• Nenhum resultado encontrado

Os sentidos atribuídos ao processo de alfabetização, por mulheres oriundas de Palmeira das Missões-RS: o programa Brasil Alfabetizado, em Panambi-RS

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Os sentidos atribuídos ao processo de alfabetização, por mulheres oriundas de Palmeira das Missões-RS: o programa Brasil Alfabetizado, em Panambi-RS"

Copied!
90
0
0

Texto

(1)

NAIRA APARECIDA DE OLIVEIRA VIEIRA

OS SENTIDOS ATRIBUÍDOS AO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO, POR MULHERES ORIUNDAS DE PALMEIRA DAS MISSÕES-RS: O PROGRAMA BRASIL

ALFABETIZADO, EM PANAMBI-RS.

Ijuí/RS 2016

(2)

NAIRA APARECIDA DE OLIVEIRA VIEIRA

OS SENTIDOS ATRIBUÍDOS AO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO, POR MULHERES ORIUNDAS DE PALMEIRA DAS MISSÕES-RS: O PROGRAMA BRASIL

ALFABETIZADO, EM PANAMBI-RS

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí, como parte do processo de formação para obtenção do título de Mestre em Educação nas Ciências.

Orientadora: Professora Doutora Hedi Maria Luft

Ijuí/RS 2016

(3)

V657s Vieira, Naira Aparecida de Oliveira.

Os sentidos atribuídos ao processo de alfabetização, por mulheres oriundas de Palmeira das Missões - RS: o Programa Brasil Alfabetizado, em Panambi - RS / Naira Aparecida de Oliveira Vieira. – Ijuí, 2016.

89 f.: il.; 30 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí e Santa Rosa). Educação nas Ciências.

“Orientadora: Hedi Maria Luft”.

1. Mulheres. 2. Políticas públicas. 3. Alfabetização. 4. Cidadania. I. Luft, Hedi Maria. II. Título. III. Título: O Programa Brasil Alfabetizado, em Panambi - RS. CDU: 321-055.2 Catalogação na Publicação

Aline Morales dos Santos Theobald CRB10/1879

(4)

UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul Departamento de Educação

Mestrado em Educação nas Ciências

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação

OS SENTIDOS ATRIBUÍDOS AO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO, POR MULHERES ORIUNDAS DE PALMEIRA DAS MISSÕES-RS: O PROGRAMA BRASIL

ALFABETIZADO, EM PANAMBI-RS

Elaborada por

NAIRA APARECIDA DE OLIVEIRA VIEIRA

como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação

___________________________________________________________ Orientadora: Professora Doutora Hedi Maria Luft - UNIJUÍ

__________________________________________________________ Professor Doutor Walter Frantz - UNIJUÍ

_________________________________________________________ Professor Doutor Arnaldo Nogaro – URI

__________________________________________________________ Professora Doutora Fabiana Lasta Beck Pires – IFF-RS

(5)

DEDICATÓRIA

A Deus fonte suprema de amor, bondade e sabedoria.

À minha mãe Juracy de Oliveira Vieira, pelo amor incondicional, eterna mestra, companheira, minha fonte inspiradora e meu porto seguro.

A meu pai (in memoriam) Oscar Maciel Vieira, amor eterno amor e à toda família.

Às alunas alfabetizadas, que muito me ensinaram...

À orientadora Hedi Maria Luft com “H” de humildade, “D” de dedicada, “M” de maravilhosa e “L” de luz!

Às amigas inseparáveis e para toda a vida: Carini Ribeiro Hinnah e Cristiane Lourdes Hagat pela expressão máxima de incentivo, companheirismo e amizade eterna.

(6)

AGRADECIMENTOS

Ao Instituto Federal Farroupilha-Campus Panambi-RS, pela oportunidade à mim confiada, e ao desafio de “ensinar águias à seguir seus voos...”

Às eternas amigas do Instituto Federal Farroupilha – Campus Panambi-RS: Ana da Fontoura, Ana Lúcia Mohr, Fabiana Lasta Beck Pires, Rogéria Madaloz, Rosane Arendt, e Sylvia Messer, pelo incentivo, apoio, carinho e amizade..

À banca avaliadora, pessoas à quem admiro e tenho como fonte inspiradora para seguir em frente: Arnaldo Nogara, Fabiana Lasta Beck Pires, Hedi Maria Luft e Walter Frantz, pela sabedoria, competência, dedicação e amor à educação...

a Unijui, por receber-me mais uma vez de braços abertos e pela longa trajetória na defesa das causas sociais...

(7)

“Quem não sabe pra onde vai, não vai à lugar nenhum...!” Luis Marenco.

(8)

RESUMO

O objetivo desse estudo é compreender os sentidos atribuídos ao processo de alfabetização, por mulheres oriundas de Palmeira das Missões-RS: o Programa Brasil Alfabetizado, em Panambi-RS, as quais integraram o Programa Mulheres Mil1. Elas viram no Programa uma oportunidade de realizar o sonho da alfabetização, uma vez que, por inúmeros motivos, não frequentaram a escola em tempo regular. Especialmente, precisavam trabalhar na lavoura, no interior onde residiam, e a escolaridade não era incentivada na época, no lugar onde nasceram e cresceram, no município de Palmeira das Missões-RS. O êxodo rural provocou a migração para a cidade vizinha de Panambi-RS, em busca de emprego e renda, visando melhores condições de vida para suas famílias. Em suas trajetórias, elas enfrentaram o preconceito, não apenas pelo analfabetismo, mas por serem mulheres, pobres, idosas, algumas delas negras, o que faz aumentar as diferenças sociais de gênero e étnicas, que ainda são motivos de desigualdade e injustiça no País. Muito mais que uma análise sobre o processo de alfabetização vivenciado, a escrita questiona os problemas por elas enfrentados, sendo que viveram por longos anos uma condição de opressão e discriminação. Quanto à metodologia utilizada, é de cunho qualitativo, a partir das observações sistemáticas de três alunas, dentre as vinte matriculadas no curso, fazendo uso de seus Cadernos Diários, analisando os registros neles escritos, bem como suas narrativas durante as aulas, com as colegas de estudo. As três mulheres foram escolhidas em função de três critérios básicos: faixa etária (entre 60 e 80 anos); residirem no mesmo bairro; e serem todas naturais do município de Palmeira das Missões-RS. Além disso, a coleta de dados incluiu também os registros feitos no Diário Docente, forma pedagógica de acompanhamento da aprendizagem, que se tornou um Diário de Campo para a investigação. Isso por oferecer respostas aos questionamentos feitos há mais de trinta anos sobre a desigualdade gerada pelo analfabetismo no Município de Panambi-RS e suas consequências ao longo desses anos. Quanto à compreensão dos sentidos atribuídos ao processo de alfabetização pelas mulheres do Programa Brasil Alfabetizado, a descoberta está para além de uma simples assinatura de um nome, ou domínio do alfabeto, pois abarca tudo o que constitui o seu nome, a sua vida, a sua dignidade humana e o que isso representa para cidadãs merecedoras de respeito, de oportunidades e de melhores condições de vida. As mulheres sentem-se realizadas por conquistar, mesmo que tardiamente, um dos seus direitos básicos e pela abrangência do que isso representa, ratificando a cidadania como determinante para realização e constituição do ser humano. Para tanto, não bastam direitos constitucionais, é necessário que sejam respeitados e consolidados.

Palavras-chave: Mulheres. Políticas Públicas. Alfabetização. Cidadania.

1

Brasil Alfabetizado e Mulheres Mil são Programas criados pelo Governo Federal e foram ofertados no Instituto Federal Farroupilha Campus Panambi-RS.

