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Constituição e justiça social: foco na estrutura básica

2 LIBERDADE E IGUALDADE NAS TEORIAS DE JUSTIÇA:

2.2 Justiça como equidade: modelo contratual, procedimental e complexo

2.2.2 Constituição e justiça social: foco na estrutura básica

Num cantinho entre duas casas, (...) a menina se acomodou e se encolheu toda. Sentou-se sobre as pernas, mas sentiu mais frio ainda. Estava sem coragem de ir para casa, pois não tinha conseguido vender fósforo algum e ninguém lhe dera um níquel sequer. (...) Além disso, em sua casa fazia tanto frio quanto aqui, pois não havia nada além de um telhado que não impedia o vento de entrar assobiando (...). Suas mãozinhas estavam ficando dormentes de tanto frio. Bem que um fósforo faria bem! Se ela ao menos pudesse pegar um fósforo, riscar na parede e aquecer os dedos [...].55

52 As teorias deontológicas são também denominadas não-consequencialistas, consistindo numa concepção segundo a qual a correção moral de um ato depende das qualidades intrínsecas dessa ação – e não, como ocorre nas posturas teleológicas, de suas consequências ou de sua capacidade de produzir certo estado de coisas. GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça

depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p.

4.

53 ROSAS, João Cardoso. Manual de filosofia política. Coimbra: Almedina, 2008. p.36

54 Retome-se aqui a essência de sociedade bem-ordenada, terminologia usada por Rawls para designar aquela sociedade que é efetivamente regulada por uma concepção de política e pública de justiça, na qual cada indivíduo aceita os termos equitativos de cooperação social, assim como as suas instituições políticas, sociais e econômicas, que são também reconhecidas como justas. RAWLS, op. cit., p. 5.

A sociedade em que a pequena menina está inserida é eivada por injustiça. O que Hayek consideraria um resíduo natural da sociedade espontânea e de mercado, Rawls aponta como demonstração da inadequação das instituições ao que foi pactuado na posição original hipotética. Já foi dito que a virtude primeira das instituições, em sua teoria, é a justiça. Assim, os princípios atuam na estrutura básica social, de modo a gerar resultados justos desde o início.

Rawls considera como principais instituições a Constituição e as disposições políticas e econômicas. Daí o autor afirmar que, caso as instituições ou as leis delas decorrentes sejam injustas, elas devam ser alteradas ou mesmo abolidas. Nessa esteira, os princípios da igual liberdade e da diferença atuam no início do processo de formação dessas instituições, de maneira a gerar como resultados mais liberdade e mais igualdade – em especial a partir do respeito ao princípio da diferença.

Os princípios regulam a performance das instituições, assim como a conduta dos indivíduos, de modo que o contrato hipotético em Rawls garante uma força vinculativa nessa concepção-modelo de sociedade. Pela defesa do consenso sobreposto, fica implícito na cultura pública que o Estado possui legitimidade. O exercício do poder coercitivo, inclusive na tributação, legitima-se no endosso da própria sociedade. As instituições se mantêm estáveis por emanarem justiça e pelo fato de os cidadãos as perceberem justas.

Uma Constituição que emana princípios de justiça poderá guiar a sociedade rumo a resultados justos em termos de distribuição de bens, rendas e oportunidades. Nesse tocante, parece adequada a lembrança da crítica feita por Hayek às concepções construtivistas de sociedade e a seus riscos inerentes. Pensar a sociedade num formato tão específico, voltado para a consecução de fins coletivos e pré-determinados, levaria inevitavelmente a alguma forma de autoritarismo.

Apesar de ser um dos mais proeminentes críticos de Rawls, entende-se que o posicionamento de Dworkin a esse respeito seja bastante elucidativo, e mesmo complementar às concepções dispostas em justiça como equidade. Ele afirma que uma concepção institucional mais plausível seria aquela que avaliasse os diversos arranjos institucionais a partir de seus traços procedimentais.

O objetivo não seria buscar um arranjo institucional que facilitasse a obtenção de resultados pré-definidos. Se assim fosse, uma ditadura seria bem vista, a despeito de afrontar direitos básicos à democracia. A questão principal é perquirir

se o sistema distribui o poder político de forma igual, em vez de perguntar sobre os resultados que promete produzir. A questão não é só verificar se a tributação vem sendo feita, ou se o montante arrecadado vem crescendo. Importante também é verificar o procedimento da arrecadação: A tributação está ocorrendo com observância à liberdade e às diferenças entre os contribuintes? Os contribuintes reconhecem a legitimidade da tributação enquanto dever de cooperação? Certos tributos estão sendo supervalorizados em razão de evitarem práticas elisivas, desonerando certos setores em detrimento de outros?

