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4 ENUNCIAÇÕES DE VIDAS FEMININAS: QUANDO O CAMPO

4.1 AS HISTÓRIAS QUE PRECISAM SER CONTADAS

4.1.3 Jenifer: e como dizer que não é só isso?

Em meio à descrição sobre as dificuldades que as mulheres vivenciam no cotidiano, sinto uma urgência em marcar que a vida é mais do que isso. No tempo em que estive na comunidade, aconteceu muito mais do que eu consegui perceber, e ainda mais do que sou capaz de descrever nos limites da textualidade escrita. De todo modo, insisto em diversificar os caminhos narrativos no sentido de pincelar as múltiplas arenas em que se desdobra a vida comunitária e as diferentes relações que se construíram no tempo da pesquisa.

Quero falar da potência de estar no quilombo e de como a vida se transforma com a experiência no território. Na segunda vez que fui a campo e passei dez dias com a comunidade, voltei para casa soprando, fazendo barulhos com a boca, dando bons suspiros. As pessoas por perto estranharam. No quilombo, a área aberta, o mato, a estrada, tudo tão integrado que nem se percebiam os pequenos sons do corpo. No espaço fechado da cidade, os sons se multiplicaram. Quando estava lá, não percebi que minhas expressões corporais estavam se soltando. Foi quando voltei para casa – e para o imaginário de um corpo mais controlado que se produz

nos centros urbanos – que eu notei a diferença. Na comunidade, há menos pessoas e menos impessoalidades, gerando uma convivência visceral. As corporalidades têm mais espaço para se manifestar.

E preciso também falar da tranquilidade, do silêncio e da imensidão no alto dos morros, de onde se avista a Serra Gaúcha. Foi quando me resfriei, depois de uma chuva de fevereiro, que descobri a localização geográfica da comunidade. “Aqui é pé de serra. Não é como Porto Alegre. Aqui, quando chove, esfria.”, disseram-me.

Fonte: acervo da autora

A distância em relação a Porto Alegre é de menos de 50 quilômetros, e eu realmente não esperava que o clima fosse diferente. Foi um vento frio que veio com a chuva e me resfriou. E, nesse resfriado, pude compreender um pouco mais o que é ser mulher e mãe no quilombo. Estava lá com minha filha, e nós duas tivemos febre. No primeiro dia, ela ficou de cama, dormiu bastante, e eu estava bem para cuidá-la. Já no segundo dia, ela tinha se recuperado, o que para uma criança com

pouco mais de um ano significa não ficar um minuto parada, querer conhecer tudo o que vê pela frente, e isso demanda muita atenção de uma pessoa adulta. Só que esse foi o dia em que eu tive a febre, o dia em que ficaria de cama, se pudesse. Eu estava na casa de Dona Olinda e, nesse mesmo dia, sua neta, Jenifer, estava doente também, com suspeita de pedras nos rins. Ela tem uma filha que estava com um ano e um filho com cinco, e nós duas, doentes, cuidávamos das crianças, sem opção de descansar. As crianças demandavam comida, banho, remédio, amamentação, mamadeira, e nós tínhamos que atendê-las apesar de todas as nossas dores. Eu fui chegando a um estado de exaustão, mas não tinha a opção de me retirar. Conversamos sobre isso e a Jenifer disse que poderia estar quase morrendo, e ainda assim não poderia se deitar, pois precisava cuidar das crianças. Dona Olinda, entre seus afazeres, ainda nos auxiliou fazendo a comida, mas o resto era conosco.

Neste dia, senti o que Favret-Saada (2005) define como ser afetada na pesquisa. Estando num quilombo, onde a maior parte das pessoas trabalha fora e as que estão em casa têm uma rotina de trabalho igualmente exigente, senti o impacto que as mulheres sofrem em seus corpos com o trabalho incessante de cuidado com os filhos. A responsabilidade integral pelo cuidado do Éric e da Yasmim deixava a Jenifer sem tempo para cuidar de si, e eu, num simples resfriado, pude sentir as dores que ela sente a cada vez que adoece – e o adoecimento se torna recorrente quando não há tempo para o autocuidado. Esta possibilidade de afetar-me na pesquisa veio de uma relação que eu e a Jenifer vínhamos construindo havia alguns meses. Acompanhei-a diversas vezes em seus deslocamentos até Porto Alegre levando a Yasmim em atendimentos médicos e, nessa convivência, fomos nos conhecendo e compartilhando tristezas e alegrias em nossas vidas de mães com filhas em idades próximas. Criamos uma empatia que se intensificou quando calhou de adoecermos no mesmo momento. Aquele dia só não foi mais difícil porque juntas conseguimos rir e não nos sentirmos sozinhas em nossas dores.

Fonte: acervo da autora

Ao mesmo tempo em que frequentei sua casa durante a etnografia, também levei a Jenifer à minha, radicalizando a proximidade da relação com o quilombo. Francesca Gargallo (2014) diz que as comunidades são regidas pelo princípio da reciprocidade. Neste sentido, a presença da Jenifer em minha casa quando ela precisou ficar em Porto Alegre por uma necessidade da filha se tornou uma troca, pois também eu fiquei em sua casa por uma necessidade acadêmica. Com o tempo, os afetos que se construíram foram transformando a relação, e não só por necessidade estabelecemos reciprocidades, mas pela relação mesma de compartilhamento que criamos.

É interessante observar a abertura que tive com as mulheres da comunidade, que expressa uma disponibilidade para criar alianças femininas. Em novembro de 2017, estive na casa da Dona Olinda com a missão de expor minha intenção de realizar esta pesquisa de mestrado na comunidade. Era a primeira vez que eu teria uma conversa de tal natureza e estava cheia de dúvidas quanto à legitimidade de eu

me inserir no cotidiano da comunidade em busca de material para um trabalho acadêmico, no sentido de que se estabeleceria uma relação assimétrica, pois o interesse era meu. E qual seria o benefício para a comunidade? Eu não conseguia imaginar que fosse proporcionar retornos iguais aos que eu já tinha visto em outras pesquisas, como materiais audiovisuais ou conduções de ações jurídicas, e igualmente não conseguia perceber o que eu teria a oferecer em troca. Com toda a incerteza, respirei fundo e fiz a proposta. Dona Olinda me falou um pouco das dificuldades que eu encontraria e disse que, se eu estivesse disposta, poderia tentar. A fala dela não demonstrou nenhuma desconfiança quanto ao fato de que seria eu a única beneficiária da abertura da comunidade, não era assim que ela pensava. Na semana seguinte, recebi uma ligação da Jenifer, sua neta, pedindo ajuda para transitar por Porto Alegre com a Yasmim em busca de clínicas para fazer um exame que fora solicitado em uma consulta naquela manhã. A reciprocidade já estava colocada. No momento em que me abri para fazer um pedido, elas se sentiram à vontade para buscar em mim o que eu pudesse oferecer. Sem que eu soubesse como poderia ajudar, elas sabiam e foram me guiando nesse processo de troca.

Essa reciprocidade que se produziu expressa um pouco do “não é só isso” que dá nome a esta seção. Não só dificuldade e dor, mas também a resistência que surge nesse processo, o aprendizado sobre como podemos atenuar essas dores, como podemos produzir alianças que nos façam sentir bem, que aliviem os pesos juntando mais mãos para carregar, e também se alegrar nos momentos compartilhados.