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3 AS MULHERES NÃO ALFABETIZADAS E AS VÁRIAS FORMAS DE

3.4 CONSTITUIÇÃO ÉTNICA E PRECONCEITO CONTRA AS MULHERES “DE COR”:

Falar sobre a historicidade das mulheres negras no Brasil nos reporta a um passado de acanhamento nacional, por termos vivenciado, em certos momentos da história, a escravidão como algo “normal”, como se a cor da pele estabelecesse padrões de vida, de classe social, de nível intelectual e até mesmo de sobrevivência. Esse preconceito ainda persiste nos tempos atuais, pois diariamente a mídia divulga casos de racismo e de injúria racial, havendo, como em outros aspectos de desrespeito à dignidade humana, a necessidade de criação de lei numa tentativa de coibir mais esse tipo de violência e discriminação em nosso meio. O tempo de sofrimento e de exploração trouxe marcas para nossa sociedade, por exemplo, a delimitação de espaços e ações por parte de quem escravizou, humilhou e massacrou milhares de pessoas, num tempo em que a “cor da pele” determinava quase tudo, inclusive a proibição do acesso à escolaridade, devido à condição de escravidão e pelo preconceito.

Ao dar início às aulas de alfabetização, encontrei uma filha de ex-escravos chamada Maria, que aos oitenta anos de idade buscou na escolarização uma forma de se sentir “gente”, como ela própria afirma ao trocar ideias com as colegas, tendo sempre “muita história para contar”, pelas suas vivências em todas as áreas da vida, pois ser mulher, negra, analfabeta, mãe, avó, bisavó, doméstica, pobre e filha de ex-escravos, confere-lhe um arsenal de saberes. Enfrentou inúmeros preconceitos, trazendo estigmas consigo por ter “sentido na pele” as marcas de um tempo extremamente cruel e delimitador, de costumes, de acessos e de sobrevivência.

Com a intenção de nos situarmos acerca da legislação vigente que ampara as pessoas que sofrem esse tipo de agressão, trazemos dados e fatos sobre a criação das leis e suas aplicabilidades. Em 195121, foi criada a Lei 1390/51 mais conhecida como Lei Afonso Arinos,

proposta por Afonso Arinos de Melo Franco. Essa lei proibia a discriminação racial no país, ou seja, a separação de raças diferentes. A Lei Afonso Arinos mostrou-se ineficiente por faltar rigorosidade em suas punições, mesmo em casos explícitos de discriminação racial em locais de emprego, escolas e serviços públicos. Mais tarde, em 1989, foi criada a Lei 7716/8922, mais conhecida como Lei Caó. Proposta pelo jornalista, ex-vereador e advogado Carlos Alberto Caó Oliveira dos Santos, determinava a igualdade racial e o crime de intolerância religiosa.

Um dos maiores triunfos do aprimoramento da lei contra o racismo foi sua pena. Crime de racismo é inafiançável, mas especifica a diferença entre atitudes que podem ser consideradas como racismo. O tema racismo ainda é complicado para muitas pessoas, principalmente quando se trata da Lei. Mesmo com implantação de legislação contra o racismo, existem aqueles que não sabem diferenciar determinadas atitudes como prática de crime de racismo ou não. Uma das maiores confusões que as pessoas podem cometer é confundir racismo e injúria racial, esta ocorre quando são ditas ou expressadas ofensas a determinados tipos de pessoas, tendo como exemplo chamar um negro de “macaco”. Esse exemplo já ocorreu em vários casos, especialmente, no futebol, em que jogadores foram ofendidos por essa palavra e alguns entraram com processo.

A noção de "preconceito de cor" é abordada por Fernandes (1965) como uma categoria inclusiva de pensamento. Ela foi construída para designar, estrutural, emocional e cognitivamente, todos os aspectos envolvidos pelo padrão assimétrico e tradicionalista de relação racial. Por isso, quando o negro e mulato falam de "preconceito de cor", eles não distinguem o "preconceito" propriamente dito da "discriminação". Ambos estão fundidos numa mesma representação conceitual. Esse procedimento induziu alguns especialistas, tanto brasileiros, quanto estrangeiros, a lamentáveis confusões interpretativas. Conforme Fernandes,

[...] a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar- se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e capitalista (1965, p. 56).

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Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97). Disponível em: < http://www.jusbrasil.com.br/>. Acesso em: 14 jan. 2016.

A partir disso, compreendemos que a exclusão do negro do cenário social é consequência direta do processo de abolição da escravidão, ou seja, sua inserção aconteceu de forma lenta com a ocupação dos setores mais subalternos da sociedade. A economia competitiva, como o símbolo da modernização da estrutura produtiva da sociedade brasileira, desenvolveu-se como resultado imediato da abolição da escravidão. Em outras palavras, o negro sofreu as consequências diretas de um processo marcado pelas desiguais condições de acesso às novas ocupações econômicas advindas da mercantilização da economia.