(9)

ABSTRACT

The aim of this study is to understand the meanings attributed to the literacy process, women from Palmeira das Missões-RS: the Literate Brazil Program in Panambi-RS, which integrated the program Mulheres Mil.2 They turn in the Program a chance to realize the dream of the literacy, since, for innumerable reasons, they did not attend school in regular time. Especially, they needed to work in the farming, in the countryside where they inhabited, and the education was not stimulated at the time, in the place where they were born and they grow, in the city of Palmeira das Missões-RS. The rural exodus caused the migration to the neighboring city of Panambi-RS, searching for job and income, aiming better conditions of life for their families. In their trajectories, they faced prejudice, not only illiteracy but because they are women, poor, elderly, some of them black, which makes increasing social differences, of gender and ethnic, which are still reasons of inequality and injustice in the country. Much more than an analysis of the experienced literacy process, the study questions the problems they faced, as they lived for many years a condition of oppression and discrimination. The methodology used is qualitative approach, from the systematic observations of three pupils, amongst the twenty registered in the course, making use of their Daily Notebooks, analyzing the registers in written them, as well as their narratives during the lessons, with the colleagues of study. The three women had been chosen in function of three basic criteria: age group (between 60 and 80 years); reside in the same neighborhood; and being all natural from the city of Palmeira das Missões. In addition, data collection also included the records made in Diary Teacher, pedagogical way of monitoring learning, which has become a Field Diary for research. This to offer responses to inquiries for more than thirty years about inequality generated by illiteracy in the city of Panambi-RS and its consequences over the years. Concerning to understand the meanings attributed to the literacy process by women of the program Brazil Alfabetizado, the discovery is beyond a simple signature of a name, or alphabet domain, because it covers all that is their name, their life, their human dignity and what it represents for the citizens deserving of respect, opportunities and better living conditions. Women feel held to find, even if lately, one of their basic rights and the scope of it is, ratifying citizenship as crucial to realization and constitution of the human being. Therefore, constitutional rights are not enough; they must be respected and consolidated.

Word-key: Women. Public Policies. Literacy. Citizenship.

2Brazil Alfabetizado and Mulheres Mil are Programas created by the Federal Government and were offered at the

(10)

SUMÁRIO

APROXIMAÇÕES INICIAIS ...10

1 A CIDADANIA, AS MULHERES E A ALFABETIZAÇÃO... 16

1.1 O ALFABETISMO E AS MULHERES ... 20

1.2 A CIDADANIA E AS MULHERES ... 23

2 A EXPERIÊNCIA DE ALFABETIZADORA ... 30

2.1 O CAMINHO METODOLÓGICO PERCORRIDO ... 37

2.2 A ESCUTA SENSÍVEL: A ARTE DE SABER OUVIR... 43

2.3 A ESCRITA SENSÍVEL: A ARTE EM FORMA DE REGISTROS. ... 44

3 AS MULHERES NÃO ALFABETIZADAS E AS VÁRIAS FORMAS DE PRECONCEITO ... 47

3.1 O PRECONCEITO CONTRA AS PESSOAS DE BAIXA RENDA ... 48

3.2 O PRECONCEITO CONTRA A PESSOA ANALFABETA: AS MARCAS EXISTENCIAIS. ... 50

3.3 GÊNERO: ABORDAGEM SOBRE O PRECONCEITO. ... 52

3.4 CONSTITUIÇÃO ÉTNICA E PRECONCEITO CONTRA AS MULHERES “DE COR”: MUITO MAIS QUE UMA QUESTÃO DE “PELE”. ... 55

3.5 O PRECONCEITO CONTRA A IDADE: OS IDOSOS. ... 60

4 ANALFABETISMO: MARCAS IDENTITÁRIAS DE QUEM O VIVENCIOU. ... 65

4.1ANALFABETISMOS: ALFABETIZAR LETRANDO OU LETRAR ALFABETIZANDO? ... 68

4.2 O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃo E AS MUDANÇAS ... 76

5 ALFABETISMO, MULHERES E CIDADANIA: ORIGENS E CONCEITOS. ... 80

5.1 O ALFABETISMO E AS MULHERES ... 81

5.2 A CIDADANIA E AS MULHERES ... 83

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 85

(11)

Para aproximar o leitor do presente estudo, abordamos os sentidos atribuídos ao processo de alfabetização, por mulheres oriundas de Palmeira das Missões-RS: o Programa Brasil Alfabetizado, em Panambi-RS. Mulheres estas, participantes do Programa Mulheres Mil. Este Programa tem como objetivo oferecer uma política social de inclusão para mulheres em situação de vulnerabilidade social a fim de oportunizar acesso à educação profissional, ao emprego e a renda, considerando que os projetos locais são ordenados de acordo com as necessidades da comunidade e segundo a vocação econômica regional. O programa Mulheres Mil faz parte das ações do programa Brasil Sem Miséria, articulado com a meta de erradicação da pobreza extrema, metas estabelecidas pelo governo federal3.

Para situar geograficamente o local onde o estudo foi realizado, destacamos o mapa do Rio Grande do Sul (Figura 1), onde se situa Panambi, no Planalto rio-grandense, região Noroeste do Estado. Os limítrofes são Condor e Ajuricaba ao norte, Santa Bárbara do Sul ao leste, Pejuçara ao sul e Bozano a oeste.

Figura 1: Mapa do Rio Grande do Sul.

Fonte: IBGE, 2016.

3

Instituído pela Portaria do MEC nº 1.015, do dia 21 julho de 2011, publicada no Diário Oficial da União. Implantado no Instituto Federal Farroupilha- Campus Panambi-RS, em 2012, com a participação de cem (100) mulheres nos Cursos de Qualificação em Panificação e Fabricação de Materiais de Limpeza.

(12)

A povoação, de origem portuguesa teve início a partir de 1820 e a colonização, de origem alemã, iniciou com a fundação da Colônia chamada Neu-Württemberg. Em 1938 a colônia foi elevada à categoria de Vila, a partir de então ainda houve mais três mudanças de nome: Pindorama (1938), Tabapirã (1944), e, finalmente, Panambi, a partir de 29 de dezembro de 1944, que permanece até os dias atuais.

O município, ao se estabelecer com uma estrutura socioeconômica desenvolvida, em 1949 iniciou o processo de emancipação, sendo que com vários conflitos e discordâncias, realizaram-se dois plebiscitos, no período de 1949 e 1953. Então, no dia 15 de dezembro de 1954, foi decretada a emancipação de Panambi e marcada a data para a primeira eleição para prefeito e para vereadores. Sua instalação oficial ocorreu em 28 de fevereiro de 1955.

Panambi possui cerca de 42 mil habitantes, apresenta clima subtropical, está distante 380 Km da capital – Porto Alegre. Conhecida como a “Cidade das Máquinas”, por ter inúmeras indústrias no polo metalmecânico, já obteve o 3° lugar no ranking estadual com esse título, mas vem perdendo para outras cidades com mais investimentos na área da metalurgia.

Apresentada a contextualização histórica do município, enfatizo a sua importância em minha trajetória profissional, pessoal e social, destacando que desde a infância conheci muitas pessoas que vinham de outras cidades em busca de trabalho. Esse contexto é a marca do que aconteceu com as famílias das mulheres participantes da pesquisa, as quais vieram da cidade vizinha de Palmeira das Missões-RS, a procura de emprego e renda. Importa destacar o quanto o trabalho está ligado ao progresso desta cidade. Panambi é conhecida como “Cidade das Máquinas”, o que influencia a estabelecer uma ligação com empregabilidade e melhores condições de vida para quem nela reside. Aliás, essa compreensão se estende para quem mora próximo dela, pois das cidades vizinhas, como Condor, Pejuçara, Cruz Alta e Santa Bárbara do Sul, existe transporte coletivo gratuito, disponibilizado pelas prefeituras para que as pessoas possam trabalhar em Panambi e retornar diariamente.

Assim, Panambi faz parte da trajetória de vida de muitas pessoas que conseguiram garantir trabalho, em função de se deslocarem para a cidade. Por outro lado, em minha história profissional merece destaque o trabalho que realizei na condição de alfabetizadora do Programa Brasil Alfabetizado, o qual foi marcado pelas vivências e aprendizagens com as mulheres que, ainda analfabetas, conheci no Programa Mulheres Mil.

