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O casarão da Avenida Brasil 1210 esquina com calle Joaquin Soares ficaria assinalado na memória de muitos exilados e militantes em busca de abrigo, em passagem pela fronteira. Situado a duas quadras da Avenida Sarandi, principal via de Rivera, o velho hotel foi arrendado pelo ex-presidente do PTB de Quarai, Nery Medeiros, que ali montou um verdadeiro quartel general da solidariedade e abrigo aos perseguidos políticos que chegavam de todas as partes do país em Rivera. Fazendeiro, eleito vereador pelo PTB de Quarai, Nery Medeiros não só foi impedido de assumir a cadeira na Câmara de Vereadores como foi severamente perseguido pelos opositores políticos da cidade, então com menos de 20 mil habitantes, que faz fronteira com Santana do Livramento e o município uruguaio de Artigas, ao sul. Em Quaraí, berço de literatos como Lilla Ripoll e Cyro Martins, ambos com intensas relações com o Partido Comunista Barasileiro, Nery Medeiros construiu uma carreira política ligada aos ideais petebistas, onde alcançou grande popularidade. Com o golpe, entrou para a primeira lista da repressão militar e foi preso no primeiro momento. De família constituida de grandes proprietários rurais da região de Alegrete e Santa Maria, Nery era proprietário de uma boa extensão de terras no município, mas ao contrário de seus pares, nutria uma grande revolta contra as injustiças sociais, que o levou à atuação político-partidária e o alinhamento com as reformas propostas pelo então governo Goulart.

Nos primeiros dias do golpe foi preso no quartel da cidade, acusado de comunista e militante do Grupo de 11, liderado por Leonel Brizola. Preso por duas semanas, Nery Medeiros conseguiu uma liberdade provisória com o pretexto de vender algumas cabeças de gado e saldar uma dívida que havia contraído junto ao

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Ata nº 1752 realizada em 18 de abril de 1969, na Câmara Municipal de Vereadores de Santana do Livramento. Arquivo pessoal Antônio Apoitia Neto.

Banco do Brasil. Foi o espaço que encontrou para empreender uma fuga pelo matagal que circundava a cidade, onde ficou escondido por alguns dias, devido a forte presença de tropas na fronteira. Abatido pela empreitada, ainda teve fôlego para atravessar o Rio Quarai, penetrando em território uruguaio, onde foi resgatado por parentes e levado para Santana do Livramento. Pouco tempo depois sua esposa, Zely Fontoura de Medeiros, viria juntar-se a ele, com as quatro filhas do casal, com idades entre cinco e dezesseis anos.

Como grande parte dos exilados que se fixaram em Rivera, Nery e Zely tinham familiares em Santana do Livramento, o que veio a revelar-se uma valiosa ajuda no momento que foi necessário. Antes do final de abril de 1964, Zely e as filhas já estavam vivendo na casa da avó materna, que residia em Santana. Porém o abrigo da avó materna durou pouco tempo, pois as condições financeiras de Nery logo permitiram que ele alugasse uma velha pensão em Rivera e transferisse para lá toda sua família.

Adalgisa de Neri Medeiros Mottin, então com 14 anos, relembra figuras que marcaram sua adolescência no casarão da Avenida Brasil. Por lá passaram a família de Percy Penalvo, ativista político ligado aos pequenos agricultores de Itaqui que viria a ser o administrador da fazenda de João Goulart em Taquarembó; o afamado líder comunista de Uruguaiana, Ulisses Villar223, o médico e ex-vereador petebista de São Borja, Alberto Benevenuto, que se tornaria o porto seguro das crianças e mulheres exiladas por força do arbítrio contra suas famílias e o emblemático Chico Cabeda e sua esposa, Vilda. Sobrinho de Rafael Cabeda, líder dos federalistas na

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Sobre Villar, o engenheiro uruguaianense Elo Ortiz Duclós Filho, descreve: “Fui na estação com o Pai e a Mãe, recepcionar o Ulisses Villar, devia ser 1948 ou 49 quando chegou de Porto Alegre, quando soltaram os presos comunistas. Era uma temeridade ter ido. Ele era o líder do Partido Comunista em Uruguaiana, Estava jurado de morte. Foi major dos provisórios que avançaram em 1930 e 1932. Mas nosso Pai e Mãe eram amigos, e estavam lá e me levou. Uma grande emoção tomou conta da estação quando a brigada correu para dar guarda ao Ulisses, pensavam que iriam matar ali. Eles foram amigos de pescaria muitos e muitos anos. Esse cara merecia uma biografia. Gaúcho, de gaúcho mesmo. Comunista, teórico. Um gozador, um sério, um amigaço de pescaria, um dos poucos que dava atenção ao pirralho que ousava ir junto. muito me ensinou de atirar as linhadas, e não enroscar. Estávamos no Arroio Garupá, perto do Cerro do Jarau, a noite, e o pai levava o Zenith a pilha ou bateria, não sei. E vi o sorriso disfarçado, o brilho no olhar iluminado pela fogueira pouca, depois da janta, os dois gozaram, foi um orgasmo mal disfarçado: Ouvimos que a Rússia tinha lançado o Sputnik. Gol pra eles. Foi uma comemoração silenciosa e cúmplice. Estavam vingados”. In: www.outubro.blogspot.com, acessado em 22/04/2005.

