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A construção identitária linguística com relação às línguas portuguesas e

CAPÍTULO 3. ANÁLISE DOS DADOS

3.2. A interação como prática de letramentos e (re)construção de identidades na

3.2.1. A construção identitária linguística com relação às línguas portuguesas e

nacionalidade brasileira e ucraniana

As línguas imigrantes faladas pelos sujeitos são nomeadas pela população de língua ucraniana, nomeação que pode estar relacionada ao processo de imigração e ao sentimento de pertencimento a um povo, a uma nacionalidade. Os imigrantes na época em que se estabeleceram no Paraná eram conhecidos como rutenos63 e esses tiveram uma história de luta pela manutenção de sua língua e cultura.

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Ruteno é um povo eslavo que vive nas regiões de Galícia (Polônia e Ucrânia). A língua dos rutenos é considerada pelo povo ucraniano como um dialeto ucraniano, no entanto, muitos rutenos se

Os rutenos que imigraram para Prudentópolis espelharam-se nos “heróis” da Ucrânia, os “cossacos”, os quais conseguiram obter o controle político da Ucrânia, lutando para manter a língua e cultura de seu povo. Os rutenos que moravam no Brasil eram incentivados a “espelhar-se nos cossacos e lutar pela independência política e territorial. Essa é a história da “nação ucraniana” que deveria ser ensinada aos camponeses de origem rutena para transformá-los em “ucranianos”” (GUÉRIOS, 2012, p. 181).

Essa história foi repassada ao longo dos anos para as gerações de descendentes que nasceram no Brasil e até hoje a maior parte da população de Prudentópolis considera-se ucraniana (até mesmo os que têm outras descendências, como a polonesa), e declara-se falante da língua ucraniana. Desse modo, o fato de autonomearem-se ucranianos e falantes da língua ucraniana é uma construção de pertencimento a um povo; nesse caso, os ucranianos de Prudentópolis identificaram-se com os heróis da construção da nacionalidade na Ucrânia, os cossacos, e tentaram lutar para manter a sua cultura e sua língua e principalmente demarcar de onde vieram. Os ucranianos de Prudentópolis fazem questão de dizer que não são brasileiros e sim ucranianos, mesmo tendo nascido no Brasil.

Alguns moradores até consideram uma das línguas portuguesas faladas nesse contexto como língua ucraniana: “a língua colona é mais ucraniana do que brasileira, né64?”. Essa língua colona, mencionada nessa fala, refere-se à língua portuguesa falada nas comunidades rurais, a qual é hibridizada (SANTOS; CAVALCANTI, 2008; BAKHTIN, 2015) com a língua ucraniana, daí os sujeitos se referirem a ela como mais ucraniana do que brasileira. As línguas portuguesas faladas no município são percebidas localmente como três línguas: a língua portuguesa, a língua brasileira e a língua colona.

Esta pesquisa permitiu compreender as nomeações linguísticas atribuídas pelos sujeitos falantes dessas línguas. O que gerou mais inquietação é o fato de alguns sujeitos chamarem uma das línguas portuguesas faladas nesse contexto de língua brasileira, o que propiciou a busca de conhecer os motivos para essa nomeação linguística, visto que partimos de uma perspectiva que considera os ofendem se chamarem a sua língua de dialeto, já que eles (principalmente os que vivem em Prudentópolis) consideram-se ucranianos.

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valores que os sujeitos têm para com as línguas (CÉSAR; CAVALCANTI, 2007; GAL, 2006; WOOLARD; SCHIEFFELING, 1994), o que torna relevante compreender quais são os valores que norteiam essa nomeação.

Durante as observações de campo da pesquisa realizada, observei que essa nomeação pode estar relacionada à escolarização, pois os sujeitos escolarizados chamam a língua portuguesa de língua portuguesa, e os sujeitos que tiveram pouco acesso à escola chamam essa língua de língua brasileira. Nesse sentido parece que o processo de contato com as políticas linguísticas de padronização (políticas apropriadas pela escola e por ela corroboradas) influenciam esses sujeitos para a nomeação das línguas portuguesas faladas no contexto investigado.

