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Paulo Leminski, tradutor de Petrônio : Satyricon, estudo e comentário

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Academic year: 2021

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Instituto de Estudos da Linguagem

LÍVIA MENDES PEREIRA

Paulo Leminski, tradutor de Petrônio:

Satyricon, Estudo e Comentário

Campinas

2020

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Paulo Leminski, tradutor de Petrônio:

Satyricon, Estudo e Comentário

Tese de doutorado apresentada ao Instituto de

Estudos da Linguagem da Universidade

Estadual de Campinas para a obtenção do

título de Doutora em Linguística.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Sérgio de Vasconcellos

Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pela

aluna Lívia Mendes Pereira

e orientada pelo Prof. Dr. Paulo Sérgio de Vasconcellos

Campinas

2020

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Leandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343

Pereira, Lívia Mendes,

P414p PerPaulo Leminski, tradutor de Petrônio : Satyricon, estudo e comentário / Lívia Mendes Pereira. – Campinas, SP : [s.n.], 2020.

PerOrientador: Paulo Sérgio de Vasconcellos.

PerTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Estudos da Linguagem.

Per1. Petrônio - Satyricon. 2. Leminski, Paulo, 1944-1989. 3. Tradução. I.

Vasconcellos, Paulo Sérgio de. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Paulo Leminski, translator of Petronius : Satyricon, study and

review

Palavras-chave em inglês:

Petronius. Satyricon

Leminski, Paulo, 1944-1989 Translation

Área de concentração: Linguística Titulação: Doutora em Linguística Banca examinadora:

Paulo Sérgio de Vasconcellos [Orientador] Brunno Vinicius Gonçalves Vieira

Érica Luciene Alves de Lima Isabella Tardin Cardoso Guilherme Gontijo Flores

Data de defesa: 02-10-2020

Programa de Pós-Graduação: Linguística

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-2260-8872 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/2074230354015460

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Paulo Sérgio de Vasconcellos

Isabella Tardin Cardoso

Érica Luciene Alves de Lima

Brunno Vinicius Gonçalves Vieira

Guilherme Gontijo Flores

IEL/UNICAMP 2020

Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria de Pós Graduação do IEL.

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Minifesto 2 A literatura de um país pobre não pode ser pobre de ideias. Pobre da arte de um país pobre de ideias. Pobre da ciência de um país pobre de ideias. Num país pobre, não se pode desprezar nenhum repertório. Muito menos os repertórios mais sofisticados. Os mais complexos. Os mais difíceis de aceitar à primeira vista. Lembrem-se de Santos Dumont. Sempre haverá quem diga que num país pobre não se pode ter energia nuclear antes de resolver o problema da merenda escolar. Errado. Num país pobre, movido a carro de boi, é preciso pôr o carro na frente dos bois.

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À minha família A todas as mulheres pesquisadoras do Brasil

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AGRADECIMENTOS

Esta tese é fruto de um longo período de pesquisa e dedicação, portanto, recebeu contribuições e incentivos pessoais e institucionais sem os quais não se tornaria possível sua execução.

Agradeço, então, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pela outorga do processo nº 2016/01548-8, concedendo o apoio financeiro integral e tão necessário para que esta tese pudesse ser devidamente desenvolvida.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Sérgio de Vasconcellos, por me acolher na Unicamp, por confiar no meu trabalho e por oferecer discussões e contribuições tão enriquecedoras.

Ao meu supervisor de Estágio de Pesquisa no Exterior, Prof. Dr. Delfim Ferreira Leão, por me receber em Coimbra e dividir seus conhecimentos de maneira tão atenciosa.

Ao Prof. Dr. Brunno V. G. Vieira, que acreditou neste trabalho desde o início e caminhou ao meu lado com respeito e amizade, oferecendo sempre ótimas contribuições.

Aos professores Drª. Isabella Tardin Cardoso e Dr. Guilherme Gontijo Flores, pelo acolhimento, pela leitura atenta e excelentes contribuições.

Aos professores de latim, João Batista T. Prado, Márcio Thamos, Giovanna Longo, Patrícia Prata, por contribuírem em minha formação.

Às professoras Viviane Veras e Erica L. A. de Lima, pela contribuição com as teorias da tradução e pela orientação na Qualificação de área.

A todos os professores que cruzaram meu caminho durante a formação acadêmica, por me ensinarem a aprender e a ensinar.

À minha família. Aos meus pais, Paulo e Silvana, pelo apoio sempre amoroso. Ao meu marido, Leandro, pelo companheirismo eterno, paciente e amoroso. Ao meu irmão, Elias, por me apresentar o poeta Paulo Leminski e ser sempre uma fonte de inspiração. À minha cunhada, Mariana, pela amizade incentivadora.

Aos amigos e companheiros, pela convivência e auxílios intelectuais e pessoais. À Tamires pelo colo amigo e pela ajuda valiosa com a língua inglesa. À Lívia e ao Júnior que mesmo de longe sempre estiveram presentes. Aos amigos araraquarenses: Leandro, Thayse, Emerson, Cíntia, Eliane, Mariana, Carol. Aos amigos de Barão Geraldo: Soninha, Laís, Aline, Michel, Juliana, Bruna, Mariana, Cris, Fabi, Henrique.

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Resumo

Buscando contribuir com a pesquisa das traduções dos clássicos greco-romanos e com a recepção desses textos em nossas Letras, neste trabalho estudamos e divulgamos a tradução do Satyricon, de Petrônio, levada a cabo pelo poeta Paulo Leminski. Tendo por base o confronto entre o texto latino e a tradução leminskiana, procuramos fornecer um estudo da recepção do romance petroniano na literatura brasileira contemporânea, que encontra em Leminski um de seus expoentes. Ao continuar no Doutorado o trabalho que foi realizado na Iniciação Científica e no Mestrado, nos preocupamos, principalmente, em contribuir para a constituição de uma História da Tradução e da Recepção dos Clássicos em língua portuguesa, além de colaborar para um resgate da Teoria da Tradução em nosso ambiente acadêmico. Nesse sentido, analisamos a tradução feita por Leminski considerando principalmente seu caráter estético criativo intrínseco em detrimento de seu caráter filológico estrito, que não fez parte dos objetivos tradutórios do poeta. Assim, ao aliar o conhecimento em língua latina à teoria da tradução, procuramos revelar a importância da literatura da antiguidade greco-romana na literatura de língua portuguesa, por meio de um exemplo de sua recepção. Como apoio metodológico para a análise comparativa, incluímos o cotejo com uma das traduções acadêmicas mais atuais, de Sandra Braga Bianchet (2004). Assim, investigamos os principais aspectos, a nosso ver, da obra petroniana presentes na tradução de Leminski: as paródias, o uso da linguagem coloquial e popular, os termos eróticos e os poemas, que se intercalam no texto em prosa. Finalmente, verificamos, a partir da teoria da Análise do Discurso, as notas do tradutor, que constituem o tom específico e diferencial da produção tradutória do poeta. Assim sendo, demonstramos a importância tanto da obra latina quanto dessa tradução, que consideramos ser um importante marco da recepção de Petrônio no Brasil e uma relevante produção no itinerário tradutório de Paulo Leminski.

Palavras-chave: Satyricon, Petrônio, Leminski, Recepção da literatura greco-romana.

