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6 O SUJEITO COM DISLEXIA: PARA ALÉM DO APESAR

6.1 CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

Na pesquisa realizada por esta autora durante o mestrado, estudou-se o conceito de constituição do sujeito a partir da THC (FREITAS, 2015). A pesquisa demonstrou que o fato das crianças com desenvolvimento típico estarem numa instituição educacional que preza por valores inclusivos e terem convivido com crianças com deficiência, contribuiu para que elas se constituíssem sujeitos com um

67 Tradução livre: A criança com deficiência não é inevitavelmente uma criança deficiente. O grau de

olhar mais sensível para as questões da inclusão. Entretanto, cada criança apresentou uma forma de assimilar e externalizar esses valores e sentimentos.

Ao realizar as leituras na busca por compreender o conceito de subjetividade a ser utilizado na presente pesquisa, percebeu-se que tais diferenças de atitudes evidenciadas pelas crianças investigadas poderiam ser explicadas por tal conceito.

Compreende-se que os participantes desta pesquisa, hoje adultos, em sua infância vivenciaram esse processo de constituição a partir do contexto em que estavam inseridos e, consequentemente, de acordo com González Rey, sua configuração subjetiva e a formação de seus sentidos subjetivos também se desenvolveram perpassados pelas especificidades dos contextos de cada indivíduo.

Conforme aponta a literatura da área (ROTTA; OHLWEILER; RIESGO, 2006, SHAYWITZ, 2006), o diagnóstico de dislexia é realizado, em sua maioria, após a entrada no ambiente escolar. Até este momento, a criança com dislexia vivencia seu dia a dia sem que suas especificidades sejam evidenciadas. Embora estudos indiquem que alguns sinais podem ser identificados antes do período escolar, tal situação é considerada rara.

Desse modo, as crianças com dislexia constituem-se como sujeitos com desenvolvimento típico, mas à medida que avança a complexidade das exigências escolares, começam a ser evidenciadas as especificidades desses indivíduos.

Consequentemente, a relação dessas crianças com o meio se modifica, pois, conforme a gravidade dos sintomas e/ou o contexto em que a criança está inserida, são realizados alguns encaminhamentos.

Compreende-se que o desenvolvimento da personalidade é diretamente influenciado pelas vivências68, as quais não podem ser compreendidas como o fato

em si, mas a interpretação que cada um faz sobre o evento ocorrido. Pois é esse “elemento interpretado pela vivência da criança que pode determinar sua influência no decorrer de seu desenvolvimento futuro” (VIGOTSKI, 2010, p. 684).

68 O termo utilizado por Vigotski é Perejivánie. Este termo é de difícil tradução pois não tem uma

palavra específica para traduzí-lo. Vinha, ao traduzir a “Quarta aula: a questão do meio na pedologia” (VIGOTSKI, 2010) menciona que este termo significa ‘viver através’ e utiliza o termo ‘vivência’ como uma palavra correspondente. Kuper também utiliza o termo vivência na tradução do Tomo IV para a língua espanhola (Vygotski, 1984). González Rey (2016) afirma que Vygotsky nunca definiu ontologicamente este conceito e que por isso existem diferentes significados para ele em diferentes épocas de seu trabalho e as múltiplas interpretações de perezhivanie até hoje. González Rey teve acesso aos textos em russo e utiliza o termo perejivánie sem traduzi-lo entendendo que o mesmo representa a relação entre uma influência social e a personalidade da criança.

Vygotski (1984) também diz que a criança se torna consciente de suas próprias vivências aos sete anos de idade, pois nessa idade as vivências ganham sentido e se reestruturam. “[...] cuando una situación se ha repetido muchas veces

nace una formación afectiva que tiene la misma relación com la vivencia aislada o el afecto, que el concepto con la percepción aislada o el recuerdo69” (VYGOTSKI,

1984, p. 380).

A criança generaliza seus sentimentos e é capaz de julgar seus próprios êxitos. Nesse sentido, a vivência se torna um elemento fundamental para o desenvolvimento da criança.

La vivencia del niño es aquella simple unidad sobre la qual es difícil decir que representa la influencia del medio sobre el niño o una peculiaridade del proprio niño. La vivencia constituye la unidad de la personalidade y del entorno tal como figura en el desarollo. [...] La vivencia debe ser entendida como la relación interior del niño como ser humano, con uno u outro momento de la realidade. [...] No hay vivencia sin motivo, como no hay acto consciente que no fuera acto de consciencia de algo70. (VYGOTSKI, 1984,

p. 383).

Assim, a vivência pode ser compreendida como uma unidade indivisível das particularidades do meio e das particularidades da personalidade. Pode-se entender a vivência como o conjunto das características da personalidade relacionadas à experiência vivida (VIGOTSKI, 2010).

Antes de serem diagnosticadas, as pessoas que tem dislexia irão se deparar com situações as quais evidenciarão suas dificuldades. Consequentemente, o modo como ocorrerá essa vivência e o sentido que cada indivíduo atribuirá a esses eventos se tornará parte de sua personalidade, do mesmo modo que a interpretação do ocorrido depende das características que já fazem parte da personalidade de cada um.

69 Tradução livre: Quando uma situação se repete muitas vezes nasce uma formação afetiva que tem

a mesma relação com a experiência isolada ou o afeto, que o conceito com a percepção isolada ou a memória.

70 Tradução livre: A vivência da criança é aquela simples unidade sobre a qual é difícil dizer que

representa a influência do meio sobre a criança ou uma peculiaridade da própria criança. A vivência constitui a unidade da personalidade e do entorno tal como parece no desenvolvimento. [...] A vivência deve ser entendida como a relação interior da criança como ser humano, com um ou outro momento da realidade. [...] Não há vivência sem motivo, como não há ato consciente que não tenha sido ato de consciência de algo.