• Nenhum resultado encontrado

O universo de limites e possibilidades em que estão encartadas as pessoas em situação de rua impõe que se faça uma aproximação entre elas e o universo de relações que estabelecem com a rua desde o espaço físico ao lugar simbólico. Assim, as experiências das mulheres que vivem em contexto de rua vão tecendo os significados que envolvem o território onde constroem e dão sentido à própria história, à rede de relações que moldam as estratégias de sobrevivência, e compõe seu modo de existir e resistir. As trajetórias dos indivíduos, cada uma com sua peculiaridade, são para Rodolpho (2013), o meio de vinculação com a cidade.

“Há, portanto, um movimento dialético: o sujeito desenvolve modos de se relacionar a partir da realidade a ele apresentada, ao passo que também a modifica segundo suas necessidades. As estratégias potenciais de resistência e luta se manifestam, então, no curso da vida dos sujeitos” (CIDADE, 2012, p. 67)

Por compreender que os movimentos cotidianos e estratégias de sobrevivência tem um papel significativo para a população que vive nas ruas, elegeu-se a perspectiva de estudo dos modos de vida de maneira que seja possível transcender o conceito estático onde são assinalados padrões de comportamento, e avance na direção de uma abordagem que permita incorporar o campo das relações na dinâmica do cotidiano. Para isso lançou-se mão das contribuições de autores de áreas diferentes de conhecimento, mas que tem nos modos de vida o cerne de seus estudos.

A partir da análise dos modos de vida de trabalhadores fabris do interior do Ceará, Borsoi (2005) enfatiza a forma como os indivíduos conduzem seu cotidiano na constituição de modos de vida, assinalando a relação entre as atividades laborais diárias e os papeis sociais delas decorrentes como constituintes do redimensionamento de hábitos, valores e relações sociais e afetivas, desta forma, a atividade profissional desenvolvida desenha um conjunto de

44

relações que sustentam modos de vida. Nesta perspectiva, o cotidiano emerge de maneira central para que seja possível apreender os modos de vida.

Para evidenciar este conceito, tomamos como referência Certeau (1996), para quem o indivíduo se organiza a partir de relações sociais, somente sendo possível acessá-lo por meio de suas práticas sociais. Práticas cotidianas, implicam em modos de ação que se exprimem em operações realizadas no processo de interação social, e o cotidiano é o conjunto de operações singulares capazes de definir uma sociedade e um indivíduo.

Sauer (1995) detém o olhar sobre as práticas capazes de assegurar existência, e embora esta ideia possa estar vinculada ao exercício de atividades laborais apontados por Borsoi (2005), sua abordagem remete a formação de hábito, enquanto prática que se repete, todavia sua contribuição está em introduzir o elemento coletividade como componente essencial da constituição de modos de vida. Para este autor a formação e a consolidação de modos de vida só é possível se considerado o coletivo.

Como realçado por Silva (2006), pelo prisma marxiano os modos de vida se constituem na interação entre os modos de produção e os aspectos culturais da sociedade, de maneira que os costumes de um grupo são forjados no contexto em que organizam a reprodução dos meios para sobrevivência, porém não se restringem à reprodução da existência física das pessoas, pois abrange as formações culturais e seus sentidos. Sob essa ótica o modo de produção, ou seja, o que produz e como produz, é capaz de construir e exprimir modos de vida.

Em pesquisa realizada com pessoas em situação de rua, Kunz, Heckert e Carvalho (2014), exploram a construção dos modos de vida deste segmento, e ponderam sobre a dimensão ética e os valores morais que orientam práticas cotidianas. Bourdier (1996) coaduna com a ideia de ocupação do espaço ou territorialização, e utiliza o termo estilos de vida, do qual o habitus, como princípio unificador de práticas, é componente. Estes são termos centrais para que se entenda os modos/estilos de vida de forma ampliada, na qual é possibilitado o contato com essa abordagem mais abrangente, que vislumbra particularidades materiais e simbólicas.

As práticas e as propriedades constituem uma expressão sistemática das condições de existência (aquilo que chamamos estilo de vida) porque são o produto do mesmo operador prático, o habitus, sistema de disposições duráveis e transponíveis que exprime, sob a forma de preferências sistemáticas as necessidades objetivas das quais é o produto: a correspondência que se observa entre o espaço das posições sociais e o espaço dos estilos de vida resulta do fato de que condições semelhantes produzem habitus substituíveis que engendram, por sua vez, segundo sua lógica específica, práticas infinitamente diversas e imprevisíveis, mas sempre encerradas nos limites inerentes às condições objetivas das quais elas são o produto e às quais elas estão objetivamente adaptadas. (BOURDIER, 1996, p. 82)

45

A relação com o território identifica maneiras diversas de viver a rua, cada espaço percorrido tem um significado e uma motivação, o trânsito entre os pontos onde é possível manter a segurança e obter os meios de sobrevivência vão conduzindo a ocupação dos territórios. De acordo com Santos (2007), os deslocamentos constituem os modos de vida da população em situação de rua, para Kunz, Eckert e Carvalho (2014) os trajetos construídos derivam de redes de suporte que contribuam para satisfação de necessidades, muito mais que em razão de um padrão geográfico. Estes deslocamentos podem ser dentro de um mesmo território, como é o caso de pessoas que vivem nas ruas de Maracanaú, e que no momento em que não tem acesso a alguns serviços públicos permanecem na Lagoa, onde podem tomar banho, pescar, e ainda utilizar o espaço para o lazer, como podem envolver outras unidades territoriais.