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Abstract

Seeking to contribute to the research on translations of Greco-Roman classical works and to their reception in our literature, this project proposes to study and disclose the translation of

Satyricon, by Petronius, carried out by the poet Paulo Leminski. Based on the confrontation

between the Latin text and the Leminskian translation, we seek to provide a study of the reception of the Petronian novel in contemporary Brazilian literature, that finds in Leminski one of its exponents. By continuing in the PhD the work that was carried out in Undergraduate research and in the Master’s, we are mainly concerned with contributing to the constitution of a History of Translation and Reception of Classics in Portuguese, in addition to collaborating for a rescue of Translation Theory in our academic environment. In this sense, we analyze the translation made by Leminski considering mainly its intrinsic creative aesthetic character at the expense of its strict philological one, which was not part of the poet’s translation objectives. Thus, by combining knowledge in Latin with translation theory, we seek to reveal the importance of the literature of Greco-Roman antiquity in Portuguese-speaking literature, by means of an example of its reception. As methodological support for comparative analysis, we have included the comparison with one of the most current academic translations, by Sandra Braga Bianchet (2004). Thus, we investigate the main aspects of the Petronian work present in Leminski’s translation, namely: parodies, the use of colloquial and popular language, erotic terms and poems, which intercalate the text in prose. Finally, we verify, based on the Discourse Analysis theory, the translator’s notes, which constitute the specific and differential tone of the poet’s translation production. Therefore, we demonstrate the importance of both the Latin work and this translation, which we consider to be an important milestone in the reception of Petronius in Brazil and a relevant production in Paulo Leminski’s translation itinerary.

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Lista de Abreviaturas CALDAS AULETE Aulete digital (AULETE, 2007)

FARIA Dicionário escolar latino-português (FARIA, 1994)

LONGMAN Longman Dictinonary of Contemporary English (LONGMAN, 1995)

MACMILLAN Macmillan English Dictionary (RUNDELL, 2007)

OED The Oxford English Dictionary (SIMPSOM; WEINER, 1991)

OLD Oxford Latin Dictionary (GLARE, 1968)

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SUMÁRIO

Introdução... 12

Recepção via tradução... 17

Recepção da Antiguidade Clássica... 19

1. Os estudos tradutórios no Brasil e seus desdobramentos... 24

1.1 Aspectos do contexto histórico e editorial da tradução no Brasil... 26

1.2 Breve panorama da teoria tradutória dos poetas concretistas no Brasil... 34

1.3 O ideal criativo e tradutório de Paulo Leminski... 42

1.4 O “paideuma” leminskiano... 59

2. Um estudo do Satyricon de Petrônio: entre a crítica social e a ironia... 68

2.1 A presença da paródia no Satyricon de Petrônio... 84

2.2 A construção da linguagem petroniana... 89

2.3 Temática erótica: homoerotismo e priapeia ... 93

2.4 Petrônio poeta... 105

3. Satyricon: uma recriação... 110

3.1 Paródia em tradução... 112

3.2 Linguagem coloquial e popular: do texto latino à tradução... 130

3.3 Linguagem erótica no Satyricon: do latim à língua portuguesa... 152

3.4 Leminski poeta e tradutor: os poemas do Satyricon... 165

4. Análise dialógica: as notas do tradutor... 184

4.1 As Notas do Tradutor em duas traduções do Satyricon de Petrônio... 187

Considerações finais... 213

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Introdução

Desde a antiguidade clássica greco-romana, têm-se discutido as referências intertextuais nos textos literários. Como, dentre outros, lembra Carmignani (2011, p.35), deve-se esquecer a ideia romantizada da originalidade na literatura clássica, sendo que, ao contrário, existia uma poética da imitação em dois sentidos: da arte que imitava a natureza e daquela que imitava a si mesma. Notoriamente, essa relação entre os textos era denominada pelos gregos de mimesis e pelos latinos de imitatio. Portanto, desde a antiguidade se abordava a importância de se valorizar as obras que já tinham sido escritas imitando aquilo que de melhor havia nelas, reproduzindo-as com um novo sentido, em um novo tempo. Desde então, é questionada a impossibilidade da originalidade total em produção literária e a importância dos rastreamentos das alusões e referências feitas pelos diversos autores.

Direcionando esta discussão para o ato tradutório, como veremos adiante, modernamente, muitas vezes o texto traduzido é visto como apenas uma cópia do texto original vertido em uma outra língua e, portanto, é questionado se esta tradução conseguiu ou não atingir a fidelidade ao texto original, funcionando de forma idêntica ao seu modelo. Porém, sabe-se, por meio de diversas teorias que abrangem o texto e a tradução, as quais discutiremos no primeiro capítulo, que nenhum texto é completamente fiel a outro ou que nenhuma tradução pode ser considerada uma cópia idêntica vertida em outro código linguístico. Essa também é a principal concepção do poeta e tradutor curitibano Paulo Leminski, sobre o qual iremos nos debruçar neste trabalho. Leminski acreditava no ato de traduzir como uma transferência de ideias e características de uma obra estrangeira influenciada por uma nova visão, de um novo mundo, de uma outra língua diferente, como ele mesmo definiu em seu artigo “Trans/paralelas”:

pode-se entender como ‘tradução’ todas as aproximações do tipo da paródia (=canto paralelo), que tem intuitos burlescos, da paráfrase, que tem intenções sérias, da adaptação (de um texto para o cine ou o teatro), da diluição de uma mensagem original em (quase)-similares, mais ou menos afastados do seu protótipo” (LEMINSKI, 2012 [1986], p.285).

Portanto, com essa definição podemos compreender o termo “tradução” de forma muito abrangente, considerando todas as releituras de textos posteriores, seja na íntegra ou por meio de sua alusão. Tanto a impossibilidade de se alcançar a originalidade de um texto quanto a dita “tradução eterna” que culmina em originais são reveladas no comentário de Vasconcellos (2001, p.42) ao elucidar a filiação dos autores a uma tradição ou um gênero:

Não existe criação do nada, aqui, não existem personas individuais e palavras únicas em discurso monológico – está-se fadado a alguma espécie de diálogo com o passado, por mais que seu peso sobre nós possa parecer

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sufocante, por mais que sintamos vertigem diante da sombra dos mortos, vivos nas páginas dos livros, a espreitar-nos em sua cômoda situação de predecessores. Não somos nós os primeiros [...].

Esta relação vai ao encontro do que Barchiesi e Conte (1989, p.94-95) denominam de “gramática textual”, ou seja, realizar o aproveitamento dos modos de enunciação, dos princípios genéricos, da adoção de fórmulas e do emprego de expressões vinculadas a certo tipo específico de texto, relacionando-se de forma intertextual, com uma certa constituição específica e particular. Segundo Vasconcellos:

a ‘gramática textual’, faz parte da relação intertextual, com estatuto particular: trata-se de reproduzir não uma passagem qualquer de um precursor, transformando-a seja como for, mas de concretizar, reatualizando, na nova obra as regras de um código, extraídas de todo um repertório de textos paradigmáticos (VASCONCELLOS, 2001, p.42).

Essa afirmação coincide, em alguns aspectos, com as concepções teóricas sobre tradução cunhadas por Augusto e Haroldo de Campos, principalmente entre os anos de 1964 a 1971, no Brasil. Neste momento, além do termo “recriação”, estes poetas iniciaram a utilização do termo “transcriação”, que foi mencionado pela primeira vez no artigo “Píndaro hoje”, publicado inicialmente na Folha de São Paulo, em 1967, e mais tarde no livro de ensaios A arte no horizonte do provável (1977). A partir do exemplo de sua tradução realizada de poemas do poeta grego Píndaro, Haroldo manifesta que sua tradução de poemas, mesmo dos clássicos, como Píndaro, é vista através da “ótica do tempo presente”, o que guia todo o seu procedimento na “transcriação”:

[...] o tradutor é um homem datado e situado, que foi à busca de Píndaro não como um monumento glorioso, mas como um poeta de carne e osso, visto por alguém que só pode enfocá-lo pela ótica do tempo presente: Píndaro, mélico grego, “made new” em perspectiva sincrônica, agora poeta contemporâneo, falando a um auditório de hoje (CAMPOS, 1977, p.112). A este processo tradutório e intertextual mencionado por Haroldo de Campos podemos relacionar o quarto princípio, dentre os cinco enumerados por Russel1, sobre os critérios da “imitatio bem sucedida”. No quarto ponto, Russel diz que “o empréstimo deve se tornar algo próprio, pelo tratamento individual e assimilação a seu novo contexto e propósito” (RUSSEL, 1979, p.16), o que pode se associar diretamente à concepção haroldiana da “transcriação”.

