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“A nação, como “comunidade imaginada”, pode vir a ser construída discursivamente, como uma literatura, como uma língua nacional,

como uma “raça”, um folclore, uma religião, um conjunto de leis [...] ou, ainda, uma política cultural visando a recuperação, defesa e preservação de um “patrimônio cultural”.”

José Reginaldo Santos Gonçalves

Procurar origens para o que hoje chamamos de Patrimônio Cultural nos levaria a um percurso gigantesco que poderia remontar ao século XV como aponta Choay em A alegoria do

patrimônio ou, ainda mais recuado, aos “monumentos” totêmicos dos povos ditos “primitivos”.

Contudo, buscando uma aproximação mais direta com a “forma” conceitual do patrimônio estabelecida em nossos dias, iniciarei a narrativa da construção deste conceito a partir da Europa em fins do século XVIII. Assim é que a construção do conceito de patrimônio liga-se à formação e consolidação dos estados nacionais, às transformações urbanas alavancadas pela

industrialização e às ações revolucionárias de uma França jacobina que concorrem para desencadear a idéia de salva-guarda do espólio nacional francês.

Embora seja possível falar de um processo de constituição da idéia e conceito de “Patrimônio”, mais ou menos generalizado por toda a Europa no século XIX, três paises, cada um ao seu modo, têm grande relevância como principais gestores desta idéia: Itália, Inglaterra e França. Nestes países nasceram ou se formaram os principais articuladores da idéia de patrimônio e neles foram geridas as principais teses e teorias sobre patrimônio, preservação e restauro, até o final do século XX.

Na Itália, sobretudo em Roma, os vestígios da “civilização romana” e a presença do papado católico pesaram bastante no processo de constituição desta idéia. Já no século XVI um Breve de Paulo III16 criava disposições para a proteção dos monumentos. O renascimento italiano, na medida que valorizava a forma, a estética e a arte clássica, corroborou com tal processo.

Entretanto, o processo tardio de unificação da Itália, dividida em territórios autônomos até meados do século XIX, cria uma dificuldade na medida em que não podemos falar de um Patrimônio Nacional até a unificação deste país. É importante destacar que, além da língua, o passado latino-romano atestado pelos monumentos e vestígios históricos, foi peça chave em torno da qual se agregou (não sem sangue, guerras e conflitos) a população diversa da Península Itálica. Através de uma história e um patrimônio comum, simbolicamente, a Itália tornou-se una.

A monarquia na Inglaterra cria uma especificidade para o processo naquele país, sobretudo no que diz respeito ao direito de propriedade. Já consolidada como um Estado-Nação, no século XVIII o patrimônio da coroa britânica ainda podia soar como patrimônio da família

16 RIEGL, Aloïs. El culto moderno a los monumentos: caracteres y origen. 2ª Ed. – Madrid: Visor, 1999. p. 35. Um breve papal é um rescrito que contém uma decisão de caráter particular.

real. Só no século XIX a burocracia e impessoalidade do estado apartara solidamente esta ligação. No entanto, o fator principal para o processo de patrimonialização na Inglaterra é a “industrialização” e com ela processos de modernização e transformação urbana17. A velocidade e intensidade das novidades, ditas, “modernas” são o substrato para um sentimento de perda. Sentimento que é peça fundamental para os processos de patrimonialização, conseqüentemente, preservação e restauro. Por exemplo: a Inglaterra já no século XIX passou a admitir monumentos do período industrial como “bens patrimoniais”.

O caso da França é, particularmente, relevante. Foi o primeiro estado republicano a instituir regras, leis e organismos públicos para gerir seu patrimônio. Neste sentido se tornou referência em termos de gestão e administração dos monumentos nacionais. Devidamente burocratizado o estado francês descola os bens patrimoniais do mecenato, do direito e gostos privados. Faz dele matéria de interesse político nacional para educação e cultura e como tal assume as responsabilidades sobre este acervo.