Em relação a minha experiência de vida pessoal é salutar historiar que faço parte de uma família de sete filhos e sou a filha caçula de um casal alfabetizado. A mãe professora e o pai comerciante. Sou natural de Panambi-RS e cresci no interior do município. Da minha família, sou a única com Curso Superior, com formação em Direito. Os meus seis irmãos

(13)

estudaram até a 5ª série (hoje, denominado de 5º ano, integrando os Anos Iniciais do Ensino Fundamental). Na época era essa formação que a escola rural oferecia, isso na década de 70, do século XX. Essa era a escolaridade que a maioria almejava concluir. Quase todos desistiam da escola facilmente e, por inúmeros fatores, dentre eles os afazeres rurais e domésticos e a falta de transporte escolar4.

Muitas marcas me constituíram como pessoa, ao crescer na comunidade rural em que residia. Marcas estas que se referem ao fato de viver uma vida simples, cercada pela natureza, e ao fato de conviver com muitas pessoas analfabetas. Do balcão da “casa de comércio”, ou “bolicho”, como popularmente era conhecido, de meu pai, eu via várias pessoas analfabetas adquirindo mercadorias. Quando não tinham condições de pagamento à vista, era registrado no caderno de débitos, e o que acontecia era algo que me impressionava, pois não assinavam seus nomes e sim colocavam suas impressões digitais como assinatura. Dessa forma, a pessoa era identificada. Isso me chamava à atenção pelas grandes desigualdades existentes.

O número de moradores da zona rural, na época era bem maior do que na atualidade, e as dificuldades faziam parte do cotidiano, na medida em que, as atividades do campo exigiam a presença de muitos homens e mulheres para dar conta do trabalho. Trabalho este que fazia parte da subsistência humana, como preparar a terra para o plantio, o que dependia de condições financeiras para operacionalizar uma safra produtiva. Havia, também, a necessidade da força dos animais, para arar a terra e prepará-la para a semeadura. A ajuda de todos da família era necessária, porque era a “mão de obra barata”, na luta pela sobrevivência. Importa salientar que, nesse contexto, as mulheres tinham uma dupla jornada de trabalho, pois cuidavam da casa (filhos) e auxiliavam o marido na lavoura. Questionamos, então, por que a mulher deve auxiliar ao marido e não o marido auxiliar a mulher. Ou, ainda, por que não trabalhar juntos? O dever de auxiliar pertence apenas à mulher? O machismo arraigado marcando presença, delimitando espaços, tarefas e estabelecendo padrões.

No período a que nos referimos, entretanto, entre as lidas diárias, as mulheres cultivavam a horta e cuidavam da criação de animais; além disso, a grande maioria costurava as roupas dos familiares, pois os recursos eram escassos. Nesse contexto qual seria o tempo e

4

A questão do abandono escolar motivada pela dificuldade de acesso, ou seja, pela distância entre a casa dos alunos da zona rural e as escolas é reconhecida pelo governo federal que, desde 1994, desenvolve políticas de assistência financeira a Estados e Municípios, voltadas ao transporte escolar. A política do transporte escolar foi instituída no Brasil, visando a garantir condições de acesso dos estudantes à escola, mediante a implantação de três programas, no âmbito do Ministério da Educação (MEC): o Programa Nacional de Transporte Escolar (PNTE), o Programa Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar (PNATE) e o Programa Caminho da Escola. (MOURA; CRUZ, 2014).

(14)

o lugar de um processo de alfabetização? Não havia espaço para a alfabetização, em função do tempo, por não ser necessário, pela distância geográfica da escola e pela priorização do trabalho, como tarefa fundamental da vida na agricultura.

Dentro dessa caracterização da inexistência da necessidade da escolarização da mulher que me constituo, portanto, mas com a qual não compactuo, pois apesar da desativação das atividades da escola rural, busquei através do Ensino Supletivo, criado pela Lei 5692/715, artigo 27 e capítulo IV, respectivamente, concluir o Ensino Fundamental. Mais tarde frequentei o 2º Grau com Habilitação Magistério/ Séries Iniciais, curso que, com a Lei 9394/96 (BRASIL, 2016) passa a ser denominado como Ensino Médio, modalidade Curso Normal. Em 2000, iniciei o curso de Direito6, concluindo-o em 2005, passando a importar-me, comprometer-me e envolver-importar-me, ainda mais, com os direitos da mulher. Ao analisar as desigualdades persistentes entre homens e mulheres no que se refere à escolarização, renda, gênero, entre outros, percebi que, mesmo que garantidos pela Constituição da República Federativa do Brasil, continuam sendo ignorados em muitos espaços da sociedade brasileira.

O fato de ser bolsista do Programa de Pós Graduação em Docência Técnica e Tecnológica no Instituto Federal Farroupilha – Campus Panambi – RS, despertou o interesse pela educação, ao trabalhar voluntariamente, como docente, a disciplina de Direitos da Mulher com um grupo de cem mulheres matriculadas no Programa Mulheres Mil, do Governo Federal, dentro do Programa Brasil Sem Miséria7, articulado com a meta de erradicação da pobreza extrema.

5A Lei nº 5692/71, que fixou as diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus, foi revogada expressamente pela

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996). Elaborada sob a égide da Constituição Federal anterior, a Lei nº 5692, segundo a história, ficou conhecida como a lei de reforma do 1º e 2º grau. Não contou com a participação popular e, por isso, não foi submetida a grandes discussões e embates. As principais inovações foram: obrigatoriedade do primeiro grau, com oito anos de duração, gratuito e voltado para a educação geral; criação do segundo grau, voltado à profissionalização; ensino supletivo para atender jovens e adultos que não tivessem concluído ou frequentado o curso na idade própria. (BRASIL, 2016).

6

Cursei uma Pós em Direito Ambiental e outra em Docência Técnica e Tecnológica. Ao cursar esta, desenvolvi o interesse pela Docência, decidindo escrever um Projeto de Mestrado.

7 Em 2 de junho de 2011, o Governo Federal lançou, por meio do Decreto nº 7.492, o Plano Brasil Sem Miséria

(PBSM) com o objetivo ambicioso de superar a extrema pobreza até o final de 2014. Com essa iniciativa, o Governo Federal reforçou o compromisso de incentivar o crescimento com distribuição de renda, reduzindo desigualdades e promovendo inclusão social. No âmbito do PBSM, as iniciativas de inclusão produtiva urbana vão reunir ações de estímulo à geração de ocupação e renda via empreendedorismo individual, de economia solidária, de oferta de orientação profissional e de cursos de qualificação profissional, bem como a intermediação de mão-de-obra para atender as demandas nas áreas públicas e privadas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/>. Acesso em: 12 abr. 2014.

(15)

Nesse ano, 2013, fui desafiada a participar dos trabalhos vinculados ao Programa Mulheres Mil, oferecido pelo Instituto Federal Farroupilha – Campus Panambi-RS. Considerando que minha trajetória foi marcada pela busca da emancipação, especialmente, das mulheres e, comprometida com a luta dos movimentos de escolarização de todos, aceitei a provocação. Segundo Hurtado (1992), a dimensão política da educação não busca apenas conhecer ou contemplar a realidade a partir de fora, “mas pretende decifrar de dentro do movimento histórico o sentido mesmo da história, intervindo ativa e conscientemente em sua transformação”, pois isso significa responder coerentemente aos apelos político-educacionais do momento. Porque constatamos que das 100 mulheres do Programa, 20% não sabiam nem ler e nem escrever, surgiu a necessidade de construir um processo de alfabetização. Dessa forma, foi firmada uma parceria entre a Prefeitura Municipal de Panambi - RS, que organizou a seleção para contratação de professor alfabetizador, e o referido Instituto, o qual cedeu o espaço físico para a realização das aulas. Ao ser selecionada, assumi a vaga de professora alfabetizadora, deixando de realizar o trabalho voluntário e obtendo a remuneração proveniente do Governo Federal, através do Programa Brasil Alfabetizado.8

A adesão ao processo de alfabetização e o interesse das mulheres em frequentar as aulas, de agosto até dezembro de 2013 foi algo extraordinário. Foi um período em que realizei os registros em meu Diário de Campo através das observações sistemáticas em sala de aula, ouvindo suas narrativas de histórias de vida, buscando compreender os sentidos e as experiências que tiveram em suas trajetórias, partindo das seguintes questões de pesquisa: Quais os sentidos atribuídos pelas mulheres do Programa Brasil Alfabetizado aos seus processos de alfabetismos? Quais as contribuições do processo de alfabetização em suas vidas?