1 Os cinco princípios definidos por Russel da imitatio bem sucedida são comentados por Vasconcellos (2001,

p.36-44). São eles: 1. “O objeto deve ser digno de imitação”; 2. Deve-se reproduzir o espírito mais que a letra”; 3. A imitação deve ser tacitamente reconhecida, na compreensão de que o leitor informado reconhecerá e aprovará o empréstimo”; 4. “O empréstimo deve se tornar algo próprio, pelo tratamento individual e assimilação a seu novo contexto e propósito”; 5. “O imitador deve pensar de si mesmo que está competindo com seu modelo, ainda que saiba que não é capaz de superá-lo”.

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Como comenta Vasconcellos (2001, p.38), toda retomada já modifica o material de origem e, obviamente, o contexto diferente e novo já afeta de imediato a sua compreensão. A operação intertextual jamais pode ser neutra, ela sempre cria novos sentidos que contrastam com o do original reproduzido ou evocado. Vasconcellos a exemplifica com o caso extremo da ficção borgiana, o Quixote, de Pierre Menard2, que, mesmo idêntico ao original, não é o

mesmo Quixote de Cervantes3 e finaliza afirmando que o tratamento que se faz do texto de partida possui múltiplas e diversas formas que nem sequer podem ser catalogadas, pois as possibilidades do jogo intertextual são virtualmente ilimitadas. Nesse sentido, considerando a tradução como uma forma de intertextualidade, podemos relacionar os estudos intertextuais ao fenômeno tradutório, como viemos demonstrando até então.

Assim, pensando nas escolhas advindas dos valores culturais da tradição, escolhidas e aceitas por um autor, como também nas diversas formas que podem ser utilizadas para que elas sejam instauradas no texto de chegada Conte afirma que “a simples coexistência do velho no novo é garantia da existência do novo4” (CONTE, 2012, p.73)5. Como exemplificação o estudioso cita as expressões formulares que Virgílio utiliza à maneira de Homero, sendo que sua função em Virgílio não está mais relacionada à composição oral, mas à restauração de um traço marcante da dicção homérica. Dessa forma, o procedimento técnico torna-se marca de estilo. Trata-se, portanto, da reformulação de uma característica linguística ao aplicar a ela novo significado.

As diversas formas possibilitadas pelo procedimento intertextual e, por extensão, pelo trabalho tradutório, são possíveis por meio da liberdade que o autor, aludindo ou traduzindo, incorpora ao novo texto. Falando especificamente do ato tradutório, Conte questiona a fidelidade vista como uma máxima proximidade ao original, para ele:

A palavra do poeta-criador e a do poeta-tradutor se amalgamam sem resíduos: norma e desvio, contrastando-se dialeticamente, se contextualizam. Em suma, existe uma “liberdade condicional” do poeta-tradutor, que se dá na pacífica aceitação dos limites impostos pela adesão ao original6 (CONTE,

2012, p.98).

Retomando novamente os cinco critérios definidos por Russel da “imitatio bem sucedida”, destacada e comentada por Vasconcellos (2001), podemos relacionar o primeiro

2 BORGES, J. L. Pierre Menard, autor de Quijote. In: Ficções. 5. ed. São Paulo, SP: Globo, 1989 [1944]. 3 CERVANTES, M. de. Dom Quixote de la Mancha. Tradução de Ferreira Gullar. Rio de Janeiro, RJ: Revan,

2002 [1605].

4 “la coesistenza símplice del vecchio e del nuevo è garanzia all’esistenza del nuevo”. 5 As traduções sem referenciação são doravante de nossa autoria.

6 “La parola del poeta-creatore e quella del poeta-traduttore si saldano senza residui: norma e scarto,

contra-standosi dialeticamente, se contestualizzano. Esiste insomma uma ‘libertà condizionata’ del poeta-traduttore, che si realizza nella pacifica accettazione dei limiti che impone l’aderenza all’originale” (CONTE, 2012, p.98).

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ponto, “o objeto deve ser digno de imitação”, com a visão da “tradução como crítica”, instaurada pelo “paideuma poundiano”7 e revisitada pelos irmãos Campos e também por Paulo Leminski. O que constitui este postulado de Russel, acerca do contexto antigo, é evidente para os ideais de tradutores literários modernos, como os mencionados, pois, na maioria das obras escolhidas por eles como objeto tradutório, há uma espécie de homenagem ao precursor8.

Assim, o poeta venera seus modelos, inserindo-se numa tradição da qual não poderia prescindir. Sua obra incorpora a dos precursores que o poeta estima como paradigma de excelência, cuja “imitação” confere, por si só, a dignidade da auctoritas dos patres (VASCONCELLOS, 2001, p.37). Portanto, em ambos os contextos, faz-se referência aos antepassados para “integrar uma visão de mundo pessoal e preceitos estéticos próprios na história de um gênero literário ou do conjunto de obras que constitui o repertório da literatura” (VASCONCELLOS, 2001, p.37). A questão da tradição é fundamental tanto para a arte intertextual quanto para a tradução criativa, ou seja, ela revela o próprio make it new de Pound que, segundo Moreno (2001), é entendido por Haroldo de Campos como uma função qualitativa da cultura, porque estabelece uma revisão do passado literário, valorizando autores que inventaram algo, ou seja, aquilo que ele estabelece em seu “paideuma” nada mais é do que “dar nova vida ao passado literário válido via tradução” (CAMPOS, 2010, p.36).

Nesse sentido, Augusto de Campos também assinalou esta perspectiva tradutória do “paideuma” poundiano:

Tradução é crítica, como viu Pound melhor que ninguém. Uma das melhores formas de crítica [...]. Vendo o que eles [poetas do passado] fizeram no seu tempo aprendemos melhor o que fazer ou não fazer – porque já foi feito melhor – no nosso. Há a preocupação poundiana de se ordenar o conhecimento (autores, textos, neste caso) para que não se gaste tempo com ‘itens obsoletos’ (CAMPOS, 1978, p.7-8).

Seguindo convicções semelhantes, o poeta Paulo Leminski registrou seus ideais de retomada do passado como algo inerente ao fazer artístico e literário e, portanto, também tradutório, em um de seus poemas intitulado “O que quer dizer, diz”, dedicado “para Haroldo de Campos, translator maximus”. Nesse poema, Leminski conceitua o que para ele seria o ato

7 Entende-se como “paideuma poundiano” as obras e autores que Ezra Pound apontou em seus estudos e em suas

traduções como poetas e obras essenciais para o conhecimento da literatura mundial, aquelas obras que para ele são os maiores exemplos de maestria literária. No ABC da Literatura, Pound (2013 [1970], p. 185) apresenta o conceito de paideuma: “a ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar o mínimo de tempo com itens obsoletos”.

8 É relevante lembrar que este critério não se aplica como verdade geral à tradução, pois muitos trabalhos

tradutórios podem ser encomendados e, nestes casos, não seguem um projeto tradutório específico. Sendo assim, estes tradutores não traduzem porque julgam o texto meritório, mas apenas como um trabalho tradutório sem maiores pretensões.

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de traduzir, ou seja, nada mais do que dizer novamente, e de um jeito novo, aquilo que já foi dito:

O que quer dizer, diz. Não fica fazendo

o que, um dia, eu sempre fiz. Não fica só querendo, querendo, coisa que eu nunca quis.

O que quer dizer, diz. Só se dizendo num outro o que, um dia, se disse, um dia, vai ser feliz

(LEMINSKI, 2013 [1987], p.190).

Nesta dedicatória Leminski sugere sua admiração pelo poeta e tradutor Haroldo de Campos, que, para ele, serve como melhor modelo daquele que, como tradutor, desvia sentidos e significações, faz com que o texto de partida vá para outra parte, faça parte de outro mundo, em outro contexto. Dessa forma, no poema dedicado a Haroldo, Leminski declara sua concepção de criação literária e tradutória como crítica, ao revelar a liberdade do dizer poético, fora das amarras linguísticas, ao expressar a felicidade suscitada na revelação do já dito no outro, em um novo dizer.