Em 2 de outubro de 1789 a Constituinte francesa, através de ato jurídico coloca à disposição da nação os bens do clero e, sucessivamente, os bens dos emigrados e da coroa. Tais atos promovem um deslocamento gigantesco de bens privados para a esfera do patrimônio público (aqui a idéia de patrimônio público ainda apresenta algumas diferenças consideráveis da concepção corrente em nossos dias). Constitui-se então um verdadeiro tesouro disperso pelo território francês e sobre o qual, ainda, não se tinha informações concretas.

Estes primeiros atos jurídicos estão ligados ao ideal revolucionário que vê na maior parte do clero e da nobreza exploradores do povo, e cujas riquezas teriam sido constituídas em

17 Segundo Hobsbawm, até o início do século XIX Londres era a única cidade européia com 1 milhão de habitantes. HOBSBAWM, Eric J. A era dos Impérios: 1875-1914. 5ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra (p. 40) . No período de 1851-1881 Londres passou de 2,5 milhões de habitantes para 3,9 milhões. HOBSBAWM, Eric J. A era do capital: 1848 - 1875. 8ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra (p. 295)

detrimento do trabalho dos segmentos “desfavorecidos” da nação. O deslocamento dos bens assume discursivamente um caráter de reparo jurídico em acordo com o ideário político recém estabelecido.

Embora tenha sido esta a prática francesa, tornar o bem propriedade pública, tal mudança jurídica não é uma condição obrigatória para a constituição da idéia de patrimônio. Mas, através de algum arranjo jurídico-discursivo, é necessário instituir a noção de pertencimento público18 (diferente de posse e propriedade). Trata-se de uma noção fundamental sem a qual não seria possível falar de patrimônio nos termos que tratamos hoje, visto que não se extrapolaria as idéias de propriedade pública ou privada. Tampouco seria possível afirmar valores, responsabilidades ou representatividades, coletivamente, distribuídos. É uma noção que deve ir além do interesse público como nas jazidas minerais (compõem estratégias estatais de manejo de suas riquezas), o pertencimento público no caso do patrimônio cultural deve dizer respeito à identificação dos indivíduos enquanto cidadãos e membros de um conjunto (nação).

Desta idéia de bens comuns à nação (propriedade pública de jóias, móveis, obras de arte, propriedades, etc) passamos a observar ainda no século XVIII menções aos monuments publics19. Tais menções vêem carregadas de uma outra concepção de sentido e uso sobretudo quando se remetem às edificações e aos monumentos,

Cependant il est un lieu que son dénuement même et ses ruines relevent à ses yeux, et qu’une simple inscription, Ici fut la Bastille place au rang des monuments les plus célebres [...] eh! Bien! C’est pour consacrer tous ces droit que j’invoque des monuments20

18 Todas as legislações consultadas instituem arranjos que possibilitam e favorecem a mudança da natureza da propriedade dos bens, da privada para a pública, caso o estado julgue necessária tal ação em nome do interesse público (coletivo).

19 Termo usado pela primeira vez em 1790 por Aubin-Louis Milin em discurso à assembléia constituinte francesa. 20 KERSAINT, Armand-Guy. Discours sur les monuments publics, prononcé au Conseil du department de Paris le

15-12-1791, (p. 5 e 7). – grifos do próprio autor. Documentação disponível em: http://gallica.bnf.fr/ Acesso em: 15

Nota-se que não se trata mais de uma simples realocação de bens, é a afirmação de uma retórica que confere usos políticos para os monumentos e suas possibilidades como peças alegóricas para a narrativa histórica e de identidade nacionais.

Seja a Bastilha, Stonehenge ou o Coliseu21, prestam-se enquanto marcos narrativos de uma “história real”. Pensar nestes elementos em fins do século XVIII e início do XIX remete a um processo de criação de referentes e referências para o binômio “Estado-Nação”.

Je ne vous parlerai donc ici que des monuments à faire: je les considererai sur- tout dans leurs rapports avec la révolution: c’est par elle et pour elle que nous sommes; nous lui devons l’hommage de nos premiers travaux. Affermissons la liberté, et tout deviendra facile. Pour y parvenir, joignons aux instructions de la parole le langage énergique des monuments: la confiance, qu’il est si nécessaire d’inspirer sur la stabilité de nos nouvelles loix, s’établira, par une sorte d’instinct, sur la solidité des édifices destinés a les conserver et en perpétuer la durée22

Apesar desta passagem se remeter, basicamente, aos monumentos e edifícios relacionados à Revolução Francesa, portanto recentes em relação ao discurso de Kersaint, esta forma de pensar os monumentos será estendida, também, aos monumentos antigos e para fora do território francês.