Há uma extraordinária diferença em saber ler e escrever, portanto, o alfabetismo aqui é entendido como a possibilidade de para além de aprender a ler e escrever, constituir-se como sujeito, produção da alfabetização que se consolida nas trocas realizadas entre o aluno e

8 O MEC realiza, desde 2003, o Programa Brasil Alfabetizado (PBA), voltado para a alfabetização de jovens,

adultos e idosos. O programa é uma porta de acesso à cidadania e para despertar do interesse pela elevação da escolaridade. O Brasil Alfabetizado é desenvolvido em todo o território nacional, com o atendimento prioritário a municípios que apresentam alta taxa de analfabetismo, sendo que 90% destes localizam-se na região Nordeste. Esses municípios recebem apoio técnico na implementação das ações do programa, visando garantir a continuidade dos estudos aos alfabetizandos. Podem aderir ao Programa por meio das resoluções específicas publicadas no Diário Oficial da União, Estados, Municípios e o Distrito Federal. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/> Acesso em: 08 mai. 2014.

(16)

a língua escrita, mediadas pelas intervenções docentes e pelo grupo. Nesse processo, o coletivo e o individual relacionam-se, desencadeiam a aprendizagem e constituem um espaço pedagógico no qual a homogeneidade e a uniformidade (próprias das práticas tradicionais) são substituídas pela heterogeneidade e pela diversidade. Assim, os ritmos individuais do aprender são organizados no cotidiano coletivo (MOLL, 2005). O acesso ao processo de alfabetização é, na verdade, uma oportunidade de superar inúmeros limites impostos pelo projeto da sociedade atual.

(17)

Quem disse Maria, que você não podia saber ler e escrever? Quem foi que lhe fez crescer e sofrer, por não aprender, o nome assinar? Quem maltratou e até violou seus direitos pessoais, de ir e de vir, com cidadania, com democracia em nosso País? Quem disse Maria que você não merecia ter direitos iguais? O poder que maltrata, exclui e que mata sonhos e ideais! Digo-lhe Maria, Bendita Maria, que é poderosa e gloriosa, por lutar e crescer, viver e vencer, pois mesmo na velhice, veio, sorriu e nos disse: que é possível ser! Ser mulher com dignidade, justiça e igualdade pra quem quiser ver.9

Ao pensar sobre as “Marias”, designação dada pelo poema às mulheres com quem trabalhei, ressalto as marcas que elas imprimiram na sociedade durante um longo tempo de suas vidas. A questão norteadora do estudo nasce deste contexto e do fato de ver a sua realidade, de desejar compreender melhor por que um direito fundamental não lhes foi possível, ou seja, o processo de alfabetização em tempo regular. A cidadania pressupõe que todos têm esse direito garantido, porém, não é o que acontece, pois as mulheres que integram este estudo passaram o maior tempo da vida analfabetas, ainda que no mundo da cultura letrada.

“Marias” que lutaram cotidianamente, desde a infância difícil, no interior do município de Palmeira das Missões-RS, e mais tarde ao chegar a Panambi-RS, com o deslocamento justificado em função da busca por melhores condições de vida. “Marias” que tiveram filhos e já possuem netos e bisnetos, que felizmente têm acesso à escolarização. Porém, em um tempo não tão distante elas não tiveram acesso a isso, devido à falta de oportunidades. A falta se sustentava em dificuldades enfrentadas por serem mulheres, pobres e negras. Mulheres criadas para procriar, cuidar do lar, da família e para trabalhar, portanto, distantes da cidadania, sendo desrespeitadas, desvalorizadas e alienadas. Há que se considerar tratar-se de uma alienação planejada.

A cidadania, confrome Carvalho (2003), é o respeito dos direitos e o exercício dos deveres civis, políticos e sociais estabelecidos na Constituição de um país. A cidadania também pode ser entendida como a condição do cidadão, indivíduo que vive de acordo com um conjunto de estatutos pertencentes a uma comunidade política e socialmente articulada. Isso implica que os direitos e deveres estejam interligados, pois o cumprimento dos deveres, especialmente, dos que governam, favorece que o direito a uma sociedade justa

9 Poema por mim elaborado, em momento de análise da realidade vivenciada pelas mulheres participantes do

(18)

se estabeleça. Exercer a cidadania é ter consciência dos direitos, observar e cumprir com os deveres e obrigações legais, ainda que o conceito de cidadania esteja, em grande parte, relacionado com o país onde a pessoa exerce os seus direitos e deveres.

Assim, a cidadania brasileira está relacionada com o indivíduo vinculado aos direitos e aos deveres prescritos na Constituição Federal de 1988, em seu Art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL, 2013, p. 8).

Muitos desses direitos foram negados às mulheres do Programa Mulheres Mil, pois não tiveram acesso à escolarização, à moradia, ao saneamento básico, à saúde, ao transporte, entre outros. No caso, há um comprometimento da dignidade humana, pois já são idosas e continuam lutando por direitos. Direitos estes, que continuam sendo pauta de grandes discussões governamentais, principalmente, em épocas de eleições.

Sendo assim, partimos dos seguintes questionamentos: Existe uma cidadania plena para quem não tem seus direitos respeitados? Se partirmos do pressuposto de que para sermos cidadãos precisamos ter os direitos básicos garantidos, o que fazer quando eles não são devidamente respeitados?

Encontramos a origem do conceito de cidadania no Brasil, segundo Carvalho (2011), no esforço de construção da democracia no Brasil, que ganhou ímpeto após o fim da Ditadura Militar, em 198510. Uma das marcas desse esforço é a voga que assumiu a palavra cidadania, sendo que políticos, jornalistas, intelectuais, líderes sindicais, dirigentes de associações, simples cidadãos, todos a adotaram. O termo cidadania passou a ser usual, mais ainda, substituiu o próprio povo na retórica política. Não dizemos "o povo quer isto ou aquilo", dizemos "a cidadania quer". Cidadania virou gente e, no auge do entusiasmo cívico, a Constituição Federal de 1988 foi denominada de Constituição Cidadã, pois os fundamentos reforçavam a cidadania plena:

10 Na perspectiva mundial, Carvalho (2003) destaca que a cidadania desenvolveu-se na Inglaterra com muita

lentidão. Primeiro vieram os direitos civis, no século XVIII, depois, no século XIX, surgiram os direitos políticos. Finalmente, os direitos sociais foram conquistados no século XX. Segundo ele, não se trata de sequência apenas cronológica; ela é também lógica. Foi com base no exercício dos direitos civis, nas liberdades civis, que os ingleses reivindicaram o direito de votar, de participar do governo de seu país. A participação permitiu a eleição de operários e a criação do Partido Trabalhista, que foram os responsáveis pela introdução dos direitos sociais.

(19)

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição (BRASIL, 2013, p. 4).

Ao conceituar os direitos elencados, Carvalho (2011) afirma que direitos civis são os fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a Lei. Eles se desdobram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de se organizar, de ter respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondência, de não ser preso a não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de não ser condenado sem processo legal regular. São direitos fundamentais, cuja garantia se baseia na existência de uma justiça independente, eficiente, barata e acessível a todos. São eles que garantem as relações civilizadas entre as pessoas e a própria existência da sociedade civil surgida com o desenvolvimento do capitalismo. Sua pedra de toque é a liberdade individual.