É tanto que eu vim pra banda de cá, eu ficava mais era no Centro8, quem me trouxe foi uma amiga minha pra cá (...)e não só aqui, lá no Centro também, que eu ando aqui e eu ando no Centro, sabe, também, porque eu num fico só aqui aqui não, vou pro Centro também, pego o metrô e vou. (ELZA, E6)

Elza é exemplo de como a mobilidade das pessoas em situação de rua é conduzida pelo atendimento de necessidades, seja em virtude da obtenção de recursos capazes de garantir o suprimento de demandas relativa à fome, sono, higiene, além dos relacionamentos afetivos, ou mesmo em razão da manutenção de proteção e segurança. A ênfase dada por Tiene (2004) concentra-se na mobilidade espacial que se organiza em função das relações interpessoais, explica que as relações estabelecidas no contexto das ruas não dispõe do padrão de definitividade e podem se estabelecer e se refazer com certa rapidez, e isso faz com que hajam deslocamentos baseados nas novas relações que se formam. Escorel (1999) ressalta o papel da rede socioassistencial enquanto contribuição para a sobrevivência das pessoas que vivem nas ruas, visto que são as maiores responsáveis por oportunizar a obtenção de alimentos, roupas e até facilitação para o acesso a determinados direitos, de maneira que o roteiro diário é construído em função destas aquisições, e demarca a apropriação territorial.

Em Maracanaú, a Central de Abastecimentos do Ceará – CEASA é um ponto para onde convergem trajetórias de pessoas em situação de rua na busca de alimentos e trabalho, mas, em razão da atuação dos seguranças do local, poucos são os que pernoitam neste espaço. O convívio com a CEASA incide igualmente na organização da temporalidade daqueles que sobrevivem dela e de seu entorno, já que os horários de funcionamento, que começam durante

8Ao mencionar o Centro a entrevistada se refere ao Centro da Cidade de Fortaleza, onde há uma concentração de pessoas em situação de rua.

46

a madrugada por volta de duas horas da manhã e findam em torno de quatorze horas, regulam o sono e os horários de alimentação das pessoas. É comum que algumas pessoas que frequentam o Centro Pop de Maracanaú, mesmo considerando a distância9, frequentem a CEASA, pois há oportunidades de trabalho e facilidade para se alimentar, embora não ofereça as condições para outras aquisições como o sono e a manutenção da higiene, e relatam o seu cotidiano permeado pela organização daquele espaço.

Assim, é possível compreender, como discutido por Silva (2006) que quando um indivíduo se identifica com um determinado espaço irá ocorrer a territorialização de seu modo de vida, e define território como um espaço que pode ser natural ou humanizado que é delimitado pelo uso e pelas relações de poder que se estabelecem ali, de sorte que se confirma que o modo de vida não é algo imutável, ao contrário, sempre que as necessidades sociais mudam, se alteram os modos de vida. Isto reforça a ideia de que os modos de vida da população em situação de rua não se constroem com base na repetição de hábitos, mas na complexidade das estratégias de sobrevivência.

Num esforço de conciliar as contribuições dos diferentes autores de modo que atenda a necessidade da maior aproximação possível da realidade das pessoas que vivem nas ruas, neste trabalho compreende-se que é por meio do cotidiano, que se permite alguma apreensão dos modos de vida da população em situação de rua, abrangendo tanto aspectos de práticas vinculadas a existência, como os aspectos vinculados aos significados atribuídos a tais práticas. Esta tarefa, entretanto, não possui o intento de unificar ou massificar as pessoas que habitam a rua, pois como visto a heterogeneidade é uma marca deste segmento. Respeita a singularidade das experiências vividas, e pretende conhecer suas práticas cotidianas.

A instabilidade se reflete no dia a dia de quem sobrevive nas e das ruas, fazendo o aqui e o agora ser o tempo da urgência e o lugar seja o do abrigo, que pode variar em razão de circunstâncias alheias à sua vontade. Costa et al. (2015) referem-se à uma luta diária pela sobrevivência, o que levaria a obstacularizar a transformação de desejos em projetos de vida. A sobrevivência nas ruas diz respeito a satisfação de necessidades básicas, que seriam definidas pelo “mínimo necessário para manter-se com vida” (ESCOREL, 1999, p. 221).

Os modos de vida da população em situação de rua são entremeados pelas estratégias de sobrevivência a realidade diária. Num ambiente de opressão, ficam evidenciadas a resistência e a criatividade destas pessoas que cotidianamente reinventam a si, ao espaço, às relações e seus significados.

47