fronteira oeste, veterano das revoluções de 1893 e 1923, Francisco Cabeda Júnior, o Chico Cabeda, viria a engrossar as fileiras do recém criado Partido Comunista Brasileiro, em um fenômeno ainda pouco estudado pela historiografia nacional, a conversão dos maragatos, veteranos da revolução federalista, em comunistas, nos emergentes movimentos operários das primeiras décadas do século XX. Sua filha adotiva, Sônia Cabeda, lembra do pai como uma figura de extrema doação aos mais humildes, que viveu exclusivamente para a militância. Farmacêutico, costumava oferecer remédios gratuitamente para os necessitados, além de dinheiro e comida, sempre que podia. O resultado dessa conduta extremamente solidária foi a falência em seus negócios, ocasião em que foi auxiliado por Nery Medeiros, com certro auxilio financeiro e moradia. Chico Cabeda morreria em 1969, aos 72 anos, em Rivera

A figura do médico Alberto Benevenuto também vai se destacar como ativista dos direitos humanos entre o grupo de exilados em Rivera. Um pouco mais jovem do que seus companheiros, ainda não completara 40 anos quando chegou a Rivera com a esposa e dois filhos. Ali se estabeleceu na casa de Nery Medeiros uma relação de confiança e assistência médica ininterrupta às famílias. Dessa maneira, em julho de 1965 o doutor Benevenuto realizou na casa dos Medeiros o parto de Luis Alberto, filho de Nery e Zely. O menino recebeu o nome em homenagem ao médico. No mesmo ano, em setembro, doutor Benevenuto realizou o parto de Neuza Penalvo, quando a família Penalvo vivia na casa dos Cabeda, em frente a Praça Flores, na calle

Carlos Reyles. Adalgisa Machado lembra dos conselhos que o médico dava a seu pai

em favor de uma educação mais compreensiva com os filhos adolescentes.

O núcleo de exilados da avenida Brasil completava-se na casa vizinha ao velho hotel alugado por Nery Medeiros, onde funcionava uma oficina mecânica montada por Milton Pereira. Funcionário do alto escalão da Petrobrás chegou à fronteira depois de perseguido e torturado nos primeiros momentos do golpe. Assim como a maioria dos exilados que escolheram Rivera para se estabelecer, Milton tinha razões familiares. Sua esposa, Sueli Cruxem, era de família fronteiriça, com ramificações em ambos os lados da linha divisória. Ali, valendo-se do auxílio mútuo entre o grupo

exilado, Milton e um irmão, também perseguido, mantiveram uma frente de trabalho, para sobrevivência, dentro das possibilidades que a cidade oferecia.

O policial Oscar Fontoura Chaves e “Seu Valdemar”, ferroviário de Santa Maria, também passariam pela casa dos Machados. A palavra de ordem era a solidariedade, e para Nery era mesmo impossível negar ajuda a um companheiro necessitado. Nesse ambiente, formavam-se os grupos de homens, de um lado, absorvidos pelas discussões políticas, e suas famílias, que interagiam na criação em comum das crianças e as lidas de um novo cotidiano na fronteira. Nesse ambiente, a posição econômica relativamente estável de Nery Machado funcionava como um ponto de equilíbrio para o grupo. Conforme relembra Adalgisa,

Lá em casa tinham brigas homéricas de comunistas da China e comunistas da Rússia. Eles batiam boca e brigavam, e o pai ficava só apartando as brigas deles. O próprio major Ulisses evitava essas discussões e sempre dizia que quando era preso e indagado por sua linha política, costumava dizer que era da linha de pescar. (...) O pai tinha facilidade, pois era fazendeiro, e o campo dele era daqui, e os meus tios eram todos fazendeiros. E quem cuidava para ele era o pai da mãe. Mas se tinham que vender um gado iam lá, vendiam, e traziam o dinheiro para o pai. Muitas vezes os cunhados compravam gado do pai e nos pagavam. Então, fome nós não passamos. Mas teve gente que passou fome.224

A democracia ainda resistia no Uruguai de meados dos anos 60, o que tornou a vida do grupo exilado em Rivera um tanto mais aprazível nos primeiros anos. Um fato inusitado e que demonstra a boa relação do grupo com o poder público uruguaio aconteceu logo depois que Nery Medeiros se instalou em Rivera. Com uma frota envelhecida e sem condições para importar automóveis brasileiros, a polícia de Rivera se valia de duas camionetas que Nery disponibilizava gratuitamente para as diligências diárias. Em troca, promovia uma aproximação necessária para garantir simpatias ao grupo exilado e garantir com isso uma maior segurança naquele terreno próximo demais dos algozes da ditadura brasileira. Adalgisa de Néri relembra que ela e suas irmãs eram levadas diariamente até o Colégio Estadual, onde estudavam em Santana do Livramento, por policiais uruguaios, que passavam por sua casa, sempre dirigindo os automóveis de seu pai.

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A relação, no entanto, encontrava-se sujeita aos percalços comuns àquela troca de favores. Não poucas vezes as meninas irritaram-se com os policiais uruguaios, que insistiam em proferir galanteios para as professoras da escola.

Nery Medeiros, exílio e solidariedade em Rivera.