No contexto dos direitos fundamentais, como o próprio termo justifica, pela sua amplitude e complexidade, há muitas interpretações possíveis. Conforme Carvalho (2011), havia ingenuidade no entusiasmo quanto à aplicabilidade dos direitos, pela crença de que a democratização das instituições traz rapidamente a prosperidade nacional. Porém, o fato de termos reconquistado o direito de eleger através do voto secreto prefeitos, governadores e presidente da República viabiliza a construção de liberdade, de participação, de segurança, de desenvolvimento, de emprego e de justiça social. A manifestação do pensamento é livre, a ação política e sindical é livre. A participação também. O direito ao voto nunca foi tão difundido. Mas há áreas que ainda não avançaram o suficiente em termos de garantia dos direitos.

Pelo contrário, muitos anos se passaram desde o fim da ditadura, entretanto, problemas centrais da sociedade, como a violência urbana, o desemprego, o analfabetismo, a má qualidade da educação, a oferta inadequada dos serviços de saúde e saneamento e as grandes desigualdades sociais e econômicas ou continuam sem solução ou se agravam; e, quando melhoram, é em ritmo muito lento. Em consequência, os próprios mecanismos e agentes do sistema democrático, como as eleições, os partidos, o Congresso e os políticos desvirtuam-se e desgastam-se, perdendo a confiança dos cidadãos. Neste contexto sociopolítico e econômico, muitos dos direitos fundamentais permanecem no papel, o que suscita cidadãos incompletos, ou seja, homens e mulheres que não têm acesso e não se beneficiam dos direitos, seriam os denominados por Carvalho (2003) de não-cidadãos.

(20)

Para Carvalho (2003), o cidadão pleno é aquele que é titular dos três direitos, que são: civis, sociais e políticos. Cidadãos incompletos são os que possuem apenas alguns dos direitos. Os que não se beneficiassem de nenhum dos direitos seriam não-cidadãos. A cidadania mostra-se, dessa forma, como consequência das intervenções humanas conscientes na ordem social e política. Assim, é necessária a aquisição da consciência política pelos cidadãos, como forma de evolução da cidadania. E, em se tratando de cidadãos incompletos ou não-cidadãos ressaltamos a realidade das mulheres analfabetas que não tiveram acesso à escolaridade na idade regular. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9394/96, em seu artigo 37º § 1º rege que,

os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames (BRASIL, 2016, p. 5).

Assim, a Lei garante o acesso e a busca pela escolarização fora de faixa etária escolar regular, no entanto, percebemos que nas configurações sociais hoje existentes há muitos brasileiros sem o processo de alfabetização viabilizado. Por causa dessa situação de injustiça e de desigualdades sociais que Freire (1997) destaca a existência dos esfarrapados, que, segundo ele, são o confronto viável de outro mundo, de uma realidade social e cultural construída sobre princípios de uma humanidade regida pela solidariedade e pelo diálogo. Ele considera que somente os oprimidos e a força da luta coletiva podem induzir a humanidade a reassumir e construir o processo de humanização, refreada pela dominação da sociedade atual. É na reconstrução da história de vida e das vivências como oprimidos e com os oprimidos, que se encontram as raízes que sustentam concepções teóricas e metodológicas outras, pois segundo Freire (1997, p. 124), “os esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim, descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam” uma luta que engendra igualdade de condições e possibilidades de acesso ao que foi e, ainda é negado. O que foi negado às mulheres é o acesso a sua alfabetização.

O conceito de alfabetização para Freire (1991) tem um significado mais abrangente, na medida em que vai além do domínio do código escrito, pois enquanto prática discursiva, “possibilita uma leitura crítica da realidade, constitui-se como um importante instrumento de resgate da cidadania e reforça o engajamento do cidadão nos movimentos sociais que lutam pela melhoria da qualidade de vida e pela transformação social” (FREIRE, 1991, p. 68). Frequentemente, encontramos concepções e definições extremamente preconceituosas em relação ao analfabetismo. Freire (1997) salienta que o analfabetismo nem é uma “chaga”, nem

(21)

uma “erva daninha” a ser erradicada, mas uma das expressões concretas de uma realidade social injusta. Isso ainda não está superado, como encontramos no Plano Nacional de Educação 2014-2024, onde, na meta de número 9, se pretende elevar a taxa de alfabetização da população com 15 (quinze) anos ou mais para 93,5% (noventa e três inteiros e cinco décimos por cento) até 2015 e, até o final da vigência deste pne, erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% (cinquenta por cento) a taxa de analfabetismo funcional (BRASIL, 2014). O presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)11, durante a divulgação de um relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) sobre educação no mundo, afirmou que o Brasil tem "dificuldade" para alcançar a meta 9, referente à superação do analfabetismo absoluto e à redução em 50% da taxa de analfabetismo funcional, porque há analfabetos que não almejam escolarização e o analfabetismo funcional é consequência de processos educacionais não adequados. Dessa forma, há necessidade de mais formação para os professores e investimento efetivo na qualificação das políticas públicas educacionais para aprimorar os processos de aprendizagem. Ora, esses avanços são geralmente lentos e exigem muita paciência para se efetivarem. Portanto, há no campo da instituição das políticas educacionais ainda muito por realizar; há desafios que se assumidos hoje nos remetem a longos anos de perseverança para viabilizar a concretização efetiva.

1.1 O ALFABETISMO E AS MULHERES

O alfabetismo como acesso ao mundo letrado sempre foi realidade distante das mulheres do Programa Brasil Alfabetizado, pelo fato de não terem acessado à escolarização em “tempo regular”, e essa realidade excludente deixou inúmeras marcas. Aquelas que ingressaram no Programa relataram situações que merecem análise, pois tratam de contextos sociais abordados por elas durante as aulas, no decorrer do processo de alfabetização.

No Brasil, há uma preocupação com os índices de analfabetismo, exemplo disso, são os programas existentes, mas também com o "alfabetismo" que remete ao uso da escrita e da leitura nas diferentes situações dos cotidianos da vida em sociedade. Para Soares:

(22)

À medida que o analfabetismo vai sendo superado, que um número cada vez maior de pessoas aprende a ler e a escrever, e à medida que, concomitantemente, a sociedade vai se tornando cada vez mais centrada na escrita (cada vez mais grafocêntrica), um novo fenômeno se evidencia; não basta aprender a ler e escrever. As pessoas se alfabetizam, aprendem a ler e a escrever, mas não necessariamente incorporam a prática da leitura e da escrita, não necessariamente adquirem competência para usar a leitura e a escrita, para envolver-se com práticas sociais de escrita (2003, p. 45-46).

Essa realidade fica evidenciada, pois no trabalho como alfabetizadora percebemos a realidade da exclusão escolar evidenciada, porém, em processo de transformação, pois não saber ler e escrever impede a igualdade de direitos, principalmente o acesso aos direitos sociais, como forma de inserção na sociedade em que vivemos. Muitas das mulheres, alunas do Programa, foram por longos anos excluídas dos processos de uso da escrita, nas diferentes situações do cotidiano da vida, ou seja, conviveram e vivenciaram situações-limites12, pois a falta do domínio da escrita prejudicou suas trajetórias, impedindo o acesso a direitos constitucionais.

Com relação à amplitude dos direitos, Carvalho (2011) enfatiza que é possível haver direitos civis sem direitos políticos. Estes se referem à participação do cidadão no governo da sociedade, seu exercício é limitado à parcela da população e consistem na capacidade de fazer demonstrações políticas, de organizar partidos, de votar e de ser votado. Em geral, quando se fala de direitos políticos, é do direito do voto que se está falando. Mesmo que possam existir direitos civis sem direitos políticos, o contrário não é viável. Sem direitos civis, sobretudo a liberdade de opinião e organização, os direitos políticos, principalmente o voto, podem existir formalmente, mas ficam esvaziados de conteúdo e servem antes para justificar governos do que para representar cidadãos. Os direitos políticos têm como instituição principal os partidos e um parlamento livre e representativo. São eles que conferem legitimidade à organização política da sociedade. Sua essência é a ideia de autogoverno. O mesmo autor menciona, ainda, a existência dos direitos sociais, que garantem a participação na riqueza coletiva, já os direitos civis favorecem a vida em sociedade, e os direitos políticos, a participação no governo da sociedade. A garantia de sua vigência depende, em grande parte, da existência de uma eficiente máquina administrativa do Poder Executivo.

