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2. Um estudo do Satyricon de Petrônio: entre a crítica social e a ironia

2.2 A construção da linguagem petroniana

Como foi mencionado por nós em trabalho anterior90, o estudo do Satyricon nos permite entrar em contato com registros do latim vulgar, ou seja, aquele que era falado pelas camadas mais baixas da sociedade e que não está registrado nos clássicos da literatura latina. A definição do termo técnico Latim Vulgar, segundo Arnulf (2006), é formada a partir do

sermo vulgaris (fala das massas) e serve a um propósito geral de demonstrar as formas de

uma linguagem “espontânea”, primariamente concebida por via oral, o latim falado. Assim, o latim vulgar remete a uma variedade de variantes da linguagem social, cultural, regional e diacronicamente diferenciada, sendo que essa variedade é tida como base das línguas românicas. O latim vulgar não pode ser acessado de forma direta e autêntica como linguagem oral, pois não há registros. No entanto, suas particularidades podem ser verificadas em fontes latinas escritas e também no testemunho indireto fornecido pelas línguas românicas. Há diversos documentos escritos que refletem o latim como era falado, isso inclui alguns textos literários que fazem uso de elementos da linguagem espontânea ou “popular” com o objetivo de retratar a realidade, como as comédias de Plauto e Terêncio e o Satyricon de Petrônio.

Petrônio apresenta em sua obra diversos elementos, muito característicos do latim falado, principalmente nos capítulos XXVII a LXXVIII, que compreendem o “Banquete de Trimalquião”, em que se encontram discursos de diversas camadas sociais, entre elas a dos escravos e dos libertos, os quais mantêm o tom coloquial da fala cotidiana. Como destaca Bianchet (2002, p.9), há dois métodos de estudos do latim vulgar: o “Método Comparativo defendido, dentre outros, por Meillet (1965) e Maurer Jr. (1959)” e um outro método com o

89 Por un lado, las constantes alusiones dejan en claro su dominio cultural y su formación literaria; por el outro, ese dominio técnico es la sólida base que le permite desafiar los límites establecidos justamente por esa misma tradicíon, desafio que lo muestra como un innovador hijo de su cultura y tradicíon (CARMIGNANI, 2011, p.249).

qual podemos ter acesso à língua latina falada pelo povo em diferentes períodos, desde o arcaico até o imperial, que pode ser obtido por meio de “textos literários, epigráficos, ou gramaticais escritos em latim, que, em virtude de seu caráter mais popular e menos associado à tradição gramatical clássica, são geralmente apontados como fonte para o estudo do latim vulgar”.

O Satyricon, assim, é apontado como fonte do latim vulgar por vários autores, como lembra Bianchet (2002, p.11): Adamik (1990, p.1) afirmou que Petrônio utilizou o emprego consciente de formas vulgares no Satyricon, principalmente para demonstrar o latim falado por ex-escravos; dessa forma, o autor latino é visto como alguém que conhecia bem as normas do latim escrito, em especial a retórica. Da mesma maneira, Codoñer (1990, p.57) identificou na obra petroniana, principalmente no Banquete de Trimalquião, diversos níveis de linguagem: “popular para Trimalquião e seus convivas, coloquial culto para os protagonistas do Satyricon e linguagem própria para criações em verso, utilizada nos pequenos poemas inseridos na Cena”.

Porém, há algumas divergências quanto aos diferentes níveis de linguagem empregados por Petrônio; alguns estudos apontam que não há muita diferenciação de linguagem e aquela mais popular é apenas pontual, principalmente no Banquete (corrente defendida por Marmorale e Pepe apud Adamik, 1990, p.4). Segundo Bianchet,

A generalização proposta nesses estudos não associa os elementos de linguagem oral empregados ao longo do Satyricon aos diferentes níveis de análise da gramática (fonética/fonologia, morfologia, sintaxe e léxico), apresentando o quadro generalizado, mais uma vez simplista, de que os elementos de todas as partes da gramática são empregados sob a forma vulgar na Cena e sob a forma culta nos demais capítulos (BIANCHET, 2002, p.13).

Nesta perspectiva, Petersmann (1999, p.110-120) aponta que o estilo coloquial pode ser encontrado em toda a narrativa e nas falas de conteúdo comum. O estudioso menciona que o sermo cotidianus não é um fenômeno uniforme na obra, mas pode apresentar diversas gradações:

O estilo coloquial, muitas vezes de um tipo bastante irrefletido, é encontrado na narrativa tagarela de Encólpio e nos discursos de conteúdo ordinário. O

sermo cotidianus, no entanto, não é um fenômeno uniforme, mas abrange

muitas gradações e cores. Nas passagens de prosa sofisticada, encontramos, portanto, uma multiplicidade de níveis de expressão que variam de um estilo refinado aos vulgarismos; isso também vale para os discursos dos libertos,

que nem sempre podem ser classificados categoricamente como vulgares91

(PETERSMANN, 1999, p.114).

Petersmann afirma, desse modo, que as passagens narradas por Encólpio e seus companheiros têm diversos níveis rítmicos dependendo do humor e da situação e que podemos perceber vários níveis de estilo que vão desde o poético ao retórico até o vulgar. Nesse sentido, não ficamos surpresos ao nos depararmos com uma dicção vulgar em uma passagem sofisticada, sendo que essa mistura pode ser observada tanto na morfologia, quanto na sintaxe e no léxico.