Assim sendo, isso acarretou a inserção desigual dos vários grupos raciais na economia competitiva, ressaltada por Fernandes (1965) como processo de racionalização econômica em curso, visando à constituição de um novo modelo de organização da vida econômica e social. Nesse decurso, a integração do negro foi retardada uma vez que o processo imigratório colocado em prática pelo governo nacional priorizou a utilização de braços europeus dentro de uma concepção, então em voga, de que os imigrantes brancos representavam o advento da civilização e da modernização da sociedade nacional. De acordo com Fernandes,

[...] o regime escravista não preparou o escravo (e, portanto, também não preparou o liberto) para agir plenamente como “trabalhador livre” ou como “empresário”. Ele preparou- o, onde o desenvolvimento econômico não deixou outra alternativa, para toda uma rede de ocupações e de serviços que eram essenciais mas não encontravam agentes brancos. Assim mesmo, onde estes agentes apareceram (como aconteceu em São Paulo e no extremo sul), em conseqüência da imigração, em plena escravidão os libertos foram gradualmente substituídos e eliminados pelo concorrente branco. ( 1965, p. 63).

Dessa forma, o negro foi empurrado para os setores mais subalternos no interior da sociedade, pois o trabalho livre não lhe propiciou as condições de inserção nos setores dinâmicos da economia competitiva. Por outro lado, os trabalhadores imigrantes tiveram a seu favor amplas possibilidades de ascensão social em função das condições sociais inerentes à economia de mercado nascente. A estrutura social fundada no período pós-abolição não absorveu a mão de obra negra em função de que o agente do trabalho escravo não contava com as condições sociais adequadas a esta nova realidade. Ou seja, o negro saindo de um modo de vida escravista encontrou todas as dificuldades de adaptação à estrutura social em construção. O processo de inserção, por consequência, teria que ser doloroso e excludente.

Com relação à situação da mulher negra no Brasil de hoje, Silva (1999) salienta que há um prolongamento da sua realidade vivida no período de escravidão e, ainda, com poucas mudanças, pois ela continua em último lugar na escala social e é aquela que mais carrega as desvantagens do sistema injusto e racista do país. Inúmeras pesquisas realizadas nos últimos

anos mostram que a mulher negra apresenta menor nível de escolaridade, trabalha mais, porém, com rendimento menor, e poucas conseguem romper as barreiras do preconceito e da discriminação racial e ascender socialmente.

A mulher negra ao longo de sua história foi a “espinha dorsal” de sua família, que muitas vezes constituiu-se dela mesma e dos filhos. Quando a mulher negra teve companheiro, especialmente na pós-abolição, significou alguém a mais para ser sustentado. O Brasil, que se favoreceu do trabalho escravo ao longo de mais de quatro séculos, colocou à margem o seu principal agente construtor, o negro, que passou a viver na miséria, sem trabalho, sem possibilidade de sobrevivência em condições dignas. Com o incentivo do governo brasileiro à imigração estrangeira e à tentativa de extirpar o negro da sociedade brasileira, houve maciça tentativa de embranquecer o Brasil. Silva (1999) afirma que o mais cruel de todos os males foi retirar da população negra a sua dignidade enquanto raça remetendo a questão da negritude aos porões da sociedade. O próprio negro, em alguns casos, não se reconhece, e uma das principais lutas do movimento negro e de estudiosos comprometidos com a defesa da dignidade humana é contribuir para o resgate da cidadania do negro.

A pobreza e a marginalidade a que é submetida a mulher negra reforçam o preconceito e a interiorização da condição de inferioridade, que em muitos casos inibe a reação e a luta contra a discriminação sofrida. O ingresso no mercado de trabalho do negro ainda quando criança e a submissão a salários baixíssimos reforçam o estigma da inferioridade em que muitos vivem. Contudo, não podemos deixar de considerar que esse horizonte não é absoluto e mesmo com toda a barbárie do racismo há uma parcela de mulheres negras que conseguiram vencer as adversidades e chegar à universidade, utilizando- a como ponte para atuação profissional.

Embora o contexto adverso, algumas mulheres negras vivem a experiência da mobilidade social processada em “ritmo lento”, pois além da origem escrava, ser negra no Brasil constitui um real empecilho na trajetória da busca da cidadania e da ascensão social. Isso é comprovado com os relatos de Maria, de oitenta anos, ao afirmar o quanto foi difícil conseguir um emprego melhor, ainda mais sem escolarização, pois a maioria das negras com as quais ela convivia trabalhava na informalidade, ou como empregadas domésticas, trabalho esse que em nenhum momento deve ser tido como inferior, por ser uma tarefa diária, imprescindível, extremamente importante.