Ainda no século XVIII, Henri Grégoire23 denuncia o vandalismo praticado por membros do exército revolucionário e acusa o risco que corriam as obras de arte provenientes do Ancien

21 Monumentos nacionais respectivamente da França, Inglaterra e Itália. 22

KERSAINT, Armand-Guy. Discours sur les monuments publics, prononcé au Conseil du department de Paris le

15-12-1791, (p. 3). Documentação disponível em: http://gallica.bnf.fr/ Acesso em: 15 julho 2006.

23 Conhecido como o cura da Revolução Henri Grégoire era membro do baixo clero e defendeu a união desta classe como membro atuante da revolução francesa. Foi o primeiro a propor e defender o fim da escravidão nos domínios franceses. Tomou assento entre os membros da assembléia constituinte francesa e foi fundador do Conservatoire national des arts et métiers.

Régime. Como membro da assembléia propõe que medidas sejam tomadas para a salvaguarda de

tal acervo24.

Sob o rótulo de monuments publics, os monumentos à revolução, obras de arte, castelos medievais, catedrais góticas e monumentos da antiguidade passam a abrigar-se, “sem distinção”, no conjunto do patrimônio nacional francês. A imagem da destruição e da perda25 relatada por Grégoire teve e tem, ainda hoje, diferentes veículos: “vândalos ignorantes” na França pós- revolucionária; as intempéries climáticas, catástrofes e o decorrer dos séculos que arrasam as ruínas romanas da Itália; as transformações da industrialização e da modernidade. Sem a imagem da perda como justificar os programas e ações de preservação e restauro? E mais, é preciso que esta perda seja superestimada, que ela signifique um dano maior. Que seja uma perda coletiva pois, entre outras coisas, os custos serão públicos. É preciso que seja uma perda para além do objeto destruído pois,

O patrimônio é concebido como uma “expressão” da identidade nacional em sua integridade e continuidade. Ao mesmo tempo, o patrimônio é concebido, numa relação metonímica, como sendo a própria realidade que ele expressa. Desse modo, preservar o patrimônio é preservar a nação. Ameaças ao patrimônio são ameaças à própria existência da nação como uma entidade presente, auto- idêntica, dotada de fronteiras bem delimitadas no tempo e no espaço26.

Assim como o pertencimento coletivo, a imagem da perda é fundante para a idéia de Patrimônio uma vez que, no contexto ocidental, a proximidade do fim “valoriza” o bem e cria a necessidade do zelo.

Nas primeiras décadas do século XIX ganha ênfase, por toda Europa, o conceito de

monuments historiques, fortemente, ligado às edificações monumentais antigas (medievais e da

24 O abade Grégoire, em janeiro de 1794, apresenta seu Rapport sur les destructions opérée par le Vandalisme, et sur

les mohines de le réprimer. Documentação disponível em: http://gallica.bnf.fr/ Acesso em: 21 julho 2006.

25 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. p. 147. Para uma leitura sobre a imagem da perda e sua participação na fundamentação dos discursos sobre o patrimônio. 26 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. p. 31

antiguidade). Este conceito ganha uma abrangência enorme uma vez que toda obra humana é de alguma forma inserida nos processos históricos com seus contextos específicos. Sem anular as diferentes classificações dos monumentos (públicos, artísticos, nacionais, etc.) a noção de monumento histórico vai, paulatinamente, abarcando todas elas e se tornando a idéia motriz das ações e considerações sobre Patrimônio.

Esta ampliação do valor histórico27 dos objetos e monumentos, se deve a uma concepção

evolutiva da história e da sociedade que se consolidou no século XIX,

Llamamos histórico a todo lo que ha existido alguna vez y ya no existe. Según los conceptos más modernos, a esto vinculamos la idea de que lo que alguna vez ha existido no puede volver a existir, y que todo lo que ha existido constituye un eslabón imprescindible e indesplazable de una cadena evolutiva, o lo que es lo mismo, que todo está condicionado por lo anterior y no habría podido ocurrir como ha ocurrido si no le hubiese precedido aquel eslabón anterior28.

