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“Na praça, há o murinho dos velhos que vêem a juventude passar; ele está sentado ao lado deles. Os desejos agora são recordações.” Ítalo Calvino

Que novidades modernas são estas que mencionamos acima e que motivam como reação a saudade e a nostalgia? De maneira geral, na historiografia pernambucana, as décadas de 1920 e 1930 passam sob o signo da modernidade. Na economia, bangüês e engenhos viraram usinas. “Industrialização”, fábricas se instalam nos arrabaldes e nas cidades vizinhas. Na cidade: expansão urbana e “urbanização” da capital (a “Cruzada Sanitária” do dr. Amauri de Medeiros e mais tarde na “Liga Social Contra o Mocambo”). No cotidiano, mudanças e introdução de novos hábitos para as gentes das cidades (cinema, automóveis, futebol, novas músicas e modas).

É claro que este parágrafo sequer resume uma análise sócio-econômica da conjuntura do estado ou da capital, tampouco esta é a minha intenção. Trata-se de uma sinalização de mudanças na percepção e vivência da cidade. Como num processo, na década anterior (1910), as reformas do Bairro do Recife e do porto anunciavam os “tempos modernos” que se instauravam. Mais à frente houve um incremento da presença do automóvel (em 1919, o Recife assistiria sua primeira prova de velocidade de automóveis) na cidade67:

Os derradeiros carros a cavalos que rodavam pelo Recife foram os do Agra, já envelhantados, rotos, sujos, decrépitos. Serviam para o acompanhamento dos defuntos ao cemitério de Santo Amaro. Uma verdadeira decadência. Até os boleeiros foram perdendo a elegância dos trajes e substituíam os chapéus altos por feltros ordinários e ruços.

67 Rezende; Antônio Paulo. (Des)Encantos Modernos: histórias da Cidade do Recife na década de XX. Recife: FUNDARPE, 1997. p.59

O automóvel varreu tudo. Cupês, landôs, berlindas, vitórias e cabriolés. Nem mesmo os carros fúnebres escaparam. Hoje, o próprio morto vai para a cova a trinta quilômetros a hora68.

Os bondes elétricos se tornaram mais presentes na vida e paisagem urbana. A cidade “vivia” sem a lentidão dos passos e empacos das mulas69 (os bondes elétricos chegaram ao Recife em 191470); nestes “Tempos modernos” do Recife, presenciou-se a derrubada de “velhos símbolos71” e a introdução de novas e variadas “tendências arquitetônicas”:

Os “vilinos” à italiana que estão a encher os novos bairros elegantes do Recife e até a invadir, em lamentável intrusão, os velhos, acusam sempre essa insuficiência. Essa diminuição em face à “escala humana”. É assim que seus terraços são de um espaço evidentemente calculado para o conforto de liliputianos72.

Para os homens e mulheres já maduros e aos apegados aos costumes eram mudanças ou até deformações; para muitos jovens eram seus próprios hábitos, suas modas; para os entusiastas da modernidade eram os avanços e progressos, conquistas de utilidade, praticidade e racionalidade. É do confronto de percepções diversas e até contrárias que se fará o elogio e o degredo ao novo e ao antigo de forma indissociável. O confronto seguirá e segue ainda nos nossos dias, o novo cada vez mais rápido e presente e o velho e antigo, sempre raro, cada vez mais valorizado.

68 SETTE, Mario. Maxambombas e maracatus. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1958. p. 175-180.

69 op. cit. p. 61-74. 70 op. cit. p. 214 71

Os Arcos da Conceição e de Santo Antônio foram derrubados em 1917. Nas décadas de 1920 e 1930, a arquitetura dos casarões “patriarcais” será substituída por uma “nova arquitetura moderna”.