Portanto, os direitos sociais podem existir sem os direitos civis e certamente sem os direitos políticos; podem mesmo ser usados em substituição aos direitos políticos. Mas, na

12

Segundo Freire (1974), as mulheres e os homens encontram, em suas vidas pessoal e social, obstáculos, barreiras que precisam ser superadas. A essas barreiras ele chama de "situações-limites".

(23)

ausência de direitos civis e políticos, seu conteúdo e alcance tendem a ser arbitrários. Os direitos sociais permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir o excesso de desigualdades produzidas pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos. A ideia central em que se baseiam é a da justiça social.

Há, no entanto, uma exceção na sequência de direitos, a educação popular, definida como direito social, mas que tem sido, historicamente, um pré-requisito para a expansão dos outros direitos, como direito à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei. Significa, em resumo, ter direitos civis. É também participar do destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo.

Com relação aos sujeitos desta pesquisa, não foram privadas apenas do direito à educação, mas também dos outros direitos sociais mencionados. Porém, apesar das condições desumanas e cheias de dificuldades, conseguiram fazer dos trabalhos artesanais um meio de renda e integração, sentindo-se pertencentes ao grupo de cidadãos que ficaram à margem do caminho, mas unindo forças para continuar lutando por igualdade de direitos.

Ao abordar o conceito e a prática da cidadania, Pinsky (2003) defende que ele vem se alterando. Isso ocorre tanto em relação à abertura maior ou menor do estatuto de cidadão para a população (por exemplo, pela maior ou menor incorporação dos imigrantes à cidadania), ao grau de participação política de diferentes grupos (o voto da mulher, do analfabeto), quanto aos direitos sociais, à proteção social oferecida pelos Estados aos que dela necessitam. A aceleração do tempo histórico nos últimos séculos e a consequente rapidez das mudanças faz com que aquilo que num momento podia ser considerado subversão perigosa da ordem, no seguinte seja algo corriqueiro, “natural” (de fato, não é nada natural, é perfeitamente social).

Desse momento em diante, todos os tipos de luta foram travados para que se ampliasse o conceito e a prática de cidadania e o mundo ocidental o estendesse para mulheres, crianças, minorias nacionais, étnicas, sexuais, etárias. Nesse sentido, é possível afirmar que, na sua acepção mais ampla, cidadania é a expressão concreta do exercício da democracia. Sonhar com cidadania plena em uma sociedade pobre, em que o acesso aos bens e serviços é restrito, seria utópico. Contudo, os avanços da cidadania têm a ver com a riqueza do país e com a própria divisão de riquezas, dependem também da luta e das reivindicações, da ação concreta dos indivíduos.

(24)

Portanto, na medida em que as mulheres buscam participar de um Programa de Alfabetização, elas estão reivindicando e assumindo sua possibilidade de cidadania. E essa luta pela liberdade de expressão e por direitos iguais continua, pois elas sofrem com a violência doméstica, pelas ameaças dos companheiros, que procuram tolher suas ações em busca de escolaridade. Isso fragiliza a relação marital, que as quer reprimir e até mesmo impedir que tenham a liberdade de ir e vir, o livre arbítrio e opções de uma vida melhor, com dignidade humana.

Cumpre destacar que a alfabetização é apenas um dos meios de garantia da cidadania, afinal o contexto no qual estamos inseridos traz consigo pautas de reivindicações de um passado excludente, em que a força da mulher estava apenas entre quatro paredes, na criação dos filhos e no cuidado da casa.

Dessa forma, destacamos as transformações sociais ocorridas no núcleo familiar e que acarretam mudanças de paradigmas, em uma sociedade machista e conservadora, onde as mulheres continuam reivindicando seus direitos sejam eles sociais, políticos ou civis.

1.2 A CIDADANIA E AS MULHERES

Nesta seção abordamos a cidadania no âmbito feminino, trazendo inicialmente valores referenciais como a igualdade e a liberdade, tidos como as garantias mais proeminentes nas sociedades ocidentais. Para Rousseau (1978a)13, todos buscam viver juntos em condições de liberdade e igualdade. “Aceitar” o estabelecimento de regras que firmem direitos e deveres entre os cidadãos permite que se construa uma sociedade justa, em que cada um recebe aquilo que lhe é de direito e permite ao outro também receber em igual medida a justiça.

Assim, Rousseau (1978b) apresenta as motivações humanas para abraçar um contrato entre semelhantes e firmar uma sociedade democrática, cabendo a cada um preservar o que há de mais humano. Para ele, a nenhum de nós deve faltar aquilo que é básico; cabe-nos buscar preservar liberdade e igualdade e jamais influenciar a supressão da liberdade de nossos semelhantes. Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade e até aos próprios deveres [...].

(25)

A referida renúncia é incompatível com a natureza do homem, sendo que se destituir voluntariamente de toda e qualquer liberdade equivale a excluir a moralidade das ações. O contrato social vem a desempenhar a garantia da preservação da liberdade, mesmo que não mais em seu estado natural, mas que sempre será fundamental à existência do homem. Tendo em vista que cada um possui interesses, devemos então procurar um modo de ajustá-los de modo que a vida em sociedade não seja desagradável para nenhuma das partes. Nessa busca pela sociedade democrática, então, são estabelecidos parâmetros de direitos e deveres que devem ser cumpridos, visando à igualdade e à liberdade como princípios norteadores de nossas ações.

No caso da igualdade entre os gêneros, para D’Oliveira (2013), a discussão continua a ser marcada pelas diversas conceitualizações das diferenças biológicas. O debate em torno da igualdade social versus diferença natural entre mulheres e homens constitui, deste modo, o pano de fundo sobre o qual decorre a procura por políticas promotoras da igualdade entre os seres humanos.

Ao analisarmos a participação das mulheres em todos os âmbitos, sejam profissionais, culturais e sociais, destacamos que elas são beneficiárias dos avanços e conquistas da cidadania. Em contrapartida, durante determinados momentos de ampliação de direitos e progressos democráticos, as mulheres, em sua maioria, não foram favorecidas do mesmo modo que os homens.

Além disso, fatos frequentemente ignorados na narrativa histórica, como a contracepção ou a evolução das roupas (modo de vestir), mostraram-se cruciais para a melhoria da qualidade de vida das mulheres. Além disso, importantes nas lutas por valorização social e igualdade de oportunidades, por reconhecimento de demandas específicas e pela difícil evolução da ideia de que as mulheres devem ter cidadania plena. Nesse campo em construção, para que os direitos de cidadania sejam efetivados, é necessário que as instituições públicas ajam de modo autônomo e efetivo na salvaguarda do que assegura a Constituição Federal de 1988:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 2013, p. 8).

Com relação à igualdade de direitos, D’Oliveira (2013), destaca que ela constitui um valor fundamental em que se inspiraram as filosofias e as ideologias políticas de todos os

(26)

tempos. Observa que a formulação “todos os homens são (ou nascem) iguais”, a qual perpassa todo o pensamento político ocidental, está expressa como norma jurídica nas declarações de direitos, desde o século XVIII até hoje, tendo como significado polêmico e revolucionário a extensão da igualdade a “todos”, e esse princípio da igualdade está fundamentado em um novo paradigma, com novo conteúdo e formas, de maneira inédita na história do constitucionalismo brasileiro. Essa transformação está claramente demonstrada no art. 3º da CF/88, que determina uma mudança do que há em termos de condições sociais, políticas, econômicas e regionais, exatamente para o alcance da realização do valor supremo a fundamentar o Estado Democrático de Direito constituído.

Entendemos que no campo da alfabetização o direito à educação de qualidade vai muito além da “letra morta da lei”, pois o que a Constituição Federal de 1988 propõe nem sempre acontece na prática. O artigo 206 especifica que o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;

VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII – garantia de padrão de qualidade;

VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal (BRASIL, 2013, p.10).

