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A inserção no campo da pesquisa é fundamental para a construção das informações. Richardson (2012) ressalta a importância da seleção do local adequado para a realização da pesquisa. A escolha do Centro Pop como locus desse estudo considerou a relação das pessoas em situação de rua em Maracanaú com o território e suas mobilidades. Esta é a única instituição no universo público e privado que se destina especificamente a pessoas em situação de rua, e já se constitui como referência para a população atendida, além de ter organizadas informações sobre cada uma dessas pessoas, ademais foi considerada a facilidade de contato e acesso, tendo em vista minha vinculação institucional. Nesta acepção, é preciso ter em conta o fato de estar no contexto institucional da oferta de serviços socioassistenciais,

7 O aluguel social é um benefício social vinculado /à política de habitação destinado ás pessoas que vivem em áreas de risco ou que tenham perdido moradia por ocorrência de calamidades.

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fazendo-me presente no cotidiano das pessoas que frequentam o Centro Pop, já que exerço o papel de coordenadora deste equipamento social, embora seja relevante ponderar que minha atuação neste espaço, ao tempo das entrevistas tinha pouco mais de um ano e, por conseguinte, ainda sou para muitos usuários alvo de observação e análise.

Ao mesmo tempo é importante perceber que este é um lugar que à despeito da presença profissional precisou ser construído como espaço de investigação, e no qual assumi outro papel, o de pesquisadora. A confluência desses dois papéis se configurou tanto como um desafio, quanto uma oportunidade, visto que minha imagem está associada a uma função institucional, que pode remeter a uma hierarquia diante das mulheres pesquisadas e isso atravessar tanto a participação como o conteúdo das narrativas das mulheres entrevistadas, mas também me desloca do papel de pesquisador estrangeiro que adentra o campo de pesquisa tomado pelo estranhamento. De modo que me coloquei como provocação e incitamento a presença dicotômica de manter um olhar de novidade e alheio, para perceber o novo em cada fato e cada existência, quando eu mesma sou parte do cenário habitual. Assim, é importante reconhecer que ao exercer minhas atividades profissionais no Centro Pop tenho a oportunidade de estar inserida num cenário familiar às mulheres ali atendidas. Cruz Neto (2010) destaca a preponderância de se estabelecer uma relação de respeito efetivo tanto pelas pessoas, quanto pelas situações que ocorrem na comunidade estudada. Esta condição na qual estou imersa, me possibilita reconhecer elementos sociais e simbólicos próprios do universo das ruas, o que contribui para manter essa relação de respeito e cuidado com as histórias e processos que se desenvolvem no cotidiano das mulheres pesquisadas.

Uma preocupação que figurou como aspecto a ser considerado foi a disponibilidade das mulheres, pois além de estarem em menor número nas atividades cotidianas do Centro Pop, elas se mostravam menos participativas. A mesma impressão foi atestada por Pinto (2015) que em pesquisa realizada com pessoas em situação de rua em Maracanaú, observou que as mulheres se envolviam muito menos nas atividades. Por saber que objetivos da pesquisa impõem que fosse propiciado o diálogo mais aberto possível com as mulheres, já que o interesse deste estudo diz respeito a vida delas, o temor da recusa na participação se fez presente nos contatos com as primeiras participantes.

Me propus a construir um espaço onde fosse oportunizado um diálogo em que o cotidiano das mulheres pudesse ser evidenciado, onde suas histórias, seus desejos, medos, desafios e potencialidades sejam pontos a serem pensados e sejam postos em cena, não apenas como informação para uma pesquisa, mas que sejam eles mesmos objetos de reflexão das mulheres, e contribuam com suas estratégias de enfrentamento a situações que se apresentam

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como opressoras.

Uma vez que esta pesquisa se debruçou sobre a compreensão os modos de vida das mulheres em situação de rua em Maracanaú, a entrevista foi selecionada como oportunidade para acessar o cotidiano dessas mulheres e seus atravessamentos, que em um todo compõe os seus modos de vida. Esta técnica, segundo Gaskell (2002), permite o surgimento de informações que contribuam para compreender as relações das pessoas investigadas com sua situação. Sob este prisma, a entrevista poderá ampliar as condições para a apreensão dos modos de vida das mulheres em situação de rua, com todos os enfrentamentos que lhes são necessários. Para May (2004) as entrevistas possibilitam de maneira rica a compreensão das experiências, dos valores opiniões, sonhos e até sentimentos, e havendo modelos diferentes de entrevistas, é necessário alinhar o modelo escolhido com os seus objetivos.

A entrevista, enquanto um procedimento técnico se distancia da conversa despretenciosa, uma vez que está focalizada na construção de informações específicas da realidade das participantes (MINAYO, 2010), assim em consonância com os objetivos desta pesquisa, utilizei a entrevista em profundidade ou semiestruturada. Triviños (2013) destaca como fatores positivos deste modelo de entrevista ela valoriza a presença do pesquisador e ao mesmo tempo abre perspectivas para que a pessoa entrevistada tenha liberdade e espontaneidade, de forma a enriquecer o processo investigativo. Neste modelo de entreviste foi seguido um roteiro de entrevistas que priorizou 3 grandes categorias: 1) modos de vida; 2) estigmas e preconceitos; 3) modos de enfrentamento.