72 FREYRE, Gilberto. Tempo de Aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e na primeira mocidade do autor (1918-1926). MELO, José Antônio Gonsalves de (org.). São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979. v. 2, p. 204- 205 – Os liliputianos são personagens, de estatura diminuta (cabem na palma da mão de um homem), do livro –

O ponto que nos interessa é que através dos textos de Freyre (explicitamente) e Mário Sette (indiretamente) se afirmará uma imagem negativa das mudanças e da “modernidade” implantada. Estas novidades, que mudavam as faces da cidade, passaram a ligar-se a representações do “não tradicional”, “não original” e do “inautêntico”. Mesmo coexistindo com um forte discurso de elogio e exaltação à modernidade, os discursos alinhados às idéias de Freyre alimentavam uma noção de instabilidade frente aos tempos vindouros e faziam das coisas do passado, artigos de primeira necessidade:

Os que ainda meninos, conheceram o Recife da lingüeta, do Arco de Santo Antônio, dos quiosques e das gameleiras, vamos experimentando sensação igual quanto à paisagem física. Parece que temos vivido em duas cidades diferentes. É uma angústia para as criaturas sensíveis viver nessas épocas de aguda transição. Vêem-se, afinal, numa cidade que lhes parece estrangeira73.

Ao passo que “modernistas” apontavam vantagens nas mudanças e encontravam a estabilidade no mudar pois, tudo sempre muda, ou como talvez preferisse Inojosa, “evolui” (na literatura: Barroco, Arcadismo, Romantismo, Realismo, Naturalismo, Parnasianismo...).

De maneira direta, para Freyre, temos uma cidade que se perdeu, que não existe mais - a reforma do porto fez da lingüeta uma ilha, para o fluxo livre dos veículos os arcos foram ao chão. A outra cidade, na qual se sentem estrangeiras as criaturas sensíveis, é marcada e descrita justamente, através da perda. Ela é a cidade sem gameleiras, sem lingüeta nem arco. Estes elementos que compunham um conjunto estável, estavam inseridos no campo do comum e trivial devido à suas presenças concretas e constantes no cotidiano diário da cidade. Na medida em que são subtraídos aos quadros da estabilidade tornam-se símbolos de uma imagem “perdida” de cidade. A ausência do objeto passa a significar aquele conjunto (Recife) que foi alterado. A

estabilidade, aqui, aparece apenas indiretamente, como forma de combate ao mal da transição, à angustia.

A concepção evolucionista linear que fundamentava as noções de história e tempo, ainda em voga naquela época (1920 – 1930), por um lado, tem como um de seus resultados a formulação de um sentimento de perda, ou seja, na medida em que avançamos no “caminho da história” vamos deixando coisas para traz que vão sendo apagadas e esquecidas. Por outro lado, a forma evolucionista linear da história concorre para uma aceitação das mudanças como parte intrínseca ao caminhar histórico,

Mas, construir, é destruir.

Destruir o que é inútil. Construir o que é útil. E o inútil de hoje, foi sempre útil ontem. É possível que muito do que construirmos venha a ser inútil amanhã. Contra essa lei da evolução não há reação possível74

Que nos digam estudiosos dos mitos e dos rituais mas, em algum momento os homens decidiram que certas coisas não deveriam ser esquecidas, daí a primeira noção de monumento, um combate às perdas do esquecimento75. Neste contexto é que a noção de perda se torna tão importante para o patrimônio pois, é na ausência que identificamos e atribuímos valores e é para evitá-la que se preserva e restaura os “monumentos”.

No corpus discursivo que contemplei, trabalhei com os estereótipos da “modernidade” e de seus entusiastas mais radicais76, os quais Freyre apresenta em seus textos. Mas é preciso deixar

74 INOJOSA, Joaquim. Tradição e tradicionalistas. In: ______. O movimento modernista em Pernambuco. Guanabara, RJ: Gráfica Tupy Editora, [19--]. v. 2, p.124

75 “O sentido original do termo monumento é o do latim monumentum, que por sua vez deriva de monere (“advertir”, “lembrar”), aquilo que traz à lembrança alguma coisa”. CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. 1ª

reimpressão. - São Paulo: Editora UNESP, 2001. p. 19

76 Nos textos de Freyre que analisamos, ele explicita que uma (forma de) modernidade está sendo implantada em Pernambuco e no Brasil. E é contra esta forma específica de modernidade e contra seus defensores que o autor se opõe. O autor também quer nos levar a crer que havia uma oposição e um confronto ardoroso entre estes modernistas (da velocidade, das avenidas retas, etc.) e os modernistas como ele (modernista conservador ou conservador

claro que o próprio Gilberto Freyre se diz moderno. A força que envolvia palavras como

modernidade e progresso era grande demais para que, mesmo o mais “conservador”, quisesse ou

pudesse despir-se inteiramente de tais “valores”. Assim, no que Freyre quer deixar transparecer, não se trataria de um embate em que se recusasse a “modernidade” mas, tratava-se de propostas diferentes de progresso e modernização que colidiam.

