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2 O RISCO AMBIENTAL E VULNERABILIDADE SOCIOAMBIENTAL NA

2.1 O CONCEITO DE RISCO NA MODERNIDADE E A SOCIEDADE DE RISCO

2.1.3 Construção e percepção social do risco: risco como construção social e/ou

Se a ciência e a técnica não são capazes, isoladamente, de mensurar com precisão os riscos e suas consequências, cumpre considerar também a percepção social do risco.

Neste sentido, outra perspectiva, que se desenvolve concomitantemente com a perspectiva da percepção cultural do risco, merece atenção. Esta perspectiva é apurada por

56

Ibid., p. 127.

57 Ibid., p. 129. O autor elenca alguns exemplos como o efeito estufa, a radiação advinda de acidentes nucleares ou do lixo atômico, destruição de florestas, entre outros.

58

Ibid., p. 139-140.

59 GUIVANT, Julia S. A Trajetória das Análises de Risco: Da periferia ao centro da teoria social, p. 19. Disponível em: <http://www.iris.ufsc.br/pdf/trajetoriasdasanalisesderisco.pdf>. Acesso em 31 jul 2015.

Acosta60, ao diferenciar duas vertentes resultantes do caráter “construtivo” do risco, que podem ser segmentadas em “o risco como construção social” e a “construção social de riscos”. A diferença destas duas abordagens consiste no fato de que, na construção social do risco, não cabe avaliar a percepção do risco apenas dentro de um contexto sociocultural, mas de considerar nesta avaliação, a atividade humana enquanto precursora de criação ou no agravamento de situações de risco61.

Assim esclarece Silveira:

Por outras palavras, a questão não é evidenciar que a percepção do risco é um produto complexo de conhecimento e aceitação, e sim que as situações de vulnerabilidade, bem como as mazelas sociais em geral, são produzidas por uma confluência de fatores naturais e de fatores sociais – e, nesse sentido, decorrem de um sem-número de razões de ordem econômica, política, jurídica, demográfica, dentre outras. Estas razões que devem ser objeto de investigação autônoma, a fim de que se compreenda como são produzidas as ameaças e as situações, ditas de vulnerabilidade, em que se encontram determinados grupos sociais, comunidades, classes, indivíduos62.

A partir disto é que se atenta ao fato de que a conduta humana não diz respeito apenas à compreensão e/ou aceitação do risco, mas pode ser propulsora na produção ou fomento de novas situações de risco, que se formam a partir de vulnerabilidades63 sociais, econômicas e até mesmo ambientais.

Desta forma, a construção social do risco pode vincular-se à percepção e as noções de vulnerabilidade e desigualdade64.

Continuando, segundo Silveira, a observação do risco considerando critérios sociais permite contemplar dois enfoques relevantes: a) a partir da perspectiva culturalista, a construção social do risco “oferece a percepção dos grupos sociais acerca dos riscos que podem tornar mais vulneráveis suas comunidades”; e, b) a partir da perspectiva socioeconômica, em que a construção social do risco “parte da gênese de situações de vulnerabilidade às quais grupos específicos da sociedade estão sujeitos65”.

60

ACOSTA, Virgínia Garcia. El riesgo como construcción social y la construcción social de riesgos. Desacatos, septiembre-deciembre, n. 19, Centro de Investigaciones y Estudios en Antropologia Social, Distrito Federal, México, 2005.

61

SILVEIRA, Clóvis E. M. da. A teoria da sociedade de risco como instrumento para a compreensão da emergência dos movimentos sociais urbanos no Brasil: um contraponto crítico. Revista Quaestio Iures, vol. 08, nº. 03, Rio de Janeiro, 2015, p. 1918.

62 Id. 63

A questão das vulnerabilidades será abordada com maior detalhamento na próxima seção. 64 SILVEIRA, op. cit., 2014, p. 320.

Este último aspecto importa, sobremaneira, no que diz respeito aos riscos condizentes aos eventos naturais, em que a ação humana acaba, ainda que inanimadamente, por motivar resultados excessivamente danosos ou até mesmo irreversíveis diante da ocupação de áreas impróprias para moradia. Eventos antes entendidos como resultados apenas de causas naturais, passam a ser observados a partir da interferência humana, como no caso da degradação ambiental, do crescimento demográfico e dos processos de urbanização, exemplos estes citados por Acosta, em que o ponto em comum a todos é a desigualdade social e econômica, tanto na escala local, quanto regional, nacional e até mesmo internacional66.

E, a partir da consideração da desigualdade, esclarece Acosta que:

La construcción social del riesgo, desde esta perspectiva, remite en su esencia a las formas en que la sociedad construye contextos frágiles que se asocian e incrementan las dimensiones de la vulnerabilidad. Todo ello se traduce en una falta de adaptación al medio físico que provoca, incluso, que el próprio médio se convierta en una amenaza e, incluso, en un factor de generación de riesgo67.

Conectando esta ideia ao exemplo da moradia, percebe-se uma confluência entre os indivíduos que podem contribuir para a produção do risco, e aqueles que se tornam vítimas de um eventual desastre oriundo desta circunstância, advinda da conduta humana, lembrando o que Beck conceituou como efeito bumerangue. Todavia, há que se considerar que a vulnerabilidade socioeconômica impossibilita uma adaptação adequada aos ambientes que acabam por transmutar-se em espaços para produção de novos riscos.

Igualmente, há que se considerar que, em face da ocorrência de um desastre, os indivíduos mais pobres terão uma capacidade de resposta compatível com sua situação socioeconômica, o que pode impossibilitar uma pronta recuperação e pode remeter estes indivíduos para uma situação mais degradante em relação a que se encontravam previamente ao evento.