A população rural de Prudentópolis acima de 30 anos de idade (principalmente das quatro comunidades investigadas) tem um nível baixo de escolarização, pois, como os próprios sujeitos afirmam, “antigamente não era obrigado estudar65”. A evasão escolar ocorria por diversos fatores, alguns deles são explicados por esses sujeitos e estão relacionados à língua da escola, ao trabalho e ao deslocamento.

Dentre os participantes da pesquisa entrevistados, muitos sujeitos que evadiram da escola afirmam ter sido um fato importante para essa ação “não se adaptar na língua da escola66”. A escola brasileira no contexto brasileiro pode ser configurada pelo uso monolíngue e padronizado da língua portuguesa. Embora, como apresentamos em sub-tópico anterior, houvesse algum esforço por parte das freiras professoras e de outras professoras de fazer usos da língua ucraniana, os textos escritos e o ensino da escrita na escola voltavam-se para a língua portuguesa padronizada. Esses sujeitos falantes das línguas ucranianas afirmaram não se “adaptar” a essa língua que a escola tentava impor. Essa não adaptação fez com que muitos sujeitos “abrissem mão” dos estudos, pois, para estudar, seria preciso aprender a falar o português da escola: “eles queriam que a gente falasse o brasileiro deles, o nosso caipira era errado e é difícil pra gente falar o brasileiro certo, sabe?67”. Assim, diante dessa imposição da língua nacional oficial padronizada, muitos sujeitos (pais de alunos) moradores das localidades

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Anotações de diário de campo, 19/04/2016.

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Anotações de diário de campo, 20/04/2016.

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investigadas não concluíram seus estudos. Neste excerto, a língua brasileira é o “falar brasileiro certo”, que se refere à língua normatizada e legítima.

Essa nomeação é explicada por um pai de aluno que diz: “é a língua brasileira, porque é a língua falada no Brasil68”. Esta afirmação do pai está relacionando a língua com a nação, ou seja, essa nomeação é uma construção feita por um povo imigrante, que agora também é falante dessa língua brasileira, pois se trata de uma construção linguística realizada em território brasileiro.

A evasão escolar ocorria ainda como uma forma de “não compatibilidade” com o mercado de trabalho, visto que a maior parte da população (se não todos), moradores das comunidades investigadas, trabalhavam na agricultura, sendo assim, muitos sujeitos evadiram da escola por acreditarem que esse estudo não traria benefícios para o trabalho realizado. Essa conclusão foi possível após ouvir alguns comentários nas comunidades: “para que estudar para plantar feijão?69”, observando

que Prudentópolis é conhecida como a capital do feijão preto, pelo número de produção no município; “do que me adianta estudar se vou trabalhar na roça70”.

Diante dessas falas dos moradores das comunidades investigadas, percebe-se que os sujeitos sentiam que o “esforço” de estudar não traria benefícios para o trabalho realizado, visto que no seu contexto não havia demandas por usos padronizados da língua portuguesa e outros conteúdos escolares e não esperavam viver em outra realidade.

No contexto da pesquisa foi mencionado que da área territorial de Prudentópolis, é dividida por inúmeras comunidades rurais, sendo as distâncias entre elas significativas. Esse foi outro fator determinante para que ocorressem inúmeras evasões escolares, pois, como são muitas as comunidades rurais, as escolas foram estruturadas para que atendessem a mais de uma comunidade. Com isso, a distância para a escola causava certa dificuldade para os sujeitos se manterem na escola.

As distâncias das comunidades para as escolas eram tão significativas que os sujeitos passavam horas no transporte escolar, como pode ser observado no excerto a seguir:

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Entrevista realizada dia 04/08/2016.

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Anotações de diário de campo; 25/05/2016.

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Eu saía 5 horas da manhã da casa, andava 2 km a pé no escuro para pegar o escolar, chegava na escola cansada e com fome, o lanche era só as 10 horas, depois a gente saía da escola 11 e meia, eu chegava na casa perto das 2 hora da tarde, tinha que comer correndo tudo para ir ajudar o TATO71 na roça, tava muito cansativo, andei uns dias só, não consegui mais, e o TATO também ISKÁJE72 que não precisava isso pra mim, pra que sofre tanto pra trabalhar na roça, né? (Entrevista realizada em 24/08/2016).