Neste sentido, dentro do próprio discurso freyriano, há a construção das trocas de acusações. Enquanto “entusiastas da modernidade” acusavam de conservadorismo e de serem retrógrados os ditos “conservadores”, os “modernos apegados à tradição, aos valores históricos e à identidade pernambucana” acusavam os primeiros de serem levianos e cegos para a beleza, para o valor e para as lições que a história e a tradição podiam lhes ensinar.

Seja o futuro a preocupação verdadeira e única. Que lhe importa o prédio antigo se não preenche as exigências dos modernos princípios de higiene? A Obra de benefício resume-se em condená-lo para que em substituição, se construa edifício novo77.

Dentro, ainda, dos textos de Freyre temos que uma proposta de modernidade é aquela importada à “taxa de 90%” sem vínculos com a boa moral ou a “natureza” da gente brasileira78. Ele não esconde sua predileção pela Europa enquanto exemplo de civilização em detrimento dos Estados Unidos. É olhando para o velho mundo (Com exceção à Suíça e Finlândia: “à Suissa o mundo só é devedor de relógios, latas de leite condensado, Jean Jacques Rousseau (...) e queijos”

77 INOJOSA, Joaquim. O movimento modernista em Pernambuco. Guanabara, RJ: Gráfica Tupy Editora, [19--]. v. 2, p.75

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FREYRE, Gilberto. Tempo de Aprendiz: artigos publicados em jornais na adolescência e na primeira mocidade do autor (1918-1926). MELO, José Antônio Gonsalves de (org.). São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979. v.1, p.342- 343 – Freyre critica a “estética ou uma ordem política adquirida” pois não haveria ligação com a “cultura nacional”. Quando ele usa a expressão “empréstimo a 90%” nos remete às importações dos produtos e de um “novo estilo de vida” e os custos, financeiros e sócio-culturais, de tal operação bem como às propostas artísticas e estéticas dos “modernistas / futuristas” do Brasil.

e à Finlândia, material para uma caricatura de Eça de Queiroz79”) que ele pensa o outro ideal de modernidade que deveria levar o país ao desenvolvimento, entretanto, com refino e nobreza, sem perder as notas tropicais à brasileira. Em outras palavras, uma conciliação entre conservadorismo e modernismo. Tal conciliação nos discursos freyrianos seria expressa num chamado modernismo regionalista.

A “modernidade” e o “progresso” seguem com suas inovações técnicas mesmo porque se trata de uma questão ampla posta para a “nação”. Se o progresso, inclusive pelo valor semântico que assume na época não pode ser criticado ou detido (o progresso é o avanço, a marcha civilizadora do país, é o próprio decorrer da história – “o inescapável”), as oposições residirão na dimensão da “ordem”. Na leitura do discurso freyriano, dependendo do modelo de “modernização” adotado (o que se filia à tradição e não esquece sua história, ou aquele sedento de novidade e de constantes mudanças) ter-se-ia um país ordeiro (como os dos nossos pais e avós) ou desordeiro (com a família e a juventude desajustadas).

É curioso notar que nos discursos freyrianos as categorias patrimonializantes remetem sempre a um passado desejado e admirado. Mesmo quando Freyre fala de uma estética para o presente e futuro, para que ela seja brasileira é necessário que esteja alicerçada e ancorada naquele tempo (senhorial, patriarcal, colonial):

Contra este passado imediato (referindo-se ao período republicano) de mau gosto e estreito utilitarismo é que a nova gente do Brasil precisa reagir, aliada com o Grande Passado brasileiro. Aliada com o Grande Passado brasileiro, rico de sugestões a desenvolver nos esforços criadores de hoje.

E aos que desejamos um Pernambuco que se renove pernambucanamente dentro do espírito do seu passado vivamente romântico e das sugestões de sua

79 FREYRE, Gilberto. artigo 3. Diário de Pernambuco. Recife, 06 mai. 1923. Neste artigo, a defesa da tradição leva o autor a defender a utilidade do analfabetismo no processo de conservação das tradições.

paisagem, deliciosamente tropical – animam-nos de um vivo prazer esforços como os dos Amaurys de Medeiros80.