Como destacou Perrone-Moisés (1998, p.14), quando os poetas, autores e tradutores escolhem sua própria tradição eles automaticamente estão propondo novos cânones. Assim, ao dialogar com autores do passado ou do presente, realizam uma forma particular de intertextualidade e

exercendo a tradução, arrancam essa prática da condição ancilar a que fora relegada pela metafísica da Obra, para promovê-la à categoria de recriação, trabalho em comum e [...] forma privilegiada de crítica: a tradução é, primeiramente, conseqüência de uma escolha significativa; e, em seguida, trabalho compreensivo e seletivo de desmontagem e remontagem do texto original (PERRONE-MOISÉS, 1998, p.14).

A autora (1998, p.23) lembra que o paideuma poundiano sugere que as grandes obras do passado sejam realçadas nas obras que serão produzidas no presente, assim, conscientes desse movimento, ao mesmo tempo que os novos autores transformam aquelas obras que reveem, de certa forma também as negam:

selecionando e comentando certos autores do passado, eles visam estabelecer sua própria tradição, situar-se na história para nela intervir mais efetivamente. Assim fazendo, os escritores-críticos procedem a uma releitura e a uma reescritura da história literária (PERRONE-MOISÉS, 1998, p.26).

Nesse sentido, Pound indica como a história literária não pode ser entendida de forma cronológica, pois ela está em contínua mudança: “Não conhecemos o passado em sequência cronológica. Pode ser cômodo deitá-lo, anestesiado, na mesa, com datas coladas aqui e ali;

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mas o que sabemos, sabemo-lo por ondas e espirais, turbilhonando a partir de nós e de nosso próprio tempo” (POUND, 1970, p.60).

Podemos, desse modo, retomar Fowler, quando este diz que “ler um texto envolve duas etapas: reconstrução da matriz que lhe dá sentido e produção desse sentido ao relacionar Texto de Partida e Texto de Chegada9” (FOWLER, 2000, p.117). Ou seja, toda produção

textual compreende a leitura e releitura de textos pré-existentes, assim como toda tradução procura ler o passado e reproduzir tanto sua forma quanto seu sentido em uma outra língua, procurando aquilo que foi desvendado no texto de partida e retransmitindo-o no texto de chegada. Esse é o propósito que Leminski aspirou ao traduzir o Satyricon, obra que priorizaremos em nosso estudo, tendo a todo momento como parâmetro a declaração do próprio poeta: “ao tradutor que quer devolver um vivo aos vivos, uma tarefa ingrata. Entre trair Petrônio e trair os vivos, escolhi trair os dois, único modo de não trair ninguém” (LEMINSKI, 1985, p.190).

Recepção via tradução

Retomando a história da tradução no Brasil, podemos destacar de maneira bem resumida as diversas fases que construíram essa história e, dessa meneira, conseguir ter um breve panorama do desenvolvimento dos ofícios do tradutor e do intérprete ao passar dos anos no Brasil. Neste resumo, podemos visualizar como os paradigmas foram se modificando com o passar do tempo:

No século XVI, a tradução pode ser vista como redução na tentativa de traduzir a cultura e a língua dos índios; no século XVII, a tradução é imitação ou apropriação, a fim de reproduzir o que na época estava na moda; no século XVIII, a tradução era revolução, que, a fim de transmitir o conhecimento, chamou à ação aqueles que tiveram acesso ao saber; no século XIX, vê-se as primeiras etapas da institucionalização da profissão, e a profissão de tradutor / intérprete como um trampolim para outras formas de emprego. O passo seguinte foi a institucionalização do ofício de intérprete e do tradutor no século XX com a criação de cursos universitários e uma teoria da tradução brasileira. No século XXI, enfim, temos o paradigma da tradução-inclusão onde outros tipos de tradução são estudados na universidade e tornam-se parte do mercado de trabalho (SILVA-REIS; MILTON, 2016, p.35-36).

A partir desse breve resumo sobre a história da tradução no Brasil, podemos compreender que traduções e tradutores seguiram o próprio desenvolvimento do país, vinculados a sua história e a sua cultura, nas diversas etapas pelas quais o Brasil e seu povo

9 “To read a text thus involves a two-stage process: a reconstruction of the matrix which gives it meaning, and

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atravessaram. Como Silva-Reis e Milton (2016, p.35-36) destacaram, esta arte de incorporação do “outro” por meio da tradução ajudou a escrever a história do país, que é marcada pela miscigenação cultural, que parte de culturas de diversos povos e conhecimentos, somada ao processo de globalização.

Nesse sentido, devemos ter em mente que o acesso à literatura estrangeira via tradução influenciou a história literária brasileira, e a partir daí, podemos investigar como os tradutores brasileiros atuaram como divulgadores da literatura estrangeira no país. Devemos pensar como estes se apropriaram das características das literaturas traduzidas em suas obras autorais e qual foi o reconhecimento dessas traduções no contexto literário e livreiro brasileiro. Como destacou Monteiro (2013), a produção tradutória insere novos textos em novos contextos sociais, assim, o sistema literário receptor “pode se beneficiar de novas formas de expressão, de novos padrões estéticos. A tradução de textos literários por autores consagrados ou em processo de consolidação de sua própria obra revela-se muito importante para que ocorra esse benefício” (MONTEIRO, 2013, p.142).

Enfatizamos, portanto, neste estudo, principalmente na discussão que realizaremos no capítulo 1, a importância da tradução para a formação literária brasileira. Iremos destacar primeiramente um resumo da História da Tradução no Brasil, enfatizando principalmente o papel da tradução criativa, iniciada pelos poetas do concretismo e que obteve grande importância e funcionou como marco diferencial na teoria e prática tradutória do país, sendo retomada a partir de então pelos tradutores posteriores à sua instauração. Logo, não é irrelevante a contribuição histórica e teórica desta teoria da tradução como criação para a formação da literatura brasileira. Seus praticantes, ao enfrentar a alteridade de forma decisiva, realizaram um necessário exercício de autocrítica e romperam muitos limites, principalmente aqueles que a própria história do Brasil os obrigou a encarar, de forma resistente e criativa, reinventando-se a cada linha e a cada texto traduzido.

Em seguida, focalizaremos as questões teóricas referentes ao ato tradutório que foram evocadas por Paulo Leminski, sublinhando seus referenciais tradutórios e suas escolhas tradutórias, aquilo que denominaremos de “paideuma leminskiano”. Para isso, apontaremos principalmente os textos que o próprio poeta-tradutor deixou escritos em forma de artigos, cartas, editoriais, prefácios e posfácios. Como destacou Perrone-Moisés (1998, p.11), quando escritores escrevem críticas sobre seus predecessores e contemporâneos, estes buscam orientar o seu próprio trabalho autoral. Assim, essas críticas não servem apenas para orientar ou auxiliar os leitores, mas têm como objetivo principal estabelecer critérios de sua própria escrita. Por isso a importância de retomar aquilo que o próprio Leminski registrou sobre seus

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referenciais teóricos e seus objetos tradutórios, pois trata-se de uma crítica que estabelece valores: “a crítica dos escritores lida diretamente com os valores e exerce, sem pudores, a faculdade de julgar” (PERRONE-MOISÉS, 1998, p.11). Especificamente nas traduções realizadas por poetas e prosadores, essa crítica aparece no acompanhamento da tradução por ensaios críticos, sob forma de prefácio ou posfácio e também notas. Como destacou a autora (PERRONE-MOISÉS, 1998, p.12), esses valores atribuídos aos autores do passado garantem o próprio prosseguimento da escrita literária em geral. Dessa forma, os escritores tomam a posição de leitores e essa leitura é “reconhecida como condição da existência da obra”, assim “toda a obra nova implica, em sua fatura como em sua recepção, uma leitura do passado literário” (PERRONE-MOISÉS, 1998, p.13). Nesse sentido, é de extrema relevância descobrir as leituras realizadas pelo poeta e tradutor Paulo Leminski, e a sua leitura daquilo que para ele foi destaque e importância em seu passado literário.

