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2. Um estudo do Satyricon de Petrônio: entre a crítica social e a ironia

2.4 Petrônio poeta

A alternância livre entre prosa e verso é uma das características marcantes do Satyricon, de Petrônio. Fora a tradição da Sátira Menipeia, essa particularidade formal da obra não era comum nos romances da antiguidade que chegamos a conhecer, embora apareça de forma esporádica, por exemplo, no Asno de Ouro, de Apuleio (4.33; 9.8). Como lembrou Schmeling (2011, p.xxxviii), o Satyricon é o único romance da antiguidade em que há pelo menos 30 poemas preservados, fora o material que foi perdido e que não chegamos a conhecer. O estudioso realça também que muitos outros poemas que chegaram à atualidade e que foram transmitidos como fragmentos são denominados como sendo de Petrônio.

As ligações do Satyricon com a Sátira Menipeia são imprecisas. A origem do gênero chegou até nós a partir da obra de Varrão (séc. I-II d.C.), dos cerca de 600 versos de fragmentos dos seus escritos denominados Satirae Menipeae. Segundo Dicionário Oxford de

Literatura Clássica (HARVEY, 1987, p.509), nesta obra Varrão escreveu sátiras calcadas no

modelo de Mênipos de Gádara115, realizando uma mistura de prosa e verso, algumas delas em diálogo ou forma semidramática. Nelas havia esboços críticos da vida romana, sobre diversos assuntos e escritas em motivo jocoso. Muitas delas combatiam o luxo crescente da época, ou as doutrinas de algumas escolas gregas de filosofia.

Como apontou Conte (1999, p.461), o ponto de referência mais próximo das características presentes no Satyricon, no que tange à mescla de prosa e poesia, é encontrado na Apocolocyntosis, de Sêneca. Porém, apesar da aproximação entre as duas obras, há algumas divergências que podem ser destacadas. Segundo Conte (1999, p.462), a sátira senequeana é breve, diferentemente do longo desenvolvimento da obra petroniana; além disso, em Sêneca há um ataque pessoal diante de uma situação precisa, dirigido contra um alvo explícito, o falecido imperador Cláudio; já em Petrônio não há uma intenção específica e na obra são construídas numa relação intertextual paródias individuais e retratos distorcidos que envolvem diversos personagens como o próprio Sêneca, Virgílio, Homero, a retórica, a poesia ocasional, os novos ricos, os parasitas e outras figuras típicas da sociedade romana. Diante disso, apesar da tradição menipeia estar presente na obra petroniana na mistura de estilos, na utilização do prosimetrum (mistura de prosa e verso) e, até mesmo, na narrativa estruturada em blocos, ela não parece ter ditado uma forma pronta para o Satyricon. Conte conclui, portanto, que “essa alternância de prosa e verso que no estilo Menepiano era apenas

115 “Escravo de nascimento, que viveu no s. III a.C., era um filósofo da Escola Cínica que satirizava a insensatez dos homens em geral e dos filósofos em particular numa mistura de prosa e verso” (HARVEY, 1987, p.333).

um recurso formal torna-se em Petrônio uma nova maneira de construir o relato: as inserções poéticas revelam frequentemente ao leitor a perspectiva em que o narrador Encólpio vê as coisas116” (CONTE, 1999, p.462).

Nesse sentido, Courtney (2001, p.33) também destaca que Petrônio não adota o

prosimetrum apenas para transmitir o estilo ou o conteúdo Menepiano, porém tem como

objetivo adequar essa característica formal ao seu propósito literário. O estudioso enfatiza que, diferentemente de Sêneca e Varrão, por exemplo, Petrônio não utiliza partes em língua grega (exceto a resposta da Sibila, no poema 48.8) e também não mistura a língua latina e a língua grega.

