente à cristandade e poderiam agir de maneira similar no futuro próximo em prol do prejuízo de todos os cristãos. A consolidação dessas narrativas demonstra o ápice do acirramento das relações entre judeus e cristãos. No reino inglês, local onde haveria surgido tal legenda, os judeus seriam expulsos pioneiramente em 1290. Já em outras regiões como o Sacro Império Romano Germânico ou a Península Ibérica, essa consolidação ocorreria apenas no século XV e conferiria o mesmo resultado251.

O caso de Simão de Trento (1475), de fato, se formou nessa presente fase de difusão da acusação de crime ritual, por ser uma legenda já consolidada no Ocidente Medieval, facilmente se propagou nas regiões ao entorno dos Alpes. A difusão da santidade do menino mártir de dois anos que foi morto na cidade de Trento seria evidentemente beneficiada pelos objetos impressos. No entanto não devemos nos esquecer como a longa duração da legenda foi responsável pela cristalização por toda Europa ocidental de uma narrativa acusatória que conferia às crianças cristãs mortas, supostamente pelos judeus, o título de mártires. Em suma Simão de Trento, como veremos posteriormente, teve sua santidade apoiada por meio não só mais de sermões ou de hagiografias manuscritas; mas também por meio de incunábulos e

250 A Crônica de Nuremberg narra a História da humanidade e a divide em sete Eras. A Primeira Era se configura

de Gênesis até o Dilúvio, a segunda até o Nascimento de Abraão, a terceira até o reinado de Davi, a quarta até o cativeiro dos judeus na Babilônia, a quinta até o Nascimento de Jesus, a sexta até o Apocalipse, a sétima até o Juízo Final. Esta divisão era comum para um gênero de livros conhecidos como “crônicas universais” presentes no Ocidente desde da Alta Idade Média. O conceito cristão de “crônica universal” foi formulado pelo bispo Eusébio de Cesareia, o biografo do imperador Constantino. Em seu livro, Chronicarum Canones, há uma listagem de datas desde os assírios, hebreus, egípcios, gregos e romanos até o ano de 325. Este texto foi traduzido para o latim por São Jerônimo e deste então esta cronologia, proposta por Cesareia e baseada em fatos considerados como anteriores ao Nascimento de Jesus, tornou-se parte da narrativa referente à Quinta Era destas crônicas durante o período medieval. Cf: ZAHN, Peter. Introduction In: WILSON, Adrian. The making of the Nuremberg chronicle Amsterdam: Nico Israel, 1976 p. 19.

251 Diferentemente do caso do reino de Castela que oficializou a expulsão dos judeus em 1492, o Sacro Império

Romano Germânico contava com expulsões pontuais e locais dos judeus a partir do seculo XIV. Essas expulsões eram a razão para a constante mobilidade das comunidades judaicas na região, como o exemplo das três familias judaicas envolvidas no caso de Simão de Trento, ponto que será aprofundado no terceiro capítulo.

gravuras. Essas técnicas eram recentes na Europa e este suporte possuía diversas minucias tanto em sua produção como para os seus usos e funções.

CAPITULO 2 – DO COPISTA AO IMPRESSOR: O ADVENTO DA IMPRENSA EM