Recepção da Antiguidade Clássica

Para discutir especificamente a recepção do Satyricon na literatura de língua portuguesa por meio da tradução de Paulo Leminski apresentaremos uma perspectiva do estado da questão. No capítulo 2 faz-se uma revisão bibliográfica sobre os estudos da obra petroniana. Nessa revisão nos debruçaremos sobre alguns aspectos principais para o entendimento do Satyricon: a função que a paródia exerce na narrativa, ligada à crítica social e à ironia; a construção da linguagem em seus diversos registros; a temática homoerótica relacionada à tradição priápica; e os diversos poemas intercalados à narrativa em prosa. Todos esses pontos que realçaremos na revisão teórica dos estudos petronianos vão contribuir para entender as escolhas feitas pelo poeta curitibano ao traduzir o Satyricon. Nesse sentido, podemos perceber o cenário produtivo a favor da criação poética e literária que o poeta trouxe para o resultado final da obra traduzida em língua portuguesa.

Como apontou Hardwick e Stray (2008, p.36), a dinâmica da criatividade na obra de escritores e artistas, tanto da antiguidade quanto dos modernos, implica a relação entre tradição e recepção de seus predecessores e contemporâneos. Dessa forma, os tradutores e escritores possuem total consciência de que são parte de uma tradição e muitas vezes desejam transcender essa tradição. Para a autora, essa relação e como ela é vista e debatida por estudiosos constitui o ponto central dos estudos de recepção.

Nessa perspectiva, voltar ao texto da antiguidade e avaliar a crítica feita sobre ele nos estudos linguísticos e literários enriquece nosso olhar sobre a obra contemporânea. Hardwick (2003, p.4) enfatizou que ainda se costuma acreditar que os Estudos da Recepção produzem

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apenas críticas e análises sobre a cultura e a sociedade receptora, porém esses estudos também voltam sua crítica ao texto e à cultura da antiguidade, enquadrando novas questões e recuperando novas fontes, talvez até esquecidas. Para a autora, “isso significa que os Estudos da Recepção têm se preocupado em investigar as rotas pelas quais um texto se moveu e o foco cultural que moldou ou filtrou as maneiras pelas quais o texto foi considerado10

(HARDWICK, 2003, p.4). Portanto, os estudos da recepção realizam o contínuo diálogo entre passado e presente e, ao mesmo tempo, requerem diálogos que ultrapassam tempo e espaço e cruzam fronteiras culturais, linguísticas, políticas e de gênero: “Os estudos da recepção, portanto, estão relacionados não apenas com textos individuais e sua relação com o outro, mas também com processos culturais mais amplos que moldam e compõem essas relações11” (HARDWICK, 2003, p.5).

Essa associação entre o passado e o presente e a forma como essa conexão é feita será o ponto principal de nossa análise, ou seja, nós nos debruçaremos sobre o texto antigo para criarmos um apoio à análise da recepção em si. Em um segundo momento, o estudo indicará como o texto antigo foi recebido e transformado pelo tradutor; como este ressignificou o texto fonte; quais os propósitos e as funções da obra contemporânea; e como ela se apropriou das ideias e dos valores da antiguidade. Esse diálogo faz com que a crítica se faça de forma eficaz e contundente. Como afirma Hardwick, trata-se do conceito de “distância crítica”:

[...] que utiliza a distância do tempo, do lugar e da cultura que existe entre as versões antiga e moderna de um texto, a fim de permitir ao leitor / espectador mover-se para fora dos limites de sua própria sociedade e horizontes culturais e, assim, enxergá-los mais claramente e de forma mais crítica12 (HARDWICK, 2003, p.8).

Por esse ângulo, a autora (2003, p.10-11) elenca diversos aspectos positivos que os estudos da recepção oferecem tanto para o entendimento da obra de chegada, e por extensão seu contexto literário, cultural e político, quanto para a reavaliação do texto da antiguidade e todo o contexto nele envolvido. Assim sendo, destacaremos alguns desses elementos, os quais julgamos relevantes para o contexto de nosso estudo. Primeiramente, os estudos da recepção transformam as percepções e julgamentos já construídos sobre o mundo antigo. Nesse sentido,

10 “This means that reception studies have to be concerned with investigating the routes by which a text has

moved and the cultural focus which shaped or filtered the ways in which the text was regarded” (HARDWICK, 2003, p.4).

11 “Reception studies, therefore, are concerned not only with individual texts and their relationship with one

another but also with broader cultural processes which shape and make up those relationship” (HARDWICK, 2003, p.5).

12 “Which uses the distance in time, place and culture that exists between ancient and modern versions of a text

in order to enable the reader/spectator to move outside the limits of his or her own society and cultural horizons and thus to see these more clearly and more critically” (HARDWICK, 2003, p.8).

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esses estudos também nos obrigam a ter um olhar atento tanto para o texto e o contexto de origem, quanto para os destinatários: “isto não implica que a fonte seja um parâmetro de valor, mas sim que haja uma ‘distância crítica’ entre a fonte e a recepção ilumina ambos13” (HARDWICK, 2003, p.10); a prática da análise da recepção revela semelhanças e diferenças entre o texto e o mundo antigo e seu correspondente moderno. Nas palavras da estudiosa, “a mudança do equilíbrio entre semelhanças e diferenças enfraquece as posições grosseiramente polarizadas de que os textos clássicos, ou abordam aspectos universais e imutáveis da natureza humana, ou que são remotos e estranhos, sem nada de valor a oferecer à experiência pós-clássica14” (HARDWICK, 2003, p.11). Em segundo lugar, a recepção da antiguidade no

mundo contemporâneo também é um importante índice de continuidade e mudança cultural e, portanto, tem um valor social além do literário, apenas voltado aos estudos clássicos. Por fim, a recepção é, e sempre será, um campo produtivo para a prática e o estudo de diversos valores e conceitos e suas relações com o conhecimento e o poder.

Diante de tal gama de importância para os estudos linguísticos e literários, cabe a nós, estudiosos da recepção, perceber de que forma esses aspectos foram aplicados em nosso objeto de estudo. Hardwick complementa a discussão, nesse sentido, ao lembrar que na chave avaliativa do relacionamento entre o passado e o presente cabe-nos perguntar: “Que diferença foi feita?15” (HARDWICK, 2003, p.112). Para a autora, essa questão abrange as práticas do apropriador da obra antiga em relação ao texto fonte e também complementa o impacto dessa apropriação na cultura ou tradição de recepção. Para chegar a essas respostas, Hardwick enfatiza algumas questões com as quais devemos nos preocupar:

Em primeiro lugar, os artistas ‘fizeram’ ou criaram uma obra que difere em aspectos significativos do texto ou imagem clássica? Se sim, como esta diferença é expressa? Formalmente? Linguisticamente? Visualmente? E como essas diferenças correspondem às diferenças e semelhanças entre os contextos antigos e subsequentes de produção e recepção? [...] Em segundo lugar, como a imitação, o trabalho analógico ou o novo afeta as percepções do mundo antigo? Isso faz com que os indivíduos ou grupos receptores revisitem as obras antigas, talvez para encontrar elementos que tenham sido ocultados ou marginalizados; [...] E em terceiro lugar, o que o trabalho moderno e sua recepção sugerem sobre a direção das práticas estéticas e culturais contemporâneas? Estimula o debate, oferece insights e críticas e transforma perspectivas; apela para um padrão estético ou noção imutável da

13 “This does not imply that the source is a yardstick of value but rather that a ‘critical distance’ between source

and reception illuminates both” (HARDWICK, 2003, p.10).

