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5 OS PROCESSOS DE LATROCÍNIO DA COMARCA DE RECIFE-PE

5.1 CONSTRUÇÃO DOS DADOS E DESCRIÇÃO DAS ETAPAS

empiricamente, tendo como campo as 12 Varas Criminais da Comarca da Capital (Recife) do Tribunal de Justiça de Pernambuco e como dados os documentos (processos com sentenças condenatórias proferidas nos crimes de latrocínio) (FLICK, 2009: p.231; IÑIGUEZ, 2005). Minha investigação se iniciou por uma coleta de dados no 1º grau de jurisdição da 3ª entrância do TJPE em Recife, tendo realizado o campo em 3 meses, considerando-se como material de pesquisa somente os processos de crimes de latrocínio com sentenças condenatórias proferidas, já que o objeto de estudo é a produção da subjetividade do agente que comete o crime de latrocínio, pela análise do processo de atribuição de características psicossociais nas diversas fases processuais, culminando na exteriorização dessa dinâmica por meio da sentença condenatória na parte indicada como dosimetria ou individualização judiciária da pena55.

Minha pesquisa de campo foi feita a partir da delimitação de recortes territorial (Varas Criminais da Capital) e temático (processos com sentenças condenatórias em crimes de latrocínio). Do ponto de vista temporal, a construção dos dados foi afetada pela escassez de registros de sentenças com os tipos penais em cada um dos anos, razão pela qual todas aquelas a que tive acesso foram compiladas para meu corpus, sendo sorteadas algumas para fins analíticos56. O percurso de busca dos processos ocorreu por consulta ao livro “rol dos culpados”, ao sistema interno do TJPE (Judwin) pela capitulação do crime (art. 157, §3º CP) e pelas buscas nos arquivos das assessoras e servidores da Secretaria. Ressalto que, mesmo havendo certa dificuldade em localizar os processos específicos para o meu estudo, contei com o auxílio valioso desses servidores, sem o qual o trabalho não teria sido possível. Como segunda etapa do campo, realizei entrevistas em profundidade com 10 juízes, o que contribuiu

55 Conforme apontamento da professora Drª Marcela Zamboni, por ocasião da defesa da dissertação, esclareço que os casos selecionados foram apenas os processos em que houve condenação por latrocínio, uma vez que somente quando existe a condenação é que o magistrado teria a obrigação de fixar a pena e, consequentemente, deve analisar na sentença a personalidade e a conduta social do agente que constam como circunstâncias judiciais (art. 59 do CP). Portanto, nas sentenças absolutórias (próprias ou impróprias) ou de terminativas de mérito, não há pena a ser fixada, razão pela qual a juíza não é instada a valorar as características psicossociais estudadas, ainda que elas apareçam em outras peças do processo. Por isso, não selecionei essa tipologia de casos, por não trazerem o discurso judiciário sobre a subjetividade da ré na figura das circunstâncias judiciais.

56 A seleção dos casos por sorteio foi uma das estratégias adotadas para não enviesar a análise. De início, sorteei o primeiro processo dentre os autos que estavam disponíveis nas varas, obtive o caso 1 em uma vara. Então, sorteei o segundo processo e, assim, consegui o caso 2. Continuei o processo até chegar ao caso 4. Em seguida, retirei do sorteio essas varas em que selecionei os processos inteiros, sorteando, agora, somente as sentenças. Sorteada a primeira sentença (sentença 1 do julgador 1), ficou definida a vara e o julgador de modo que sorteei nova sentença nessa unidade e cheguei à sentença 2 do julgador 1. Fiz o mesmo procedimento para conseguir as sentenças 1 e 2 do julgador 2.

sobremaneira para a minha análise.

A opção pelos crimes de latrocínio se deve ao fato de ocupar uma fronteira de tutela entre dois bens jurídicos (patrimônio e vida), havendo a previsão de duas condutas em um único tipo penal, o que o configura enquanto um crime complexo57, previsto entre os crimes patrimoniais, sendo dos tipos penais com pena mínima em abstrato já prevista em patamar muito elevado58.

Nos termos legais, o latrocínio não exige que o evento morte esteja nos planos do agente. Basta que ele empregue violência para roubar e que dela resulte a morte para que se tenha como caracterizado o delito. É mister, porém, que a violência tenha sido exercida para o fim da subtração ou para garantir, depois desta, a impunidade do crime ou a detenção da coisa subtraída. Caso a motivação da violência seja outra, como a vingança, por exemplo, haverá homicídio em concurso com roubo. (MIRABETE, 2004: p. 247)

Ademais, o latrocínio por integrar a categoria dos CVLI59 permite suscitar a hipótese de que podem existir mais menções negativas às características psicossociais quando foi produzido o resultado morte e também investigar como o elemento patrimonial é mobilizado para perceber se a violência é valorada mais negativamente quando o crime está relacionado à subtração consumada de patrimônio da vítima.