Nesta fala, de uma mãe, ela comenta o motivo de ela ter parado de estudar, sendo que ela frequentou a escola mais próxima da comunidade dela, que era multisseriada e onde ela já havia aprendido a falar o português. Esse deslocamento era referente ao antigo ginásio, que não foi possível a ela concluir, pois estava se tornando muito cansativa e ainda tinha que chegar em casa e ir ajudar o pai nos afazeres da lavoura.

Durante observações e participações de momentos nas comunidades, percebi que os sujeitos nomeiam a hibridização das línguas imigrantes “ucraniana, polonesa e russa” como a língua ucraniana, no entanto, os próprios sujeitos afirmam que essa língua é uma mistura da língua que eles chamam de ucraniana com a língua portuguesa. Um pai diz em uma entrevista “na verdade é muito misturado a nossa língua, né? Nós falamo ucraniano, mas é metade português; na verdade eu começo ucraniano e vira em português73”. Daí a relevância de se analisar esses dados a partir das concepções de heterodiscurso e hibridismo (Bakhtin, 2015), pois se compreende que essas línguas podem carregar valores distintos inclusive na mesma estrutura enunciativa.

Durante a entrevista, percebe-se que as outras línguas imigrantes são silenciadas pelos próprios falantes, mas a interferência da língua portuguesa sobre a língua ucraniana falada hoje na comunidade é ressaltada, considerada por muitos sujeitos como algo negativo, já que a língua portuguesa está de algum modo transformando a língua da comunidade, ou seja, modificando a identidade dos sujeitos que, para a maioria, sempre foi a identidade ucraniana e, na realidade, continua sendo, mas o medo da língua portuguesa modificar essa identidade está presente nos discursos da população.

No pequeno excerto da entrevista anterior de um pai de aluno, ele nomeia a língua portuguesa de língua portuguesa e não de língua brasileira como a maior 71 Tradução: PAI. 72 Tradução: FALOU. 73 Entrevista realizada em 04/08/2016.

parte da população, pois se trata de uma pessoa que estudou: ele ainda afirma que foi “estudar no seminário, aqui não tinha como estudar74”. Fatos assim são notados

frequentemente nas comunidades investigadas: os sujeitos nomeiam diferentemente as línguas na medida em que tiveram relações distintas com elas; ou seja, se são sujeitos escolarizados (que tiveram mais tempo de escolarização), a nomeação para a língua insere-se nos discursos da escola. Mas, se são sujeitos que tiveram pouco contato com a escola e evidentemente com a língua da escola, nomeiam essa língua como língua brasileira, pois é uma construção linguística realizada pelos próprios falantes.

Nas falas dos participantes da pesquisa, pode ser observado que os sujeitos nestas comunidades produzem políticas linguísticas relativas à nomeação (que é também valoração) das línguas. A nomeação das línguas tem muita relação com o acesso à escola, no entanto, a nomeação não está ligada a duas línguas diferentes: o sujeito que chama a língua portuguesa de língua brasileira não está se referindo a, por exemplo, uma língua diferente daquela que é falada na escola. É possível que estes sujeitos falem outra língua portuguesa distinta da escola (não seguindo a padronização), mas a nomeação da língua brasileira recobre distintos e amplos usos da língua portuguesa; por exemplo, se questionar qual é a língua da televisão, esses sujeitos respondem que é brasileira; qual é a língua falada na área urbana? Esses sujeitos respondem que é brasileira. Desse modo, acredito que a nomeação para estas línguas está muito mais ligada à questão de “nacionalidade” do que em relação a língua culta/padronizada e a língua falada no dia a dia.

Além destas, os participantes da pesquisa frequentemente nomeiam também um outro conjunto de usos linguísticos, como observamos anteriormente: língua colona. Essa língua é aquela que os falantes identificam como uma hibridização entre a língua ucraniana, a língua polonesa e a língua portuguesa.

3.2.2. As interações e as práticas de letramento: o multilinguismo