14 “The shifting balance between commonalities and differences undermines the crudely polarized positions that

classical texts either address universal and unchanging aspects of human nature or that they are remote and alien with nothing of value to offer to post-classical experince” (HARDWICK, 2003, p.11).

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natureza humana; reafirma certos tipos de valores em um contexto diferente?16 (HARDWICK, 2003, p.112-113).

São exatamente esses pontos que procuraremos responder no capítulo 3, ao analisar o trabalho tradutório que Paulo Leminski realizou do texto petroniano, procurando encontrar seus pontos de coincidências e diferenças com relação a obra da antiguidade latina e perceber como o tradutor realiza a transferência dessas questões no texto traduzido. Nesse sentido, iremos focar nossa análise nas principais características do Satyricon, as quais nos referimos anteriormente, e procuraremos demonstrar a forma como o tradutor formulou esses temas no texto de chegada. Assim, destacaremos a forma como a paródia aparece no texto traduzido sob uma perspectiva intertextual; a utilização da linguagem coloquial em língua portuguesa presente na tradução; o jogo com o erótico e o humor na obra traduzida; a maneira como Leminski traduz os poemas presentes na obra petroniana. Seguindo essa perspectiva, no capítulo 4, apresentaremos como o tradutor utilizou as notas tradutórias sob uma perspectiva dialógica.

Seguindo esses parâmetros, conseguimos conservar a ideia de que os estudos da recepção da antiguidade greco-romana continuarão a ser muito significativos para a história literária e cultural do ocidente. Como afirma Martindale (2006, p.8), os estudos de recepção precisam ser significativos tanto no aspecto clássico quanto no moderno, e não apenas para incluir um estudo ao outro. Os estudos da modernidade tornam-se modernos quando trazem traços do passado, reatualizando-se, assim, esse modelo cria uma classificação que não pertence apenas ao passado, mas ao presente e ao futuro. Martindale (2006, p.11) nos lembra que a palavra “recepção” foi escolhida no lugar de palavras como “tradição” ou “herança”, e essa escolha não foi feita por acaso: ela foi escolhida para realmente enfatizar “o papel ativo desempenhado pelos receptores” e conclui que “nesse sentido, pode-se dizer que existe uma política igualitária de recepção17” (MARTINDALE, 2006, p.11). Certamente, como lembra tanto Hardwick (2003, p.110) quanto Martindale (2006, p.11), a virtude dos estudos da

16 “Firstly, have the artists ‘made’ or created a work which differs in significant respects from the classical text

or image? If so, how is this difference expressed? Formally? Linguistically? Visually? And how do such differences correspond to the differences and similarities between the ancient and subsequent contexts of production and reception? [...] Secondly, how does the imitation, analogue or new work affect perceptions of the ancient world? Does it prompt the receiving individuals or groups to revisit the ancient works, perhaps to find elements which had been concealed or marginalized; [...] And thirdly, what do the modern work and its reception suggest about the direction of contemporary aesthetic and cultural practices? Does it stimulate debate, offer insights and critique and transform perspectives; does it appeal to an unchanging aesthetic standard or notion of human nature; does it reaffirm certain kinds of values in a different context?” (HARDWICK, 2003, p.112-113).

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recepção é o compromisso com o pluralismo, retomando o poder dos clássicos para “descolonizar” o mundo.

Portanto, no mundo globalizado e diverso em que vivemos, acreditamos que os estudos da recepção, avivando os clássicos transpostos para culturas e espaços literários múltiplos, são de extrema relevância e funcionam como um aproximador de mundos, pensamentos e conhecimentos.

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1. Os estudos tradutórios no Brasil e seus desdobramentos

A prática da tradução no Brasil sofreu fortes influências históricas e em cada fase teve suas particularidades. A sua produção cresceu no país principalmente a partir do século XIX, como apontaram Silva-Reis e Milton (2016, p.21): “o Oitocentos brasileiro foi um forte período de grande produção e difusão [...] e muito contribuíram para o desenvolvimento econômico, cultural, social e político do Brasil”. No século XX e no início do século XXI houve um avanço em termos de profissionalização da tradução principalmente como efeito das mudanças pelas quais passava o país: “de um país agrícola, fortemente dependente da exportação de café, para um grande país industrial e exportador de bens industriais” (SILVA-REIS; MILTON, 2016, p.21). Assim, os eventos políticos influenciaram de forma direta a produção e o estudo da tradução no país. Nesse contexto:

a mudança política da República à ditadura de Getúlio Vargas em 1930 com o seu viés nacionalista; logo adiante, a restauração da democracia, seguida pelo golpe militar de 1964 apoiado pelos Estados Unidos, com a democracia só reaparecendo em 1989, desempenharam um importante papel no tom e no teor das traduções. E não podemos deixar de mencionar as duas guerras mundiais: embora o Brasil não tenha participado da 1ª Guerra Mundial e só teve uma participação pequena na 2ª Guerra Mundial, os resultados das duas guerras tiveram grande alcance em termos de todas as áreas da vida, incluindo a tradução e a interpretação (SILVA-REIS; MILTON, 2016, p.22).

No início do século XX, o escritor Monteiro Lobato (1882-1948) foi um dos principais expoentes no desenvolvimento do mercado livreiro no país: “em 1918 fundou a editora Monteiro Lobato e Companhia - e, quando a empresa faliu, em 1925, fundou a Companhia Editora Nacional” (SILVA-REIS; MILTON, 2016, p.23). O escritor fez grande sucesso com suas traduções e adaptações e foi um dos pioneiros no mercado tradutório. Sobre as traduções realizadas por Monteiro Lobado, Silva-Reis e Milton comentam:

Ele traduziu / adaptou Peter Pan, Alice no País das Maravilhas, Robinson

Crusoé, Tom Sawyer, Huckleberry Finn e As Viagens de Gulliver, entre um

total de 82 obras. Entre os autores publicados pela Editora Nacional estão Conan Doyle, Eleanor H. Porter, Ernest Hemingway, H. G. Wells, Herman Melville, Jack London, John Steinbeck e Rudyard Kipling (SILVA-REIS; MILTON, 2016, p.23).

Em contrapartida, os Estudos da Tradução apenas tiveram um crescimento significativo nos últimos trinta anos no país. Como apontaram Silva-Reis e Milton (2016, p.31), até a década de 1990 estes estudos não estiveram presentes nas grades dos cursos de pós-graduação. Os primeiros livros de Estudos da Tradução no Brasil foram editados apenas entre 1952 e 1990. Os pioneiros foram os livros do professor e tradutor Paulo Rónai: Escola de

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tradução Literária no Brasil” (1983), publicado primeiramente no “Folhetim” da Folha de São

Paulo e sete anos mais tarde como capítulo do livro Tradução: a ponte necessária (1990).

Silva-Reis e Milton (2016, p.31) apontam o avanço dos Estudos Tradutórios na publicação da primeira revista acadêmica da área de tradução, Tradução e Comunicação (1981-1986), da Faculdade Ibero-americana, e no suplemento cultural da Folha de São Paulo, que publicou muitas das traduções dos irmãos Campos nessa época. Dessa forma, os autores destacam a escassez de trabalhos sobre tradução no Brasil na década de 1990, “um período de 38 anos - apenas 13 trabalhos sobre a tradução foram publicados no Brasil, cinco antologias e a revista acadêmica Tradução e Comunicação, com nove números, de 1981 a 1986” (SILVA-REIS; MILTON, 2016, p.32). Depois dessa fase, houve um aumento dos estudos sobre tradução e teoria da tradução, que foram incluídos nas grades dos programas de pós-graduação em todo país.

