• Nenhum resultado encontrado

Em 1932, por ocasião da Revolta Constitucionalista, a fronteira viria a abrigar novos exilados. Se em Rivera reuniam-se os remanescentes da FUG (Frente Única Gaúcha), refratários ao regime de Vargas e seu interventor no Rio Grande do Sul, Flores da Cunha, por Santana passariam os dissidentes do golpe promovido pelo Colorado Gabriel Terra, em 1933. Entre os insurgentes constava a liderança de Waldemar Ripoll, advogado e jornalista, membro do Partido Libertador51, que procurava articular desde a cidade uruguaia uma reação armada contra o poder central, e em última instância, contra o governo Flores da Cunha. Um acordo entre os ditadores da ocasião, Getúlio Vargas no Brasil e Gabriel Terra no Uruguai, colocaria mais uma vez o grupo brasileiro exilado sob a vigilância das forças policiais da fronteira.

A presença de paulistas e gaúchos exilados no Uruguai, ao final da fracassada revolta de 1932, não foi um acontecimento acidental. Na verdade, o Uruguai caracterizou-se historicamente por ser o refúgio de grupos políticos dissidentes, ou contrários aos governos situacionistas no Rio Grande do Sul ou no Brasil. A diferença (...) refere-se ao apoio recíproco entre os governos nacionais dos dois países, que trocavam informações e vigiavam os exilados do país vizinho, ao mesmo tempo em que articulavam tratados de restrição da mobilidade, permeabilidade e complementaridade que ocorriam na região de fronteira.52

Expoente do Partido Libertador, Waldemar Ripoll tomou parte no levante gaúcho de 1930 que colocou Vargas no centro do poder da república, em uma união com o Partido Republicano Riograndense (PRR), alinhados na Frente Única Gaúcha (FUG). O pacto não durou o tempo necessário para que as disputas políticas internas

50

Helio Santana Alves. Entrevista citada.

51

O partido Libertador foi fundado em 1928 por antigos partidários do Partido Federalista do Rio Grande do Sul. Em 1929 alia-se ao Partido Republicano Riograndense e leva Getúlio Vargas ao poder, na Revolução de 30. Em 1932, seus partidários rompem com Getúlio e partem para o exílio depois do fracasso da revolta constitucionalista.

52

RANGEL, Carlos Roberto da Rosa. A conspiração revolucionária da oposição brasileira a Vargas no

amainassem, e parte expressiva da FUG, salvo o interventor Flores, se alinhasse com os rebelados paulistas, que pediam a Constituinte e a volta do estado de direito.

No centro da conspiração fronteiriça encontrava-se Waldemar Ripoll, que acalentava o sonho de revolucionar o país, ou, se não fosse possível, ao menos o Rio Grande do Sul. Uma aliança estratégica entre as ditaduras de Vargas e Gabriel Terra, no entanto, mantinha o contingente de revolucionários de ambos os lados, sob vigilância constante. Um movimento armado contra o ditador uruguaio vinha sendo alimentado em Santana do Livramento, do lado oposto à trincheira mantida pelos rebelados brasileiros. Nesse contexto, o congresso do Partido Libertador acontece em 1933, na cidade de Rivera, sob a vigilância de agentes brasileiros infiltrados, que vinham à fronteira reconhecer lideranças militares exiladas, sob a anuência do governo Terra.

A cidade uruguaia mais uma vez desempenharia uma função essencial no reagrupamento dos insurgentes. O plano de retornar ao Estado por uma via revolucionária logo foi abandonada pelos companheiros de Ripoll, com a adesão gradativa dos revoltosos paulistas à política de reaproximação promovida pelo Governo Vargas. O jornalista viu-se cada vez mais isolado, vigiado de perto pelos agentes da polícia de Flores da Cunha, que promoveria a morte de outros militantes gaúchos. O comunista Mário Couto, líder sindical, seria assassinado em plena luz do dia, durante uma greve da Companhia Carris, em Porto Alegre, em 17 de janeiro de 1935. Da mesma forma, em 13 de outubro daquele mesmo ano, foi morto o advogado Aparício Córa de Almeida, militante comunista, secretário da Aliança Nacional Libertadora no Rio Grande, colega e conterrâneo de Ripoll. O destino do jornalista e ideólogo do PL não seria diferente. Assassinado em Rivera a golpes de machado, enquanto dormia, a 31 de janeiro de 1934, a morte de Waldemar Ripoll reforçou mais uma vez a fragilidade da linha de fronteira enquanto salvo-conduto político.