Com relação às mulheres negras que conquistam melhores cargos no mercado de trabalho, Silva (1999) afirma que elas empregam uma força muito maior que outros setores da

sociedade, sendo que algumas provavelmente pagam um preço alto pela conquista, muitas vezes, abdicando do lazer, da realização da maternidade, do namoro ou casamento. Além da necessidade de comprovar a competência profissional, têm de lidar com o preconceito e a discriminação racial que lhes exigem maiores esforços para a conquista do ideal pretendido. A questão de gênero é, em si, um complicador, mas, quando somada à da raça, significa maiores dificuldades para os seus agentes.

Afirma Silva (1999), ainda, que à medida que a mulher negra ascende, aumentam as dificuldades especialmente devido à concorrência em serviços domésticos que não representam prestígio, consequentemente, as mulheres negras têm livre acesso e é nesse campo que se encontra o maior número delas. A população negra trabalha, geralmente, em posições menos qualificadas e recebe os mais baixos salários.

Portanto, a mulher negra, tem que dispor de muita determinação para superar as dificuldades que se impõem na busca da sua cidadania, sendo assim, poucas mulheres negras conseguem ascender socialmente. Contudo, é possível constatar que está ocorrendo um aumento do número de mulheres negras nas universidades nos últimos anos. Talvez a partir desse contexto se possa vislumbrar uma realidade menos opressora para os negros, especialmente para a mulher.

Contudo, cabe ressaltar a luta das mulheres negras pela superação do preconceito e discriminação racial no ingresso no mercado de trabalho. Algumas mulheres atribuem a “façanha” da conquista do emprego e do sucesso profissional a um espírito de luta e coragem, fruto de muito esforço pessoal, outras ainda, ao apoio de entidades do movimento negro. Na atualidade não se pode tratar a questão racial como elemento secundário, destacando apenas a problemática econômica. A posição social do negro não se baseia apenas na possibilidade de aquisição ou consumo de bens. Ainda há uma grande dificuldade da sociedade brasileira em assumir a questão racial como um problema que necessita ser enfrentado. Enquanto esse processo de enfrentamento não ocorrer, as desigualdades sociais baseadas na discriminação racial continuarão, com tendência ao acirramento, ainda mais quando se trata de igualdade de oportunidades em todos os aspectos da sociedade. A discriminação racial na vida das mulheres negras é constante; apesar disso, muitas constituíram estratégias próprias para superar as dificuldades decorrentes dessa problemática.

3.5 O PRECONCEITO CONTRA A IDADE: OS IDOSOS.

Definir a velhice parece uma tarefa bastante simples, porém, é um assunto amplamente complexo, que requer uma análise mais aprofundada e detalhada nas múltiplas dimensões: a biológica, a psicológica, a existencial, a cultural, a sociológica, a econômica, a política, entre outras, para chegarmos a uma conceituação que melhor expresse essa realidade (SAFONS, 2016). Fundamentalmente, a dificuldade primordial para categorizar a velhice consiste em não poder enxergá-la como unicamente um estado, mas um constante processo de permanente construção e reconstrução que leva a inúmeras subjetivações. Uma visão unilateral impossibilita, assim, construir uma categorização que valorize o velho em todas as dimensões e experiências acumuladas ao longo dos anos, com seu conteúdo em termos de vivência.

Paradoxalmente, o problema da velhice é novo. Do ponto de vista histórico-cultural, a velhice, tanto científica como socialmente falando, é o período etário do qual se dispõe de menos conhecimentos, que apenas recentemente vem se constituindo em objeto de estudos sistemáticos. Além disso, populações compostas por um grande número de pessoas idosas são um advento recente na evolução da sociedade. Várias são as indagações que surgem sobre o ser humano, ao longo de todo o processo de envelhecimento.

Para Simone de Beauvoir (1990), a velhice é como um fenômeno biológico com reflexos profundos na psique do homem, perceptíveis pelas atitudes típicas da idade não mais jovem nem adulta, da idade avançada. A autora mostra a sua compreensão da velhice como algo pouco preciso, nada comum, esquadrinhado dentro de parâmetros relacionais e funcionais, portanto carregada de subjetividade. A reconfiguração do ser envelhecente, diante dessas proposições, poderá ser analisada segundo o pensamento de Simone de Beauvoir (1990), que descarta a ideia de aposentadoria como tempo de início de lazer, pois é muito raro que o lazer permita o desabrochar de uma vocação até então sufocada.

A autora não despreza o direito ao lazer, mas não encontra neste a dinâmica determinante de uma velhice bem-sucedida ou a qualidade totalizadora do bem viver. A prática do lazer é um direito de todo cidadão, em qualquer idade, em situações diversas. Numa sociedade de massas, condicionadora por tantos aspectos do viver coletivo, as atividades de lazer devem proporcionar uma oportunidade de realização pessoal livre e não há como negar seu valor social e terapêutico, inúmeras vezes comprovados por pesquisas e estudos.