Aseff (2012, p.26) realça em seu trabalho que Martins (2010), no livro História da

Inteligência Brasileira, se destaca ao relacionar as traduções publicadas no país com suas

características políticas e ideológicas. Nesse sentido, não podemos ignorar o fato de que a teoria tradutória no Brasil perpassar os movimentos literários e as fases sociais, culturais e editoriais pelas quais passou. Sobre a tradução de poesia no Brasil, Bosi trata a numerosa produção dos anos 80 como “fenômeno mais digno de atenção da nossa historiografia literária neste fim de século” (BOSI, 1994, p.490). Para ele, a razão desse destaque está na internacionalização da cultura escrita e a crescente profissionalização do ofício de tradutor. O autor também diz que os bons tradutores são para ele poetas e ensaístas que demonstraram suas qualidades textuais em seus escritos originais, o que, em sua perspectiva, atribui à tradução um estatuto de pesquisa linguística somada pela aventura da criação. Bosi conclui que a tradução transcende limites nacionais e “ensina o homem a melhor conhecer o mundo e a si mesmo, construindo sobre o que é propriamente humano: a linguagem” (BOSI, 1994, p.490).

Dessa forma, apresentaremos neste capítulo um breve resumo da História da Tradução no Brasil, destacando a importância de eventos históricos, econômicos e sociais como influência para esta área dos estudos linguísticos. Daremos maior ênfase no surgimento da teoria da tradução como “criação” e como “crítica” fomentada no Brasil pelos poetas concretistas Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, relacionando-a com as fases histórico políticas enfrentadas no país. A partir daí, apontaremos os principais preceitos teóricos do poeta e tradutor Paulo Leminski sobre o fazer poético e destacaremos as obras por ele traduzidas, as quais formam, de certo modo, o seu “paideuma” tradutório.

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1.1 Aspectos do contexto histórico e editorial da tradução no Brasil

Refletindo sobre uma linha histórica da trajetória da teoria da tradução no Brasil, John Milton, no artigo “A importância de fatores econômicos na publicação de traduções: um exemplo do Brasil”, faz um panorama da influência econômica e política na atividade tradutória do país, entre os períodos de 1930 a 1961 e, depois, nos anos que seguiram ao golpe militar de 1964. Milton (2010, p.90) lembra que no período de 1930 a 1950 houve um crescente processo de industrialização e urbanização no país, que fez o mercado de trabalho se expandir, permitindo o crescimento do poder aquisitivo, implicando no aumento do consumo pela população. Esse fato, somado à política educacional de melhoria da educação básica e do aumento da alfabetização e ao crescimento das mídias como o rádio e o cinema, fez com que aumentassem os leitores de livros e revistas no país. As editoras, então, começaram a publicar coleções dirigidas aos novos leitores da classe média baixa: “os livros traduzidos e publicados para esses novos leitores eram para diversão, geralmente atrelados a filmes de Hollywood, além de folhetins, roteiros de novelas traduzidos, peças adaptadas, histórias em quadrinhos e caricaturas” (MILTON, 2010, p.90).

Já em meados da década de 70, a política foi marcada no Brasil pela repressão e pela censura, instituídas pelo golpe militar de 1964, principalmente durante o governo de Emílio Garrastazu Médici (1970-1974). Milton enfatiza que “durante esse período a imprensa foi censurada, e os livros sobre a União Soviética ou sobre temas socialistas não podiam ser publicados” (MILTON, 2010, p.93). Nesse momento, aumentou a publicação de traduções de livros norte-americanos; o autor cita o acordo entre MEC (Ministério da Educação e Cultura), SNEL (Sindicato Nacional de Editores de Livros) e a USAID (United States Agency for

International Development) em 1967, que difundiu a tradução de livros norte-americanos no

Brasil e fez aumentar a produção de livros traduzidos vendidos. Assim como Milton destaca, com esses fatos podemos perceber como a política influencia na economia e, em decorrência disso, na cultura da sociedade. Entre os poetas norte-americanos traduzidos, estavam dois grupos: os modernistas (Marianne Moore, William Carlos Williams e Ezra Pound) e os poetas

Beat (Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti e Gregory Corso). Segundo Milton “as

inovações de Ezra Pound e a importância que atribuiu às traduções marcaram Haroldo e Augusto de Campos; e os poetas Beat foram uma válvula de escape para o protesto silenciado no Brasil” (MILTON, 1993, p.95).

Sobre esse momento de repressão e censura do país, que resultou na abertura do diálogo e comércio editorial com os Estados Unidos, Irene Hirsch destaca que

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para os que tomaram o poder após a proclamação da República (1889), a americanização significou o fim da herança colonial e o começo do progresso e da democracia. A americanização do setor livreiro ao longo do século XX, por sua vez, também não foi vista com simpatia por muitos e também provocou reações de descontentamento, quando o setor industrial nacional se sentiu ameaçado pelo estrangeiro (HIRSCH, 2009, p.61).

A autora (2009, p.63) realça algumas casas editoriais que financiaram as atividades do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), que foram responsáveis pela intensa campanha anticomunista nos anos anteriores ao golpe de 1964; são elas: Agir, Francisco Alves, Globo, José Olympio, Vecchi. Hirsch lembra ainda que esse acordo teria sido feito próximo à decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, quando a ação da censura se tornou mais dura, perseguindo-se todo material considerado difamatório, obsceno e sedicioso

ao mesmo tempo em que mais livros eram apreendidos por serem considerados subversivos, denunciados ou autocensurados, o mercado editorial vivia um crescimento sem precedentes. E, claro, isso implicava num aumento no número de livros traduzidos (HIRSCH, 2009, p.63).

A autora também recorda a oposição ao regime militar realizada pela cultura beat e cita um exemplo:

a antologia Geração Beat publicada pela editora Brasiliense, em 1968, com poemas e trechos de peças traduzidos de ícones da contracultura como Norman Mailer, Gregory Corso, Diane Di Prima, Ray Bremser, entre outros, organizada pelo também poeta beat Seymour Krim, e traduzida para o português por Marcello Corção (HIRSCH, 2009, p.66).

Como um dos efeitos desses acontecimentos, principalmente no relacionamento mais próximo entre Brasil e Estados Unidos, para a autora,

a agressiva presença norte-americana não implicou na dissolução do sistema literário nacional. Pelo contrário, impulsionou a concretização de várias editoras no Brasil e, ao mesmo tempo, proveu o sustento de um grande número de escritores. Em outras palavras, auxiliou a materialização de projetos de maior prestígio intelectual, que não contavam com grande retorno financeiro (HIRSCH, 2009, p.66-67).

Outro trabalho que aborda as questões políticas e econômicas como efeito influenciador primordial na produção tradutória no Brasil é o de Marlova Gonsales Aseff, tese defendida em 2012, na UFSC, intitulada Poetas-tradutores e o cânone da poesia traduzida no

Brasil (1960-2009). Destacando o período que interessa ao nosso trabalho, as décadas entre

1960 e 1980, Aseff (2012, p.130-136) apresenta um panorama da poesia traduzida pelos irmãos Campos, assim como os demais autores citados anteriormente, como um marco para a teoria tradutória no Brasil. A autora cita a prática da tradução indireta de obras em línguas de

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menos alcance, como as obras russas, que foram pela primeira vez traduzidas diretamente do russo pelos poetas concretistas em conjunto com Boris Schnaiderman.

Em seguida, na década de 1970, Aseff lembra a crise das editoras causada pelo recrudescimento da ditadura militar de 1964. A autora, como já reportado acima também por Hirsch, cita a censura promulgada pelo AI-5, “que determinava a punição de editores que publicassem ‘material difamatório, obsceno e sedicioso’” como também aos livros “sobre temas referentes ao sexo, moralidade pública e bons costumes” (ASEFF, 2012, p.136). Nessa época os livros eram confiscados pela polícia política e até incêndios suspeitos aconteceram. Aseff (2012, p.137) recorda que depois da repressão houve a euforia da abertura política, causando uma ambivalência no teor das publicações. A autora cita Moriconi (2010, p.9), que diz que essa década foi de “curtição” e “desbunde”, mas também de “luta armada” e “contestação política e de costumes”. Nesse contexto, surgiu a chamada “Geração Marginal”, que buscou meios alternativos para difundir suas obras, por meio de livros artesanais que circulavam fora dos canais tradicionais.