Segundo Catherine Connors (1998, p.1), essa forma distinta de Petrônio praticar a ficção romanesca, ou seja, empregar diferentemente de outros romances da antiguidade um grande número de poemas que se mesclam com a prosa, reflete uma forma difenciada de explorar e até mesmo contestar o “aparato da memória literária”. Nesse sentido, para a estudiosa, quando Petrônio veste a máscara de poeta, “a narrativa reconhece e incorpora as estruturas mais estilizadas e tradicionais da poesia dentro das invenções fluidas da ficção em um idioma relativamente naturalista117” (CONNORS, 1998, p.1). Para Connors (1998, p.2) os poemas no Satyricon funcionam muitas vezes como projeção das histórias que são contadas no texto em prosa, transpondo estes relatos para um “registro representacional definido pelas restrições herdadas da poesia”. Assim, no romance há um jogo entre prosa e poesia, marcado pela voz do romancista de prosa que não escolhe ser poeta, mas que transfere para outras vozes essa qualidade poética. A estudiosa conclui, portanto, que “os poemas de Petrônio são parte integrante do espaço ficcional do Satyricon. [...] Somente estando atento a tudo que é vívido, engraçado, melancólico, intrigante ou desconcertante sobre esse romance, podemos entender o que ele pode nos dizer sobre literatura e cultura latinas118” (CONNORS, 1998, p.4).

Sobre os aspectos principais de Petrônio como poeta, Connors os divide em quatro: “sua paródia épica ao longo do romance, seu uso de formas curtas e menos elevadas, e seus dois

116 “That alternation of prose and verse that in the Menippean was only a formal resourse becomes in Petronius a novel way of constructing the account: the poetic inserts often reveal to the reader the perspective from the narrator Encolpius sees things” (CONTE, 1999, p.462).

117 “The narrative ackowledges and incorporates the more stylized and traditional structures of poetry within the fluid inventions of fiction in a relatively naturalistic idiom” (CONNORS, 1998, p.1).

118 “Petronius’s poems are an integral part of the fictional space of the Satyricon. [...] Only from being attentive to all of what is vivid, funny, melancholy, puzzling or offputting about this novel can we understand what it can tell us about Latin literature and culture ” (CONNORS, 1998, p.4).

poemas mais longos sobre a queda de Troia e a Guerra Civil119” (CONNORS, 1998, p.4). Os motivos e as paródias épicas estão sempre presentes no romance e nos poemas funcionam como episódios individuais e na utilização de hexâmetros épicos; como contraste a essa formulação Petrônio insere na obra formas poéticas mais curtas como a sátira, a elegia e o mimo. Para Connors (1998, p.5), os padrões temáticos, os aspectos poéticos, os usos de linguagem figurativa e literária são aplicados aos dois poemas mais longos do texto.

Outro aspecto relevante da construção poemática do Satyricon é o fato de que os poemas são falados por diversos personagens e isso imprime uma característica individual para cada poema. Eumolpo, por exemplo, profere vários poemas, como no caso das inserções mais longas sobre a Tomada de Troia e a Guerra Civil. Conte (1999, p.461) enfatiza que a maioria dos poemas representam intervenções do próprio narrador, que entre as histórias relatadas faz uma pausa para comentá-las. Segundo Conte (1999, p.461), esses comentários em forma de poemas frequentemente possuem uma função irônica, pois, mesmo que mostrem uma extraordinária versatilidade técnica de Petrônio como poeta, eles não correspondem em estilo e nível literário com os conteúdos das situações em que deveriam se encaixar. Conte conclui, nesse sentido, que essa característica faz com que sejam construídos “contrastes, mudanças súbitas entre expectativa e realidade, entre ilusões fabricadas a partir de fantasia (fantasia alimentada por sua vez sobre cultura e literatura) e o despertar abrupto de uma vulgaridade brutal120” (CONTE, 1999, p.461). Nesse sentido, Schmeling (2011, p.xxxix) assinala que os poemas atribuídos a Encólpio demarcam um nível distinto entre a narrativa em prosa e a narrativa em verso, e essa distinção alterna a expressão de humor do personagem, enquanto ele atravessa aventuras como simples personagem ou quando aparece como narrador, sendo que esses poemas, assim como já apontou Conte, estão diretamente conectados aos contextos da prosa. Schmeling (2011, p. XLIV) lembra também que a maioria dos poemas reproduzidos pelo narrador apresentam suas reflexões, que “universalizam a situação específica que está sendo narrada”, porém há outros tipos também, como meras descrições (131.8, 135.8), outros poemas que simplesmente continuam a narrativa (132.18) e outros em que algumas vezes o narrador aproveita os poemas para reviver as emoções que experimentou como personagem. Para Schmeling (2011, p.XLIV), de um modo geral, quando verso e prosa definem dois momentos diferentes, é sempre o narrador quem cria efeitos

119 “His epic parody throughout the novel, his use of short, less elevated verse forms, and his two longer poems on the fall of Troy and the Civil War” (CONNORS, 1998, p.4).