Os princípios que asseguram igualdade de condições de acesso e permanência bem como a garantia do padrão de qualidade suscitam o debate em torno das desigualdades que marcam a realidade brasileira. De acordo com Di Pierro (2012), não é possível garantir equidade de oportunidades, de permanência e qualidade sem pensar em ações afirmativas ou políticas de compensações de disparidades. A formulação da gratuidade, uma inovação da Constituição, apesar de ser garantida em todos os níveis, muitas vezes ainda é violada. Assim, a concepção de uma cidadania universal continua obscurecendo as reais diferenças da fruição desigual dos direitos: são muitos os que vivem sob uma situação periférica e de subjugação.

Uma cidadania universal, no sentido de que ela é igualmente desfrutada por todos, apenas reforça a noção de uma sociedade homogênea e não a de uma sociedade profundamente dividida por classes sociais, etnias e gêneros. A consciência feminista (BRITO, 2001), nesse contexto, assume o entendimento de uma cidadania diferenciada pela

(27)

qual alguns cidadãos “são mais iguais do que outros”. É nessa direção que o embate feminista (BRITO, 2001) insere-se na luta pela democratização dos espaços sociais, sendo ela idêntica àquela de qualquer outro grupo marginalizado. Isso porque a ênfase na norma igualitária é eficaz politicamente, porque permite combater certas formas de discriminação, afirmar a individualidade e impor limites ao poder.

No entanto, a realidade social que se apresenta é outra, isto é, as pessoas não são todas iguais e ignorar ou negar as diferenças auxilia na perpetuação das desigualdades, em que os “diferentes”, que são essencialmente distintos dos “normais”, são considerados, na verdade, “inferiores”.

Com alicerce nesse panorama, D’Oliveira (2013) assegura que uma sociedade não será democrática, na medida em que as oportunidades dos indivíduos estejam condicionadas por sua inserção nesta ou naquela categoria social: sejam quais forem os critérios, com base em que classificações constituam-se (classe, etnia, religião, gênero, etc.), o contexto assim caracterizado é fatalmente hierárquico e autoritário, e as oportunidades diferenciais por categorias expressarão, ao cabo, o desequilíbrio nas relações de poder entre elas e a subordinação de umas às outras.

De acordo com D’Oliveira (2013), é fundamental ter presente que, na virada de um regime restritivo para a plenitude democrática e sensível aos ventos da hodierna sociedade, prodigalizaram-se concessões e eliminaram-se limitações, com o propósito declarado de valorizar a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

As mulheres, os sujeitos desta pesquisa, ilustram o quanto é longo o caminho da luta pela extensão real dos direitos de cidadania aos muitos segmentos oprimidos de uma sociedade. Ou, expressando de outro modo, como a democratização de uma sociedade é fruto de um longo processo de mudanças que vão incorporando os grupos periféricos nos benefícios dos direitos, que igualam os indivíduos, indistintamente, no plano político, econômico e social. Ao tomarmos uma sequência histórica até hoje, os mecanismos reais de democratização só se efetivariam quando se concretizassem em políticas públicas de “igualação”, ou seja, se todo e qualquer indivíduo, independentemente de seu gênero, etnia, religião, nacionalidade e situação social, fosse beneficiário dos direitos proclamados de cidadania e de igualdade.

Atualmente, observamos que os processos de urbanização e multiplicação do consumo de bens e serviços permitiram uma modificação das atividades domésticas e da maternidade, possibilitando às mulheres maior participação na vida social. Contudo, essas

(28)

transformações aconteceram – e ainda ocorrem – basicamente nos países em que houve acentuado desenvolvimento econômico. Assim, as conquistas não são iguais para todas as mulheres, já que a análise dos avanços deve levar em conta a classe social e o nível de desenvolvimento econômico. Nos países em desenvolvimento, por exemplo, acontece o fenômeno da feminilização da pobreza.

O princípio da igualdade de direitos, com proibição de discriminação em razão de sexo, somente passou a constar nas Constituições no século XX. Podemos afirmar, portanto, que as ideias sobre igualdade formal e substancial fazem parte, hoje, do patrimônio ideológico de muitos países, em especial dos ocidentais democráticos. Embora tenham conquistado o direito de participar da vida política, as mulheres permaneceram na esfera privada, ainda muito tempo, subordinadas ao poder do marido, notadamente em países sob influência do Código Napoleônico, onde a capacidade civil das casadas foi alcançada, com frequência, depois da capacidade política.

Conforme D’Oliveira (2013), a Constituição Federal de 1988, também chamada de “A Constituição Cidadã”, foi elaborada com ampla participação da sociedade. O movimento de mulheres e feministas foi um dos grupos mais ativos e influenciou os constituintes com seu “lobby do batom”, conseguindo incluir na nova Carta Magna a grande maioria de suas reivindicações de então. Dentre as principais conquistas está a isonomia.

Homens e mulheres foram incluídos na Constituição, com igualdade de direitos e obrigações, na vida civil, no trabalho, na família. Existem outras tantas inovações na Constituição mencionada, que por ser abrangente e democrática trouxe para a sociedade brasileira diversas contribuições. Entretanto, mais de vinte e oito anos depois, o Congresso Nacional ainda não dá conta de regulamentar muitos dos seus dispositivos de modo a permitir que a “Constituição Cidadã” cumpra totalmente seu papel.

A igualdade em sentido pleno, nas relações entre homens e mulheres, supõe não só a igualdade jurídica, mas também a igualdade de fato, ou seja, de oportunidades e de trato, para exercer os direitos e desenvolver as próprias aptidões e potencialidades. O princípio da igualdade de direitos, consagrado na Constituição Federal de 1988, resultado de décadas de lutas das mulheres contra discriminações, é dos mais difíceis e complexos de serem concretizados, pois uma legislação igualitária não é suficiente para extirpar as discriminações e os vícios nas relações de gênero, profundamente enraizados na sociedade.

A igualdade, entendida desta maneira, é inconcebível: seria absurdo impor a todos os indivíduos exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferir os mesmos direitos sem fazer distinção alguma entre eles, como, por exemplo, entre crianças e adultos, indivíduos

(29)

mentalmente sadios e alienados, homens e mulheres. Assim sendo, não há sentido em considerar medidas diferenciadoras antidemocráticas, na proporção em que “deturpam” a ordem “natural” das coisas. Afinal, se a democracia é invenção humana que tem como pressuposto e fim a igualdade de todos, não há qualquer incoerência na criação de condições que a tornem verdadeiramente possível.

Ao analisar a legislação brasileira, percebemos que muito mudou no sistema jurídico nos últimos cem anos; com relação aos direitos das mulheres, essas mudanças foram mais lentas e muitas vezes dolorosas, pois quase tudo foi obtido com muita luta e dificuldade. Nesse contexto de mudanças estão os sujeitos desta pesquisa, mulheres que se incluem nas lutas e dificuldades, mas com vitórias e conquistas, mesmo em longo prazo, pois no limiar da vida adulta, enquanto idosas, mesmo com idade avançada, não desistiram do sonho de aprender a ler e escrever. Essa vontade, aliada à necessidade, faz com que se sintam inseridas na comunidade, reconhecendo a importância da cidadania, agora como forma de garantia de direitos.

Podemos afirmar que há normas legais, atualmente, que até servem como modelo para outros países. Faltam, entretanto, políticas que facilitem a participação das mulheres na vida pública, equipamentos sociais que traduzam a valorização social da maternidade (e da responsabilidade paterna) e meios para uma maior conscientização da população a respeito da violência física, sexual, psicológica, patrimonial e moral que têm como alvo as mulheres.

Nesse aspecto, podemos extrair da lição de Arendt (1989), que as pessoas não nascem iguais, mas diferentes, sendo a igualdade o resultado da ação humana organizada em comunidade política. A conquista da igualdade é, portanto, pressuposto para que as mulheres possam viver, de modo pleno, sua cidadania. Dessa forma, uma sociedade plural, complexa e multicultural só pode manter-se unida se houver o exercício da cidadania, amplo e efetivo, por todos os sujeitos. A igualdade substancial, portanto, só é operacionalizada em bases democráticas quando as mulheres, indistintamente, têm salvaguardados os seus direitos de cidadania.

