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3 MACACO BRANCO: TERRITÓRIO DE RESISTÊNCIA

3.2 DESLOCAMENTOS: O CAMINHAR NO CORAÇÃO DA COMUNIDADE

3.3.1 Construção de feminilidades e masculinidades

Os papéis de gênero vão sendo moldados desde a infância, e a forma como a comunidade expõe meninos e meninas a diferentes lugares no mundo pode ser entendida como uma resposta à configuração social em que vive. Assim, podemos entender o direcionamento das meninas e mulheres ao cuidado. Prepará-las para as tarefas de cuidado resulta na divisão de gênero que aloca as mulheres no trabalho reprodutivo, mas é também uma consequência desta divisão patriarcal que assegura aos homens o lugar público e a possibilidade de circular com legitimidade fora do espaço doméstico. Para as meninas, a circulação na rua é mais arriscada, não porque elas sejam mais frágeis, mas porque o patriarcado engendra uma série de posturas violentas que atacam prioritariamente os corpos femininos. Então, desde pequenas as meninas precisam ser mais cuidadas, pois correm maiores riscos. E, sendo cuidadas, vão aprendendo a cuidar, de si e dos outros.

É assim que vão se construindo feminilidades e masculinidades que diferenciam mulheres e homens. Os meninos vão circulando mais pelo território, pois podem andar sozinhos. As mães iniciam os filhos no trabalho doméstico, mas eles estão menos tempo em casa e, na rua, aprendem a territorialidade masculina, pautada numa lógica mais pública. As meninas passam mais tempo em casa e, ao se deslocarem, o fazem em bandos, que oferecem mais segurança. Os bandos são também uma forma de cuidado mútuo que as meninas experienciam, o que produz uma territorialidade feminina baseada na coletividade.

Fonte: acervo da autora

Quando conheci a Vó Dica, uma das anciãs da comunidade, senti a força desta coletividade que se produz entrelaçada ao cuidado. Chegando na pequena casa de madeira num fim de tarde de sábado em abril de 2018, encontrei o lugar cheio de mulheres. Ela estava no quarto e, quando a trouxeram para a sala na cadeira de rodas, a filha Bitica disse: “Essa é a nossa velhinha”. Era como se estivessem mostrando um tesouro da família. Usava um terno azul que dava continuidade ao contorno anil dos olhos em seus 84 anos. As mãos negras cruzadas sobre o colo, grandes e fortes, davam dimensão do quanto tinham trabalhado. Ao redor dela, as filhas e as netas que se revezam para cuidá-la agora que estava com a saúde comprometida.

Já com alguma dificuldade para falar, Dona Judite Caetano, a Vó Dica, fez questão de relembrar a jornada de vida no território quilombola: “Eu trabalhei a vida toda e nunca deixei meus filhos sozinhos. Essa é a minha nenê, disse apontando para a filha Bitica. Ela tinha quatro anos quando o pai dela morreu”. Voltando para

casa com a Juliana, que tinha me levado até o Morro, onde vive a família Caetano, ela observou a reciprocidade do cuidado ao longo da vida: “A Dica sempre cuidou dos filhos, e agora as filhas estão tudo em roda cuidando ela. Eu chego a me emocionar de ver isso”.

É interessante observar que são as filhas e netas que desprendem esse cuidado com as pessoas mais velhas. São as mulheres que se encarregam do trabalho reprodutivo na comunidade através das gerações. Ainda crianças, vão sendo cuidadas e aprendem a cuidar, tanto dos pequenos quanto dos idosos. E há formas especiais de organizar estes cuidados: muitas das avós da comunidade, algumas já bisavós, moram com uma de suas netas. Ou melhor, uma das netas vai morar com a avó. É uma forma de resolver a necessidade das jovens de sair da casa dos pais, ao mesmo tempo em que as avós ganham companhia, afeto, presença. E, às vezes, bisnetos também, trazendo de volta o movimento das casas antes povoadas pelos filhos.

Por outro lado, os homens, que também recebem cuidados ao longo da vida, vão sendo preparados para uma experiência pública no ambiente externo às casas. A visita à Vó Dica deu dimensão desta divisão entre os gêneros. A sala de sua casa contava com umas dez mulheres e apenas um homem, um de seus filhos. Era sábado e as mulheres se reuniam numa das casas da família para estar juntas. Já os homens estavam em outro lugar. Quando voltamos para a casa da Juliana, passamos em frente a um bar, onde se reuniam muitos homens e umas poucas mulheres. Era sábado à noite, e os homens se reuniam no bar para estar juntos. De diferentes formas, homens e mulheres vão produzindo uma experiência no território que é perpassada pela coletividade.

Se as mulheres produzem a coletividade no cotidiano, no trabalho de cuidado, no compartilhamento da comida e do afeto diário, a sociabilidade masculina produz outro tipo de comunitarismo. Os jogos de futebol, os bares e os ambientes festivos são grandes momentos do relacionamento masculino. No último ano, houve um caso de violência na comunidade em que os homens conduziram uma forma de se organizar coletivamente nos seus espaços de sociabilidade e demarcar uma forma de proteção ao território da comunidade.

Uma menina quilombola sofreu abuso sexual de um homem que frequentava a comunidade. Como se não bastasse, enquanto o sistema judiciário encaminhava a questão, o sujeito continuou a participar de festas da região onde os quilombolas

estavam presentes. Frente a isso, os homens da comunidade agiram conforme um “senso local de justiça” (ANJOS, 2004, p.16). Quando o viam, não descansavam enquanto não o expulsavam do ambiente. Reuniam-se em bandos e constrangiam o homem aconselhando-o a não aparecer mais no território, pois eles não aceitariam sua presença, e insistiam até que ele abandonava os espaços de convivência onde estava acostumado a circular. Diferente de qualquer deliberação coletiva no sentido mais convencional, essa foi uma forma de os homens se articularam de maneira autônoma, sincronizando um modo de conceber a vida em atitudes que se tornam coletivas na defesa do território.

Semelhantes movimentos acontecem em alguns casos de violência na comunidade: de conversa em conversa, todo mundo fica sabendo o que acontece no território e algumas pessoas vão interferindo. A partir de agenciamentos individuais baseados em um senso de comunidade, vão se construindo formas de agir em defesa da coletividade. Ainda assim, nem tudo se resolve. Há questões abertas que seguem a machucar os corpos.