Mesmo hoje, quando as concepções evolucionistas da historia e da sociedade já quase não encontram lugar para se afirmarem, o entendimento dos bens históricos como testemunhos de etapas do “percurso histórico” da sociedade sobrevive como argumento instituidor do respeito aos monumentos. O que é bastante significativo, pois as conceituações e noções de patrimônio cultural construídas, até hoje, não sobrevivem fora de um percurso histórico comum. Seu fundamento se dá num tempo passado onde as diferenças podem ser minimizadas e pontos comuns podem ser realçados.

Na década de 1830, sob a ação de Prosper Mérimée29, a França formava sua primeira

Comission des Monuments Historiques responsável pela identificação, registro, manutenção e

27 RIEGL, Aloïs. El culto moderno a los monumentos: caracteres y origen. 2ª Ed. – Madrid: Visor, 1999. p. 57 - 66 28 RIEGL, Aloïs. El culto moderno a los monumentos: caracteres y origen. 2ª Ed. – Madrid: Visor, 1999. No início do século XX (1903) Riegl sintetiza bem a concepção de história forjada no século XIX.

29 Prosper Mérimée nasceu na França napoleônica, filho único do pintor e professor de desenho Leonor Mérimée. Formou-se em direito em 1823, ocupou diversos cargos públicos entre eles foi nomeado inspetor dos monumentos

gerência destes bens. Além disso, esta comissão teve como missão formar um corpo de especialistas que fossem capazes de tratar os monumentos das diferentes épocas e escolas artísticas, sobretudo no que se referisse à arte e arquitetura medieval, até então, pouco consideradas em detrimento da arte e arquitetura clássicas e renascentistas.

Tal iniciativa será responsável pelo início do processo disciplinar da matéria (versando sobre o patrimônio em suas atribuições: identificação, registro, preservação e restauro). A especialização profissional neste contexto de construção da idéia de patrimônio é responsável pela criação de uma fala de autoridade. É o estabelecimento de um púlpito privilegiado de onde se fala com “segurança” e que permite a outorga dos discursos sem contestações generalizadas. Falo de um processo de disciplinar, pois se trata da formação de indivíduos (sobretudo arquitetos) que passam a ser autorizados ou reconhecidos pelo estado ou meio acadêmico a falarem e agirem sobre os bens patrimoniais. As falas destes indivíduos tomam forma de verdade questionável apenas por outros indivíduos que sejam, também, devidamente autorizados.

Por volta da segunda metade do século XIX, o restauro e a preservação já transitavam num campo disciplinar30 minimamente estabelecido com prática específica e pessoas especializadas. Dois nomes tornaram-se celebres nestes debates e concorreram para consolidar o campo do “verdadeiro” para a preservação e para o restauro: John Ruskin – defendia que o restauro em si era uma destruição pois, subtraía a alma daquele bem:

Is the true meaning of the Word restoration understood. It means the most total destruction which a building can suffer: […] a destruction accompanied with false description of the thing destroyed. […]

históricos. Manteve-se sempre muito próximo às artes escrevendo diversas novelas das quais destaca-se ‘Carmem’ que deu origem à famosa ópera, homônima, de Georges Bizet. Fonte das informações:

http://pt.wikipedia.org/wiki/prosper_M%C3%A9rim%C3A9e Acesso em: 18 abril 2006.

30 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 10ª ed. – São Paulo: Edições Loyola, 2004. p.36 “A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras”.

We have no right whatever to touch them. They are not ours. They belong partly to those who built them, and partly to all the generations of mankind who are to follow us. The dead have still their right in them […]31

e Viollet-le-Duc32 – por sua vez, defendia as restaurações e as praticava guiado pela idéia de uma homogeneização estilística. “Restaurer um édifice, ce n’est pás l’entretenir, le réparer, ou le refaire, c’est le rétablir dans um état complet qui peut n’avoir jamais existé à um moment donné”33.