Meu escopo é compreender se a hipótese de que há elementos da existência de um mecanismo de seletividade, operado pelos juízes atribuindo o status de criminoso apenas a certos acusados, de fato, se coaduna com as evidências empíricas levantadas. Nesse empreendimento, abordo como os processos sociocognitivos de tipificação e categorização, exercitados pelas magistradas enquanto uma racionalidade prática, operam discursivamente na constituição subjetiva dos réus, o que pode ser modulado à medida que haja uma identificação do julgador com a vítima em distintos graus ou mesmo alguma rejeição à pessoa do acusado. Sob a perspectiva sociocognitiva, os juízes se valeriam dos processos implicados nas teorias implícitas da personalidade e heurísticas da representatividade na construção dos

57 É possível que haja a desclassificação de um crime para outro, por exemplo, quando o juiz do Tribunal do Júri desclassifica a infração penal de homicídio doloso seguido de um furto para um latrocínio, que é de competência de Vara criminal comum (NUCCI, 2014: p.982).

58 O crime do Código Penal com pena mínima mais elevada que a dele seria o de extorsão mediante sequestro na modalidade qualificada. “Art. 159 - Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate: [...] § 3º - Se resulta a morte: Pena - reclusão, de vinte e quatro a trinta anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de 25.7.1990)” (BRASIL. Decreto-lei nº2.848/1940)

59 A intencionalidade diz respeito se a ação criminosa foi produzida voluntaria ou acidentalmente. Já a letalidade se refere à ocorrência de resultado fatal (morte) para a vítima do crime decorrente do emprego da violência no crime.

esquemas de subjetivação, que engendram sujeição criminal.

Ademais, a rotinização do processo de atribuição de características psicossociais, sendo esses elementos poucas vezes individualizados para cada condenado, com pouca ou nenhuma referência às provas do processo, confirmando, no mais das vezes, o entendimento já consolidado do julgador acerca de tipos sociais considerados perigosos. Portanto, foi possível perceber que os alvos da sujeição criminal são normalmente aqueles sujeitos que já possuem antecedentes criminais ou um passado relativo ao uso ou ao tráfico de substâncias psicoativas ilícitas. Sobre eles, costumam recair as características psicossociais mais estigmatizadoras.

Com a identificação das sentenças condenatórias dos crimes de latrocínio proferidas nas Varas Criminais da Capital, tomei os autos dos processos como material para a análise, construindo esses dados empíricos e iniciando a codificação em categorias temáticas das características psicossociais apontadas, observando quando são mencionadas, quando estão ausentes ou quando são irrelevantes nas diversas fases processuais em que essas características podem ser encontradas, notadamente na sentença condenatória ao ser realizada a dosimetria da pena.

Inicialmente, com base nos dados produzidos pelo TJPE acerca do número de processos baixados60 por Vara Criminal para o ano de 2012, tomei como número anual total de sentenças por vara um quantitativo entre 83 e 382, relativos a todos os tipos penais de competência da vara. Desse parâmetro, estimei inicialmente um número bem menor de sentenças condenatórias em latrocínio, algo entre 1 a 3 sentenças a cada ano por vara, o que reflete as evidências já apresentadas nas Tabelas 9 e 11. O número exato de sentenças condenatórias por latrocínio em cada ano não me foi fornecido, por não haver sistematização desses dados nas varas.

Ao reunir esse corpus, busquei nas diversas etapas processuais (inquérito policial, denúncia, depoimentos de testemunhas, interrogatório da ré, sentença) referências à atribuição de características psicossociais aos acusados. Com isso, descrevi e codifiquei em categorias êmicas quais as características psicossociais encontradas nos casos empíricos, buscando os casos em que essas categorias estão ausentes ou são irrelevantes na tentativa de compará-los com os casos em que explicitadas, a exemplo de referência à personalidade voltada para o crime, que não resiste aos apelos do ilícito e conduta social irregular etc.

60 Baixa do processo é um indicador de número de casos decididos por sentenças condenatórias, absolutórias e terminativas de mérito, nos quais há o arquivamento do processo ou a devolução do processo para o 1º grau de jurisdição, após o julgamento dos eventuais recursos.

Obtidos os processos com sentença condenatória em crimes de latrocínio e selecionadas as peças processuais, utilizo a análise de discurso crítica (FAIRCLOUGH, 2001; 2003; IÑIGUEZ, 2005) como técnica de análise para entender como as juízas valoram os elementos de personalidade e conduta social, amparando a análise em questionamentos como: Quais as estratégias discursivas utilizadas nesse processo de atribuição? São apresentados os conceitos desses atributos? Existem referências a qual(is) prova(s) serviram de elemento de convicção para o julgador? Há sinais de rotinização do processo de atribuição de características psicossociais?

Assim, coletei evidências empíricas que me permitiram compreender o processo de produção da subjetividade do réu nos crimes de latrocínio ao descrever as etapas processuais nas quais o processo de atribuição de características psicossociais aparece e que culminam com a sentença condenatória, na qual pode se consolidar a produção do rótulo ou estigma. Construir os dados em triangulação de métodos possibilitou submeter a teste a hipótese teórica de que os juízes operam um mecanismo de seletividade atribuindo o status de

criminoso somente para alguns acusados, tendo por base processos sociocognitivos e

mecanismos organizacionais, que refletem uma visão estigmatizadora da pobreza e do uso de certas “drogas”, o que contribuiu para reforçar processos de gestão da miséria (WACQUANT, 2003).