Os desastres, por sua vez, vão acabar por revelar as seguintes circunstâncias: expõe como as sociedades produzem riscos, assim como expõe as maneiras das sociedades perceberem esses riscos68.

Assim, conclui Acosta, a construção social do risco aponta para a produção e reprodução de situações de vulnerabilidade, que serão determinantes quanto aos efeitos de

66

ACOSTA, op. cit., p. 16-17.

67 ACOSTA, op. cit., p. 22-23. “A construção social do risco, a partir desta perspectiva, remete em sua essência às formas em que a sociedade constrói contextos frágeis que se associam e incrementam as dimensões da vulnerabilidade. Tudo isso se traduz em uma falta de adaptação ao meio físico que provoca, que o próprio meio se converta em uma ameaça e, até mesmo, em um fator de geração de risco”. (tradução livre da autora).

uma ameaça natural, constituindo-se como uma das responsáveis na formação de um desastre69. E isso porque se torna essencial, na compreensão do risco e, por consequência, do desastre verificar o contexto de sua ocorrência, considerando neste as variáveis socioeconômicas dos indivíduos atingidos, o que permite perceber que a ameaça, seja natural ou antropogênica, não se constitui a única motivação do evento.

Assim, esclarece Acosta:

De este enfoque se deriva la necesidad de analizar de manera conjunta los efectos de la amenaza y los elementos que conforman el riesgo, entre los cuales la vulnerabilidad ocupa un lugar prominente. La magnitud y severidad de las vulnerabilidades sociales y económicas acumuladas, asociadas con la presencia de una determinada amenaza, resultan en eventos desastrosos producto de procesos que, como tales, deben ser entendidos y aprehendidos.70

A consideração da vulnerabilidade como um dos eixos centrais na conformação do risco, defendida por Acosta, permite estabelecer uma contestação à teoria da Sociedade de Risco de Beck, já que, para referido autor, as questões atinentes à pobreza, logo, de vulnerabilidade, são características da Sociedade Industrial e perdem espaço para a lógica da distribuição de riscos71.

Embora exista a possibilidade de que, revertendo-se o risco em desastre, toda a sociedade seja atingida, a incidência pode ocorrer em escalas diferentes. Desta forma, embora todos sejam atingidos, aqueles indivíduos que vivem em condições de maior escassez material podem sofrer os danos mais acentuadamente, o que pode prejudicar ou até mesmo impossibilitar uma recuperação72

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Em Liberdade ou Capitalismo, Johannes Willms comenta a ocorrência de certa ilusão de que a riqueza minimizaria riscos e que “os ricos podem se proteger melhor do que os pobres”, considerando o autor que, na Segunda Modernidade “a riqueza deixou de ser uma prevenção contra os riscos”. O comentário sequencial de Beck na citada obra dá conta de manter o argumento da obra Sociedade de Risco, afirmando que, na dinâmica dos riscos

69 Id.

70 ACOSTA. op. cit., p. 18. “Deste enfoque deriva a necessidade de analisar de maneira conjunta os efeitos da ameaça e os elementos que conformam o risco, entre os quais a vulnerabilidade ocupa um lugar proeminente. A magnitude e severidade das vulnerabilidades sociais e econômicas acumuladas, associadas com a presença de uma determinada ameaça, resultam em eventos desastrosos produtos de processos que, como tais, devem ser entendidos e apreendidos”. (tradução livre da autora).

71

BECK, op. cit., 2011, p. 25.

72 KELLER, Rene J.; SANTOS, Sandrine A. A vulnerabilidade social, a pobreza e os processos de formação e percepção social do risco. In: SILVEIRA, Clóvis E. M. da; GRAZIANO SOBRINHO, Sérgio F. C. (orgs.).

Direito, Risco e Sustentabilidade: abordagens interdisciplinares [recurso eletrônico]. Caxias do Sul, RS: Educs,

2017, p. 40. Disponível em: <https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/ebook-direito-risco_2.pdf>. Acesso em 19 abr. 2017.

globais, haveria uma democratização que acaba por impor uma harmonização na exposição dos indivíduos, remetendo novamente ao efeito bumerangue73

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Em 2010, Beck chegou a propor um resgate da vulnerabilidade social, associando-a ao risco74, alegando que a desigualdade social é equivalente na desigualdade de exposição ao risco, admitindo uma lógica econômica hierárquica, mas não abandonando, porém, a afirmação de que “classe é um conceito demasiadamente „fraco„ e „antiquado‟ para dar conta da nova radicalidade e complexidade das desigualdades sociais numa sociedade mundial de risco75”.

Apesar disto, há que se reconhecer, então, que Beck adere à necessidade da vulnerabilidade social para assimilação dos riscos sociais e políticos advindos das mudanças climáticas, admitindo condicionantes sociais que interferem na noção de risco, em especial nos países periféricos, conectando-os às catástrofes naturais, o que se percebe a partir da entrevista concedida em 2010, mas não das bases delimitadas em sua obra, inicialmente eurocêntrica76.

Dito isto, estão expostas três abordagens acerca do risco que traduzem perspectivas diferentes ao longo das últimas décadas.

A teoria analisada se preocupou, essencialmente, com os riscos tecnológicos, enquanto os naturais seguem em crescimento. Os riscos naturais, quando convertidos em desastres, têm o seu impacto e a sua capacidade de recuperação, relacionados diretamente com o quadro de vulnerabilidade em que suas vítimas se encontram. A vulnerabilidade se torna, assim, também crescente e merece atenção para a compreensão do contexto de exposição ao risco, como se verá a seguir.