Portanto, neste trabalho acreditamos nessa vertente dos estudos que apontam a linguagem do Satyricon como de alta complexidade formal e que possui tanto elementos de linguagem oral, quanto elementos de linguagem culta ao longo de todo texto e não apenas no Banquete de Trimalquião. Apoiamo-nos, aqui, nos estudos de Bianchet, que afirma em suas conclusões:

Foi possível comprovar, através de estudo realizado, que é improcedente a generalização de que, no Satyricon, os elementos de linguagem oral se restringem aos episódios da Cena e os elementos de linguagem culta se encontram nos demais episódios, uma vez que foram identificados elementos característicos de ambos os registros de fala ao longo de todo o texto do

Satyricon, cuja maior ou menor incidência se encontra associada aos

diferentes níveis da gramática (BIANCHET, 2004, p.321).

Não podemos deixar de lembrar também que essas evidências foram discutidas por Conte (1999, p.456). O estudioso aponta a dificuldade dos críticos para delimitar o estilo do romance petroniano e destaca que a língua falada por figuras representantes da camada popular, como os libertos no “Banquete de Trimalquião”, é totalmente diferente do latim literário que é comumente familiar, advindo de outras obras latinas. Conte então comenta a validade da obra como fonte da linguagem popular falada na época

Temos ali uma valiosa fonte de informação sobre a linguagem popular, falada, que pode ser combinada com instâncias do latim subliterário, como o grafite de Pompéia e as glosas (palavras raras que, precisamente por não serem literárias, são mencionadas pelos gramáticos e lexicógrafos da antiguidade tardia), e também com aqueles traços da língua falada que podem ser recuperados, frequentemente com dificuldade, de poetas como Plauto e Catulo e dos escritores de prosa menos estilizados92 (CONTE, 1999,

p.456).

91 “Colloquial style, often of a rather unreflective kind, is encountered in Encoulpius’ chatty narrative and in the speeches of ordinay content. The sermo cottidianus, however, is not a uniform phenomenon, but encompasses many gradations and colours. In the passages of sophisticated prose we therefore encounter a multitude of levels of expression ranging from a refined style to vulgarisms; this also true of the freedmen’s speeches, which cannot always be branded categorically as vulgar” (PETERSMANN, 1999, p.114).

92 “We have in this a valuable source of information on the popular, spoken language, which can be combined with instances of subliterary Latin, such as the graffiti of Pompeii and glosses (rare words, which, precisely

Dessa forma, o estudioso lembra a distinção que há nos diversos momentos e contextos em que Petrônio realiza essa diferença entre a linguagem dos personagens e a fala do narrador e conclui: “O contraste é deliberado e implica arte consciente. [...] Trazer esse baixo estrato para o centro das atenções é um objetivo artístico de Petrônio, guiado por um programa literário preciso93” (CONTE, 1999, p.456).

Neste mesmo caminho, Schmeling (2011, p.xxviii) elenca três estilos distintos presentes na linguagem petroniana: 1. Um estilo elaborado, utilizado principalmente nas críticas literárias, nas construções de paródias e nos propósitos retóricos; 2. O sermo urbanus, o principal meio narrativo, que se caracteriza por seu estilo simples e rítmico; 3. O sermo

plebeius, um estilo mais vulgar, que tem como imitação a fala de escravos e libertos.

Schmeling também aponta a presença de palavras e expressões advindas do grego: “como a maioria dos personagens do Satyricon tem nomes gregos e a Itália estava repleta de falantes e de professores de grego, espera-se que o grego penetre no latim cotidiano e, com o acréscimo de numerosos hapax legomena94, a linguagem dos libertos seja muito rica95” (SCHMELING, 2011, p.xxviii). O estudioso conclui que essa “espessa textura literária” presente no Satyricon, faz com que Petrônio se distinga de todos os outros escritores clássicos.

Portanto, assim como declarou Díaz y Díaz (1990, p.LXXXV) em sua Introdução, a língua e o estilo em Petrônio estão fortemente unidos, cheios de expressões fortes, elevadas e com um variadíssimo léxico. E, por fim, remetendo às palavras conclusivas do estudioso sobre o estilo linguístico de Petrônio, também podemos concluir que:

A leitura da obra de Petrônio é um prazer inesquecível, por sua graça sempre fresca, sua variedade rica e inesgotável, sua capacidade de descrever, sua precisão ímpar; todos os jogos e meios de uma língua destríssima a serviço de uma inteligência transbordante e determinada96 (DÍAZ Y DÍAZ, 1990,

p.LXXXIX).

Todas essas particularidades e estilos linguísticos também estão interligados com a temática erótica presente na obra, tanto na temática do triângulo homoafetivo construído pelos

because they are not literary, are mentioned by the grammarians and lexicographers of late antiquity), and also with those traces of the spoken language that can be recovered, often with difficulty, from poets such as Plautus and Catullus and from the less stylized prose writers” (CONTE, 1999, p.456).

93 “The contrast is deliberate and implies conscious artistry. [...] To bring this low stratum into the spotlight is an artistic aim of Petronius, one guided by a precise literary program” (CONTE, 1999, p.456).

94 Trata-se de termos que são utilizados apenas uma vez em Língua Latina.

95 “Since most of the characters in the S. have Greek names and Italy was awash with Greek-speakers and - teachers, Greek must be expected to creep into everyday Latin and with the addition of numerous hapax legomena makes the language of the freedmen very rich” (SCHMELING, 2011, p.xxviii).

96 “La lectura de la obra de Petronio es un placer involvidable, por su gracia siempre fresca, su variedade riquísima e inagotable, su habilidad para la descripción, su precisión impar; todos los juegos y medios de una lengua destrísima al servicio de un ingenio desbordante y sostenido” (DÍAZ Y DÍAZ, 1990, p.LXXXIX)

personagens principais, quanto na utilização de um vocabulário erótico ligado à tradição priapeia. Assim sendo, iremos destacar a construção da temática erótica e seus desdobramentos no Satyricon.