120 “Contrasts, sudden shifts between expectation and reality, between illusions fabricated out of fantasy (fantasy that is nourished in turn on culture and literature) and abrupt awakenings of a brutal vulgarity” (CONTE, 1999, p.461).

instaurando um clima artístico, assim, esses dois momentos não devem ser separados, para não perder o jogo literário criado pelo autor.

Quando os poemas não são recitados pelo narrador, estes que são maioria na obra, eles são atribuídos a outros personagens, como já lembramos a respeito daqueles ditos por Eumolpo. Schmeling (2011, p.XL) aponta outros, como os recitados por Quartila (18.6), Enotea (134.12) e por um cinaedus (23.3). Schmeling (2011, p.XL) destaca o único poema recitado por Agamenon, e diz que este se torna muito importante para a narrativa, pois conecta com a prosa precedente a ele; sobre suas características formais, o estudioso aponta que esse poema é composto por duas partes, em diferentes medidas poéticas (coliambos e hexâmetros) e que estão claramente conectados. Sobre os poemas proferidos por Eumolpo, Schmeling (2011, p.XLI) diz serem mais complexos do que os outros poemas da obra, e consequentemente os mais longos, como já havíamos comentado. Eumolpo é um personagem importante para a narrativa poética do Satyricon, pois funciona como um poeta profissional e faz diversas declarações, principalmente em seu ensaio poético mais ambicioso o Bellum

Civile. Para Schmeling, Eumolpo é construído como “um poeta compulsivo que não pode

desistir daquilo que acredita ser sua vocação, embora já há muito tenha percebido que não oferece benefícios práticos121” (SCHMELING, 2011, p.XLI). Os dois poemas mais extensos de Eumolpo fazem clara referência a outros poetas, assim como destaca Schmeling (2011, p.XLII): o poema da “Tomada de Troia” é vista como paródia da tragédia de Sêneca, pois se assemelha aos relatos de “mensageiros” comuns na tragédia, já o poema da “Guerra Civil” faz referência indireta a Lucano, ao dizer que o épico histórico não pode dispensar a maquinaria mitológica tradicional.

Finalmente, outro importante personagem da narrativa petroniana que é retratado compondo poesias, é Trimalquião. Schmeling (2011, p.XLIII) lembra que curiosamente nem todos os poemas feitos por Trimalquião são recitados em seu Banquete, mas apenas alguns que são proferidos pelo próprio personagem e que são suficientes para demonstrar como este é um poeta ruim. Sobre o conteúdo dos poemas desse personagem, o estudioso assinala dois deles: “os dois “epigramas” em 34.10 e 55.3 contêm toda a “filosofia” muito lugar-comum do autor: o prazer - especialmente comida e bebida - é o único remédio contra a morte e o infortúnio122” (SCHMELING, 2011, p.XLIII).

121 “A compulsive poet who cannot give up what he bilieves to be his calling, even though he has long since realized that it offers no practical benefits” (SCHMELING, 2011, p.xli).

122 “The two ‘epigrams’ at 34.10 e 55.3 contain the whole, very commonplace ‘philosophy’ of the author: enjoyment - especially food and drink - is the only remedy against death and misfortune” (SCHMELING, 2011, p.xliii).

Diante de todos esses dados sobre a construção poemática específica do Satyricon e as técnicas utilizadas por Petrônio na criação de seus poemas, verificamos como esta característica da mescla entre prosa e verso na obra petroniana é importante para entendê-la em sua unidade e, portanto, trata-se de uma elaboração muito particular e complexa que vai além da tradição menipeia, revelando mais um traço inovador desse autor da antiguidade.