Assim, Rawls assinala que:

[...] têm também uma importância decisiva outras controvérsias, tais como limitar ou não o poder dos monarcas absolutos mediante princípios constitucionais apropriados para tal, que protejam os direitos e as liberdades básicas56.

Para Rawls, uma Constituição é a “[...] expressão do poder constituinte enquanto poder do povo para estabelecer um novo regime, [e] estabelecer um marco para regular [através de uma Constituição] o poder ordinário”57.

Por meio da posição original, Rawls prenuncia um poder constituinte tácito. O processo que o autor formula para a escolha dos princípios da justiça que devem reger a estrutura básica da sociedade, consta de quatro etapas. A proposta é fazer, depois de adotados os princípios da justiça, uma espécie de convenção constituinte. Trata-se de um momento crucial em que as partes devem decidir qual a forma mais adequada de elaborar uma Constituição.

Numa primeira etapa, na posição original, os princípios são escolhidos, após o que as partes se reúnem para decidir sobre a justiça das formas políticas, escolhendo uma Constituição. Esta é a segunda etapa, em que se estabelecem claramente os direitos e liberdades fundamentais.

A partir de então, numa terceira etapa, são feitas leis que dizem respeito à estrutura econômica e social. A essa altura, trata-se da justiça das leis e das políticas econômicas e sociais. Quando esta se completa, já só nos resta, na quarta etapa, a aplicação das regras pelos juízes e outras autoridades.58

56 Id. O Liberalismo Político. México: Fondo de Cultura Económico, 1996. Tradução de Sérgio René Madero Báez. p. 26

57 Ibid., p.231 58 Ibid., p.212

O procedimento acima descrito permite afirmar que Rawls prevê regras para o funcionamento da convenção constituinte e de etapas posteriores. De fato, são os princípios de justiça que devem inspirar os direitos básicos do cidadão, bem como um sistema de escolha dos governantes e dos poderes constitucionais de governo. É neste estágio que se avalia a justiça dos procedimentos para lidar com as concepções políticas, levantando-se, parcialmente, o véu da ignorância.59

Cabe realce ao fato de que, sujeitando a Constituição aos princípios da justiça, Rawls propõe ao mesmo tempo um sistema ético de formulação e avaliação da Lei Fundamental, pois os princípios da justiça definiriam um critério de avaliação independente para o processo constitucional. Isso asseguraria sua legitimidade, pois ao centrar a discussão na justiça, a Constituição lograria um grau mais efetivo de estabilidade.

Assim, tem-se a perspectiva de uma Constituição estável e duradoura, posto que sustentada numa concepção de justiça amplamente aceita. No que concerne ao poder reformador, é possível tomar os princípios de justiça justamente como os limites éticos a esse poder de rever dispositivos da Constituição.

De acordo com Rawls, no tocante ao poder de emendar a Constituição, há que se considerar que:

[...] uma emenda nunca é algo isolado em si mesmo, o objetivo que a move é ajustar os valores constitucionais básicos às mudanças de circunstâncias políticas e sociais ou incorporar à Constituição uma compreensão mais ampla destes valores60.

Quanto ao poder reformador, cite-se o entendimento de Cittadino, que, com fulcro em Rawls, afirma que “[...] qualquer procedimento de reforma constitucional que venha desvirtuar a promessa inicial configurada na Constituição – revogar direitos fundamentais, por exemplo – não pode ser considerado válido”61.

Rawls preconiza que o aperfeiçoamento do processo democrático se dá a partir da progressiva retirada do véu da ignorância e do desenvolvimento das práticas sociais e intersubjetivas. Dessa forma, podem ser gradativamente corrigidos os descompassos entre o que foi acordado na posição original e o que vem sendo

59 VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. p.207

60 RAWLS, op. cit., p.226

61 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva

– Elementos da filosofia constitucional contemporânea. 4. ed. Rio de Janeiro: ed. Lumen Juris, 2013. p.186

implementado na prática. Resta patente mais uma vez o caráter balizador dos princípios para o aperfeiçoamento da democracia constitucional e de suas instituições.