No conto de Humberto Setembrino Carvalho, advogado e militante comunista, o destino de Ripoll é retratado na ficção, reverenciado como o de um injustiçado, idealista, que teve de fugir das garras da ditadura e da oligarquia rural que denunciava, e iria encontrar a morte, em um crime político que não seria novidade naquela fronteira:

Waldemar desafia governos e poderosos. Desafios, sempre os desafios. Uma constante em sua vida. Acadêmico, presidiu a Federação de Estudantes, lutando pela implantação de uma universidade no Estado. Na Revolução de 30, comandou a tomada do edifício dos Correios e Telégrafos, em Porto Alegre. Vitoriosa, aquela revolução, ardentemente desejada, fora traída. Não se implantara o estado de direito, dominara-a a ditadura. A procrastinação contínua de uma nova lei fundamental que institucionalizasse os ideais de 30 levou-o à Revolução de 32, também traída no Rio Grande do Sul. O esforço de Cerro Alegre fora vão. Seguiu-se a derrota. As prisões em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. O navio e o exílio. Lisboa. Depois, a volta, clandestina. Antofogasta, Buenos Aires, Montevidéu e Artigas. Finalmente, Rivera. As lutas intestinas da Frente Única, onde se reuniam os exilados. A aceitação da anistia ou a volta pelas armas? Mais desafios... As lutas internas da Frente foram se aguçando de tal sorte que Waldemar teve de se afastar do hotel, onde residia com seus companheiros, para não romper com os amigos, alugando a casa da calle Brasil. O afastamento da coletividade dos exilados resultava em perigo à sua segurança. Os inimigos já haviam tentado matá-lo em plena avenida principal de Rivera e à luz do dia. Agora, morava com o Corrêa, que ontem viajara, ficando com o João, um "sordado véio do general Honório Lemes", como o próprio João se apresentara, acolhido como caseiro, a quem passou a se referir, bondosamente, como "o meu secretário".53

Por ironia, seria o caseiro acolhido pelo espírito solidário de Waldemar Ripoll, o autor do crime que chocou a opinião pública gaúcha. Por trás da tragédia, recaiam as suspeitas sobre o chefe da Polícia Aduaneira de Santana, Camilo Alves da Silva, acusado de mandante. Homem forte de Chico Flores, irmão do governante do Estado, José Antônio Flores da Cunha, Camilo comandava a rede do “contrabando oficial” na região, ou seja, administrava para si e os seus apaniguados os negócios ilegais através da linha de fronteira, agindo com mão de ferro contra seus opositores.54 Por ironia, pouco menos de três anos depois, seria o próprio Flores da Cunha quem viria buscar em Rivera a porta de entrada para o exílio. Deposto pelo presidente e ex-aliado, Getúlio Vargas, Flores “de madrugada cruzou a linha divisória que separa Santana de Rivera e foi se exilar no Uruguai. Estava finalmente aberto o caminho para Getúlio Vargas, duas semanas depois, valendo-se de um forjado Plano Cohen, instaurar a ditadura do Estado Novo no Brasil”.55

53

CARVALHO, Humberto Setembrino Correa de. Ponaim, Canto e Morte; ou Um conto, um tanto fantástico, sobre um fato histórico, com elementos de Tragédia. Conto inédito, s/d. Arquivo do autor

54

“O patronato político local de Santana do Livramento estava representado pela família Flores da Cunha desde 1910, tornando-se Livramento um reduto do situacionismo republicano [...] O coronel Francisco Flores da Cunha, conhecido como Chico Flores, era irmão de José Antônio e próspero fazendeiro sobre quem pesava sérias suspeitas de envolvimento no contrabando de gado e manipulação da polícia aduaneira a seu favor. In: RANGEL, Carlos Roberto da Rosa. Crime e castigo. Conflitos Políticos no Rio Grande do Sul (1928-1938). Passo Fundo: Editora UPF, 2001, p.47.

55