Para corroborar com a teorização sobre o tema mulheres e cidadania, concordamos com Soares (2003) que defende que o trabalho induz à cidadania, aos direitos de cidadania que oferecem um status de trabalho diferenciado em termos de renda, estabilidade, segurança do local de trabalho, controle sobre a qualidade e a quantidade das responsabilidades. Mais ainda, a posição da mulher no trabalho se conecta com essa “suposição” do seu lugar natural, produzindo efeitos negativos para a sua cidadania política. A cidadania das mulheres denuncia, assim, os limites de seu próprio modelo. Às mulheres é, geralmente, designada uma

(30)

função de cuidado da família e só depois lhes são oferecidas possibilidades no mercado de trabalho e na política, sendo que sob duas perspectivas podem ingressar “paritariamente” no mercado de trabalho e na política, espaços estes organizados sob medida para os homens, isto é, para indivíduos “liberados” das tarefas domésticas, como os cidadãos de Atenas, que estavam liberados das atividades não-dignas. Nesse contexto, as mulheres podem “escolher” a assimilação, que simula a igualdade, ou podem ingressar protegidas no mercado de trabalho, usufruindo algumas tutelas que lhes permitem manter o desempenho “das predominantes funções familiares”.

É evidente, em todas as diferentes teorias feministas, uma crítica à pretensa universalidade do pensamento político e da construção cidadã. Essa universalidade tornou invisíveis as mulheres e muitos setores excluídos do modelo hegemônico (masculino, branco e trabalhador). Essa desigualdade foi intrínseca ao desenvolvimento das cidadanias modernas, pois seu surgimento ocorreu em condições de profunda iniquidade, ao tratar os diferentes como desiguais, fora da regra, excluídos.

(31)

2 A EXPERIÊNCIA DE ALFABETIZADORA

A experiência é sempre única e pessoal. Não há como trocá-la, pois carrega a singularidade e a subjetividade de cada um. Desta forma, abordamos a importância das narrativas como pesquisadora, destacando que existem algumas apreensões que constituem as narrativas dos sujeitos, como a sua representação da realidade que, como tal, estão cheias de significados. Assim, passei a ver e ouvir os relatos de três mulheres, das vinte alunas, selecionadas pelos critérios da faixa etária, com idades entre sessenta e oitenta anos; de residirem no mesmo Bairro, próximo ao Instituto Federal Farroupilha – Campus Panambi-RS; e de serem naturais da mesma cidade vizinha de Palmeira das Missões-RS, sendo que o estudo ocorreu dentro de uma perspectiva de ensino e de pesquisa.

Segundo Cunha (1997), discutir com os sujeitos o perfil de sua narração pode ser um exercício intensamente interessante, capaz de explorar compreensões e sentimentos antes não percebidos, esclarecedores dos fatos investigados. O presente estudo não realizou essa discussão, porque a coleta de dados ocorreu através da escuta das narrativas no espaço alfabetizador. Muitas delas feitas através da escrita, uma vez que é disciplinadora do discurso e porque, muitas vezes, a linguagem escrita libera, com maior força que a oral, a compreensão das determinações e dos limites.

Dessa forma, utilizei os relatos registrados no Caderno Diário14 durante as aulas, com a finalidade de acompanhar a formação e os avanços das alunas (e como registro para pesquisa), porém, elas mesmas organizaram o seu Diário escolar, cuja importância deve-se ao fato de ser um recurso didático utilizado durante as aulas, com o objetivo de estabelecer vínculos com os alunos, contribuindo para o desenvolvimento de práticas educativas.

Os cadernos foram utilizados como fonte para o conhecimento das imagens e representações sociais sobre as histórias de vida, da família e de outros temas similares, como instrumentos de aculturação da escrita, como veículos transmissores de valores e atitudes da cidadania e como um instrumento de expressão pessoal e subjetiva das alunas. Kleiman (2007) afirma que o caderno-diário é um gênero híbrido, pois surge da combinação de mais de um tipo de gênero do discurso dos alunos, o que demonstra como a linguagem é dinâmica. Define-se ainda, como um tipo de gênero secundário, pois surge “na condição de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado” e, ainda, por ser

14 Caderno Diário é recurso didático utilizado durante as aulas, onde são realizados os registros diários. Para fins

(32)

um caderno, pelo qual, apesar de suas regularidades de objeto escolar, é permitido exibir e explorar no entrever de linhas a “personalidade” dos donos (MIGNOT, 2008). Esse gênero passou a ser utilizado na Educação de Jovens e Adultos15 como mais uma forma de inserção do aluno na tarefa de codificar e decodificar a escrita do seu afazer pessoal e escolar. Para Kleiman (2007, p. 4), “quanto mais artifícios e gêneros estes alunos tiverem contato, maior será a facilidade em lidar fora dos muros da escola com todos os gêneros que encontrarem, sabendo lidar com os múltiplos letramentos da vida social”, o que permite que o indivíduo aja discursivamente.

Por este motivo, “é natural que essas representações ou modelos que viabilizam a comunicação na prática social – os gêneros – sejam unidades importantes no planejamento” (KLEIMAN, 2007, p. 12) e, dessa forma, que sejam usados como recursos complementares à aprendizagem escolar. O caderno-diário configura-se como um instrumento importante para o desenvolvimento dos processos de alfabetização perpassados pelos alunos, atuando como “um suporte metodológico” (SOUTO, 2009, p. 175), pois no seu desenvolvimento são aprimoradas habilidades de escrita bem como o exercício da síntese de experiências.

Dessa forma, além da observação da escrita é possível analisar a gramática, a ortografia, se o vocabulário foi ampliado, tornando mais claro sobre quais conteúdos o professor pode planejar as atividades posteriores. Além disso, os professores podem conhecer melhor a dinâmica de vida do aluno, pois em alguns destes relatos encontrei informações sobre a trajetória de vida das mulheres, que não foram verbalizadas.

Portanto, o Diário, é um recurso didático alternativo na aprendizagem dos alunos, pois através dele podem praticar sua escrita e adquirir novos conhecimentos relacionados à alfabetização, além de contribuir para fazer comentários mais pessoais, constituindo-se oportunidade de “desabafo”. São práticas didático-pedagógicas que possibilitam a cidadania, o que amplia o conceito de alfabetização.

Neste contexto de análise da escrita registrada no caderno diário fica mais clara a importância das discussões sobre identidade (BAUMAN, 2005) e preconceito. Quando questionei sobre o que sentiam ao terem oportunidade de ter o seu Diário, foi curioso observar as emoções em seus rostos: sorrisos, histórias que surgiam, silêncios antes das respostas, reflexões, enfim, eram sinais de superação de tempos nada atraentes. Um dos registros do

15

Referências

Documentos relacionados

Através da pesquisa de opinião e do desafio proposto pelo curso de extensão, será realizado um projeto que visa resgatar brincadeiras e a vontade das crianças em

PRODUTO PARA EXPORTAÇÃO PRODUTO PARA EXPORTAÇÃO PRODUTO PARA 7 PEÇAS PIEZAS | PIECES 11 PEÇAS PIEZAS |

E como resultado desta pesquisa pretendemos disponibilizar um projeto de irrigação automático com elevada flexibilidade de operação, excelente confiabilidade e representando

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

Embora o mercado de carbono tenha entrado em vigor desde 2005 e a cogeração de energia elétrica a partir do resíduo da cana-de-açúcar ser prática comum nas usinas

Agostinho esclarece: “Tu conheces pela tua presciência o que outrem vai fazer por sua própria vontade, assim Deus, não forçando ninguém a pecar, prevê, contudo os que por sua

O processo padrão inicia-se na colheita dos grãos em campo, os quais posteriormente são levados para as unidades de beneficiamento e armazenagem, onde passam por processos

Nessa situação temos claramente a relação de tecnovívio apresentado por Dubatti (2012) operando, visto que nessa experiência ambos os atores tra- çam um diálogo que não se dá