Assim como Milton, Aseff lembra o incentivo do acordo MEC-SNEL-Usaid, de 1967, para a tradução de prosa, pincipalmente a norte-americana; segundo ela, foram subsidiados 51 milhões de livros traduzidos destinados às escolas. A autora cita Hirsch (2009, p.64), que faz uma análise sobre a situação tradutória da época; para esta última, há uma oposição entre a tradução de prosa e de poesia: “a tradução de prosa, conservadora, e a de poesia, inovadora e transgressiva, mas voltada a um público mais erudito e seleto” (HIRSCH, 2009, p.64); ainda para ela, “é na própria seleção dos poetas a serem traduzidos que o pioneirismo almejado pelos tradutores se revela” (HIRSCH, 2009, p.64). Para Aseff (2012, p.140), apesar da pouca atividade tradutória de poesia na época, atingida pela conjuntura política, as escolhas de poetas a serem traduzidos foram de “uma qualidade inegável” e marcadas pela “ousadia”.

Em seguida, na década de 1980, há um aumento significativo das vendas e um crescimento do mercado editorial. Aseff cita Moriconi, que avalia esse crescimento como reflexo da abertura e democratização política do país, “que buscava sintonizar-se com a forma histórica da globalização neoliberal” (MORICONI, 1997, p.306). O autor destaca o resultado positivo desse acontecimento que foi o crescimento inédito de poesia traduzida no Brasil. Aseff (2012, p.142) faz uma contagem dos poetas traduzidos, que passa de 16 na década de 1970 para 45 na década de 1980. Ela vê, portanto, na redemocratização um grande passo em favor de “empreitadas editoriais daquele tempo” e lembra também que o número de línguas estrangeiras traduzidas para o português dá um salto para 11 línguas (inglês, espanhol, alemão, francês, italiano, grego, latim, japonês, coreano, egípcio e holandês). Nesse período,

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houve o incentivo à tradução de poesia Beat; a editora Brasiliense, a mesma que publicou mais tarde as traduções de Paulo Leminski18, teve grande importância nessas publicações, tendo lançado em 1983 a coleção “Rebeldes e malditos”.

Aseff lembra a declaração de Claudio Willer sobre esse momento:

Novos ares, uma cultura de resistência ao autoritarismo, pessoas saindo de casa e procurando informações após o fim do AI-5 e da censura à imprensa, busca de alternativas às tendências literárias canônicas, o sucesso da poesia marginal, jornalismo cultural atrás de novas pautas: tudo isso favoreceu a recepção das obras beat que passaram a ser lançadas pelas editoras Brasiliense e L&PM a partir de 1983 (WILLER, 2009, p.117).

Interessa-nos destacar esse aumento e o incentivo da atividade tradutória no Brasil na década de 1980, pois trata-se da década em que o poeta Paulo Leminski publicou todas as traduções de livros completos. Dessa forma, percebemos como o incentivo às traduções foi reflexo do momento político e cultural da época no país.

Como lembra Wyler (2003, p.13), falar da tradução no Brasil é algo distinto, pois, diferentemente de outros países da Europa que detêm o poder cultural e econômico e possuem uma língua hegemônica, em que a tradução não passa de 2,5 a 3,5% da produção editorial, no Brasil esse valor chega até 80% do mercado editorial, contando livros de prosa, poesia, referências, manuais e catálogos traduzidos. Diante dessa diferença a autora assinala que “apesar dessa presença maciça, o tradutor e seu trabalho permanecem ‘invisíveis’ aos olhos da maior parte da população do país” (WYLER, 2003, p.14). Para ela (WYLER, 2003, p.20), esse fato se deve a “um certo colonialismo cultural” existente na população brasileira, que reflete um complexo de inferioridade, fazendo com que essa população não confesse que lê traduções e mantenha títulos de livros e filmes pelos seus originais. Ao lembrar que “toda reescritura, seja qual for a intenção que lhe dê origem, reflete uma certa ideologia e uma poética, cuja função é levar o receptor a reagir de uma dada maneira” (WYLER, 2003, p.11), podemos conferir à tradução o poder de manipulação a serviço de um determinado poder. Nesse sentido, a autora conclui que, diferentemente dos países hegemônicos, em que os livros traduzidos têm um fim em si mesmos, no Brasil, diante de seu grande número, “a tradução tem sido durante cinco séculos um veículo de aculturação” (WYLER, 2003, p.25).

Apesar do processo de “aculturação” possuir de fato um significado histórico majoritariamente negativo, a “aculturação” citada por Wyler pode ser entendida tanto como um processo de sujeição social e cultural, como a imposição do governo brasileiro durante a

18 As primeiras obras traduzidas por Paulo Leminski pela Brasiliense foram: Pergunte ao pó (Ask the dust), de

John Fante (1984) e uma parte dos poemas da coletânea Vida sem fim – as minhas melhores poesias (Endless life), de Lawrence Ferlinghetti (1984).

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ditadura militar no incentivo restrito às traduções de literatura norte-americana, quanto um fenômeno de interação social e cultural, em que há a absorção de uma cultura pela outra, mantendo aspectos da cultura inicial e absorvendo, ou “deglutindo”, como denominavam os artistas do movimento modernista, conceitos de outras línguas e culturas.

Sobre essa questão, Michaël Oustinoff oferece alguns dados que clareiam a diferenciação que há entre os países e suas relações com a literatura traduzida: “a tradução representa apenas 2 a 4% das obras publicadas nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, enquanto representa 8 a 12% na França, em torno de 14% na Alemanha, chegando a 25% na Itália e a 39% no Brasil” (OUSTINOFF, 2011, p.51). O autor ressalta ainda que, apesar desses números, desde a segunda guerra mundial, o inglês é a língua mais traduzida no mundo, evidenciando um desequilíbrio flagrante, agravado pelo fato de as traduções anglo-saxônicas obedecerem a normas de legibilidade e preferirem dar ao seu leitor a impressão de que o que está sendo lido foi escrito originalmente na língua traduzida. O autor conclui, portanto, que “essa ‘transparência’ reforça ainda mais o efeito uniformizador do etnocentrismo, em detrimento das demais culturas. A tradução é, nesses tempos de globalização, uma questão que não deveria deixar ninguém indiferente” (OUSTINOFF, 2011, p.51).

Nesse sentido, Rajagopalan (2000) enfatiza esse processo de “repressão colonial”, o qual a tradução influencia, mas do mesmo modo apresenta o outro lado dicotômico, ou seja, de que a tradução funciona também como um meio disponível para que a nação colonizada possa exercer uma resistência significativa. Rajagopalan (2000, p.3) cita o livro da indiana Tejaswini Niranjana, Siting Translation (1992), em que a autora demonstra como a tradução exerce uma função de instrumento para a manutenção de poder entre colonizador e colonizado. O estudioso (2000, p.4) lembra que a colonização se dá tanto no sentido político como no sentido discursivo e, neste último, por ser mais sutil, acaba sendo mais difícil de ser combatido. Para Niranjana (1992), os colonizados podem resistir pela tradução, oferecendo traduções alternativas de seus textos. Logo, conclui Rajagopalan (2000, p.18) que o grande avanço está em perceber que a linguagem está no centro dos acontecimentos e não em um lugar periférico.

Também, por esse ângulo, Maria Lúcia Daflon (2009, p.113-114), no artigo “A quem interessa?”, destaca a discussão de Even-Zohar sobre a importância dos sistemas de literatura traduzida na formação de polissistemas literários, sendo que é de grande importância analisar as obras traduzidas em relação com sua literatura receptora, dando atenção para seu posicionamento central e periférico e seu papel na formação da literatura nacional. Ela destaca o artigo The Position of Translated Literature within the Literary Polysystem, em que

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