A concepção anti-restauro de John Ruskin se valia da afirmação de “valores imanentes” das construções e monumentos para a construção de um respeito às obras ancestrais, conseqüentemente aos próprios ancestrais ou vice-versa. Nisto Ruskin foi imbatível, com seu livro The seven lamps of architecture, semeou idéias que ainda hoje norteiam as justificativas de proteção e tombamento de bens culturais. Procurou difundir a concepção dos monumentos e obras (artísticos ou históricos) como continentes da memória e da identidade de um grupo, bem como procurou dramatizar a irreversibilidade histórica que o levava a considerar a restauração uma falsidade, posto que não se retorna a estados anteriores de conservação.

É a aceitação inconteste da pertinência deste respeito e a aceitação dos monumentos como continentes de identidades, memórias e outros valores que viabilizam as interpretações técnicas e científicas (até bem pouco tempo, ainda, tentando se afirmar na imparcialidade, objetividade e neutralidade) dos bens patrimoniais. Este trabalho de “inculcação”, claro, não foi realizado por

31

Ruskin, John, 1819 -1900. The seven lamps of architecture. Reprint as published by George Allen, Sunnyside, Orpington, Ketn in 1880 – Mineola, NY: Dover, 1989. p. 194-197 Grifos do próprio autor.

32 Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc nasceu em janeiro de 1814 em Paris e morreu na Suiça em 1879. Dedicou-se aos estudos arquitetônicos sobretudo das construções medievais. Tornou-se famoso pelas restaurações que realizou (Basilique Saint-Denis – Notre-Dame de Paris – Basilique Saint-Semin de Toulouse – La Cité de Carcassonne). Foi um dos arquitetos restauradores mais famosos da França no século XIX e posteriormente um dos mais criticados devido a sua prática intervencionista reconstrutivista.

33 Le-Duc, Viollet. Dictionnaire Raisonné de l’architecture française du XIe au XVIe siècle – Tome 8, Restauration. Obra disponível em:

http://fr.wikisource.org/wiki/dictionnaire_raisonn%C3A9_de_l%27architecture_fran%C3A7aise_du_XIe_au_XVIe_ si%C3%A8cle_-_Tome_8%2C_restauration Acesso em: 01 agosto 2006.

um único homem – Ruskin é apenas exemplar. Pintores, escritores, poetas, entre outros tiveram sua parcela de responsabilidade na construção e consolidação de valores e significados para os bens patrimoniais. Pois, no fim, restaurar um moinho com sua roda à beira de um rio será em última instância o desejo de manter vivo um “bucolismo campestre” idealizado e distante dos homens e mulheres do presente34. Com isto, os textos científicos podem tratar dos materiais da construção, da inclinação das quedas d’água ou do diâmetro da roda pois as imagens e sentidos se farão presentes para quem lê.

A homogeneização estilística de Viollet-le-Duc se afirmava sobre duas vertentes de argumentação: uma pureza do estilo artístico que o autor original da obra teria concebido, e uma concepção de história que atrelava os monumentos à noção de documento, conseqüentemente, como registro de um momento estanque específico35. Viollet-le-Duc acreditava ser possível devolver ao monumento a pureza estilística original bem como retroceder os estados físicos dos bens. Para tais fins procedia a retirada dos acréscimos que no decorrer dos anos foram associados à construção.

No fim do século XIX e início do século XX um meio termo entre estas posições foi estabelecido, em parte, devido aos trabalhos de Camillo Boito36 que formulou novos critérios e procedimentos para as ações de restauro e preservação. Com pontos herdados do respeito radical anti-intervencionista de Ruskin e flexibilizando a idéia do estilo “primitivo” homogêneo de Le- Duc, Boito define a estratégia de manter parte das marcas acrescidas aos monumentos durante o tempo de sua existência, na medida em que são também documentos, registros de um determinado período.

34

O presente mencionado não é o tempo presente contemporâneo a mim, mas os presentes de hoje, do passado e do futuro, que a partir deles e com referência a eles mesmos se projeta um tempo passado, idealizado e distante. 35 Atualmente, esta concepção de documento está sendo, também, reavaliada. A idéia vigente no século XIX, e maior