Assim, o convite à participação foi feito às mulheres durante os momentos em que estavam no Centro Pop, a ida delas muitas vezes é motivada pelo acesso para realização das atividades complementares (lanche, lavagem de roupa ou banho), bem como para atendimentos particularizados ou coletivos, e enquanto estavam ociosas ou aguardando foram convidadas à participação na pesquisa. Algumas mulheres frequentam o Centro Pop com regularidade e já me conhecem como coordenadora desta unidade de atendimento, de modo que este contato do dia a dia facilitou a aproximação com as mulheres. Um passo importante foi apresentar para elas o propósito da pesquisa, deixando-as livre para recusarem a participação. Este passo é ressaltado por Cozby (2011), que sugere que sejam prestadas as informações que permitam às pessoas convidadas a ter os elementos que importem na decisão de participar ou não do processo. Apenas uma das mulheres convidadas recusou a participação, pois informou não ter tempo. Além disso uma outra mulher se mostrou bastante disponível, porém em decorrência de disputas territoriais e ameaças não foi possível manter a realização da entrevista nem no Centro Pop e nem no seu território de referência.

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Ao longo do processo de construção das informações foram feitas algumas tentativas de realizar entrevistas com as mulheres em espaços diferentes do Centro Pop, por duas vezes fui até a região central da cidade na tentativa de entrevistar uma antiga frequentadora do Centro Pop que vive na rua há algum tempo com o companheiro, mas que não vinha frequentando os serviços na instituição desde que o Centro Pop mudou de endereço. Nas duas ocasiões ela estava sob forte efeito de álcool não tendo sido possível realizar a entrevista. Em outras duas ocasiões questões de dinâmica do território e conflitos ocorridos no espaço da rua fizeram com que as mulheres com quem me propunha a dialogar tivessem que sair dos espaços que ocupavam, numa destas ocasiões fui interpelada por um dos rapazes que frequenta o Centro Pop a não ir para o local da entrevista. Esse cuidado é importante não apenas como fator de proteção da pesquisadora, mas também das mulheres que estando no espaço da rua estão sujeitas ao escrutínio de agentes de segurança e das regras imposta pelo tráfico e pelas facções que operam numa relação de domínio de alguns territórios. O compromisso ético com a pesquisa se faz presente na análise de como as ações de investigação podem expor essas mulheres.

Todas as entrevistas foram realizadas no Centro Pop no período de setembro a novembro de 2018. Para seleção a definição da amostra, isto é, do número de mulheres entrevistadas, considerei o critério de saturação, que, de acordo com Nascimento et al (2018), ocorre quando numa construção de dados não se apresentarem mais elementos novos que repercutem na compreensão do fenômeno estudado. De modo que e esse processo contemplou a participação de 7 mulheres para as quais previamente foi lido o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e assinado, em seguida entrevistadas individualmente em datas diferentes que seguiram o ritmo das movimentações próprias da frequência ao Centro Pop, o que diz respeito tanto a ida delas a esta unidade, como o fluxo do Centro Pop, que neste período sofreu mudança de prédio, situação que favoreceu mudanças na sua dinâmica e impactando na frequências das pessoas atendidas.

O roteiro para as entrevistas foi construído com vistas a orientar o processo e possibilitar o espaço para que ocorra a fala, bem como que as mulheres pudessem apresentar suas narrativas mantendo uma liberdade expressiva, e para tanto foram formulados alguns questionamentos básicos que tem uma finalidade indutora, e que se apoiaram nas construções teóricas que são respaldadas em pesquisas anteriores, bem como do processo de observação do cotidiano e estão alinhadas aos objetivos de pesquisa. Triviños (2013) alerta que se a pessoa entrevistada tem a possibilidade de seguir espontaneamente para expor suas experiências, cabe ao investigador dar as condições para que se mantenha um foco principal,

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de forma que as entrevistadas participam da elaboração do conteúdo da ´pesquisa. Esta concepção coaduna com a metodologia feminista, onde a mulher não é alvo ou objeto de investigação, mas é parte da dinâmica de pesquisa e produz o conhecimento ao lado da pesquisadora.

Para atingir aos objetivos propostos, o roteiro estruturou as perguntas indutoras em três eixos, o primeiro diz respeito, mais especificamente aos modos de vida, visa conhecer as experiências das mulheres nas ruas, o segundo concentra-se principalmente nos estigmas e preconceitos vividos pelas mulheres, e o terceiro aborda os seus processos de enfrentamento, e ao final traz um relato de uma situação vivenciada por uma personagem na rua para que as entrevistadas digam o que pensam a respeito. Para a construção desta história foram consideradas os fragmentos de acontecimentos que algumas mulheres apresentavam durante as atividades coletivas do Centro Pop e em relatos de experiências de pesquisas com mulheres em situação de rua. Esta estratégia foi bastante potente para a produção de narrativas, pois foi verificado um processo de identificação diante de uma situação concreta.

As narrativas que trouxeram à tona fatos e rotinas cotidianas, a trajetória e o sentido dado às mulheres para a vivência de rua, suas relações com os grupos da rua, com a família, com as instituições, bem como os processos opressivos vivenciados e suas estratégias de resistências. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. A entrevista semi- estruturada possibilitou respeitar a temporalidade de cada uma das mulheres, visto que foi percebido uma variação tanto na forma como no tempo que cada uma precisava para apresentar suas narrativas.

Considero que assim como o meu engajamento com o Centro Pop na qualidade de atuação profissional contribuiu para o processo de investigação, me aproximando dos fatos do cotidiano de quem está nas ruas, e da própria linguagem adotada, além de conhecer algumas regras deste universo, percebi que o processo de pesquisa também trouxe repercussões no meu trabalho, já que com todas as mulheres entrevistadas houve uma maior vinculação após a realização das entrevistas, e isso abriu espaço para o encaminhamento de algumas demandas relativas às suas necessidades e projetos de vida.