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4 PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL E AS POSSIBILIDADES DE

4.2 O PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL A PARTIR DA LEI Nº 10.257/2001

Embora se tenha ciência de que o processo de urbanização brasileira tenha iniciado na década de 20, observa-se, como antes exposto, que seu ponto alto se deu na década de 70358, revelando-se de forma acelerada e desprovida de planos de ocupação, que se refletiria em um problema não apenas social, mas ambiental, mesmo diante da participação do Brasil nos principais debates acerca da necessidade da salvaguarda do ambiente e dos indivíduos.

Neste período foram promulgadas leis que tratavam da ocupação urbana, ainda que não apenas desta, como é o caso da Lei dos Loteamentos, Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, tratando do parcelamento do solo urbano e que de certa forma buscava trazer diretrizes jurídicas para a atuação dos municípios neste sentido.

Todavia, uma maior relevância a essa problemática foi dada com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que vai constituir a função social da cidade359 como um direito a ser assegurado, situando-o como um bem coletivo, reforçando a necessidade de planejamento e de remodelamento do espaço urbano brasileiro.

Desta forma, a inserção do Capítulo II, da Política Urbana, ainda que no Título VII, da Ordem Econômica e Financeira, da Constituição Federal de 1988, em seus artigos 182 e 183 e, posteriormente, a necessidade de regulamentação dos mesmos, estimula, ainda que após uma tramitação decenal, a criação da Lei nº 10.257/2001, conhecida como o Estatuto da Cidade, que se configura como um relevante instrumento socioambiental, visto que solidifica

358 FERNANDES, Edésio. O Estatuto da Cidade e a ordem jurídico-urbanística. In: CARVALHO, Celso Santos; ROSSBACH, Anaclaudia. (Org.). O Estatuto da Cidade: comentado. São Paulo: Ministério das Cidades: Aliança das Cidades, 2010, p. 58. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNPU/ Biblioteca/PlanelamentoUrbano/EstatutoComentado_Portugues.pdf.>. Acesso em 15 Set. 2015.

359BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 08 jan. 2017. Destaca o art. 182: A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

para orientar “o uso da propriedade urbana em prol do coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental360”.

Citada lei, regulamentando então os artigos 182 e 183, traz uma tutela imediata, e reforça que a noção de sustentabilidade, já atribuída no art. 225 da Constituição Federal, trazendo, neste aspecto, uma tutela mediata para a proteção do ambiente, intensificando a noção de que a política urbana e o direito ao ambiente equilibrado, que são indissociáveis à qualidade de vida e à dignidade humana361.

Há que se atentar para o fato de que, tendo sido o Estatuto da Cidade promulgado em 2001, o crescimento das cidades se deu, até então, distante dos preceitos dessa lei e até mesmo de outras menos específicas (leis municipais, Código de Obras, etc.), consolidando-se sem políticas públicas de financiamento ou estruturação e sem recursos técnicos, ou seja, a população veio para a cidade, instalando-se como podia a vista dos poucos recursos financeiros e técnicos disponíveis, formando-se basicamente pela autoconstrução362.

O processo de industrialização oferecia uma nova oportunidade de trabalho e renda aos indivíduos, bem como incentivava ao consumo de bens materiais. Entretanto, esse trabalho se mostrava de forma árdua, enquanto a renda não aproximava muitos desses indivíduos de habitações adequadas.

Maricato esclarece com mais afinco esta relação ao elucidar:

Mas a cidade também não é apenas reprodução da força de trabalho. Ela é um produto ou, em outras palavras, também um grande negócio, especialmente para os capitais que embolsam, com sua produção e exploração, lucros, juros e rendas. Há uma disputa básica, como um pano de fundo, entre aqueles que querem dela melhores condições de vida e aqueles que visam apenas extrair ganhos363.

Essa característica pode ser atribuída ao sistema capitalista, que vislumbra, na ocupação do espaço urbano, mais uma forma de mercadoria, mas uma mercadoria restrita, com valores não compatíveis com a renda básica, não alcançável pelos salários da maioria dos indivíduos. A estes indivíduos, assim, resta distância de uma renda equivalente para a

360 Nestes termos o art. 1º da referida Lei.. BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ LEIS_2001/L10257.htm.> Acesso em 08 jan. 2017.

361

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da cidade comentado: Lei n. 10.257/2001: Lei do meio ambiente artificial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 18.

362 MARICATO, Ermínia. Dimensões da tragédia urbana. (Não paginada). Disponível em: <http://www.fau. usp.br/depprojeto/labhab/biblioteca/textos/maricato_tragediaurbana.pdf>. Acesso em: 21 jan. 2017.

363 MARICATO, Ermínia Maricato [et al.]. Cidades Rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1.ed. São Paulo: Boitempo, Carta Maior, 2013, p. 20.

aquisição deste bem e dos financiamentos públicos para a aquisição da habitação adequada, que o destina a ilegalidade na urbanização364.

Por essa razão também, a ocupação humana das cidades que se dá, em muitos casos, inapropriadamente, é vista com uma das causas primordiais da degradação ambiental, que se constitui como uma consequência desta 365.

É a partir de todo este cenário que se observa a importante lição de Lefebvre, ao mencionar que a cidade

é a gestação de uma sociedade urbana, uma urbanização completa, em que o tecido urbano se prolifera, explodindo a grande cidade e dando lugar a duvidosas excrescências: subúrbios, conjuntos residenciais ou complexos industriais, pequenos aglomerados satélites pouco diferentes de burgos urbanizados366.

Todas essas concepções precisam ser incorporadas no novo contexto de planejamento urbano, a fim de que, pela sustentabilidade, o mesmo se demonstre capaz de absorver e proteger a igualdade para o pleno desenvolvimento de todos os ocupantes da urbe.

De toda sorte, a partir do Estatuto da Cidade, contempla-se o estabelecimento de uma política urbana, delineada a partir do art. 2º do referido diploma, no qual se observam igualmente as diretrizes norteadoras do desenvolvimento para que a cidade incorpore sua função social efetivamente, estabelecendo-se de forma sustentável e configurando-se como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para às presentes e futuras gerações, tendo presente que o próprio acesso à cidade, enquanto bem coletivo, já se traduz em um direito a ser resguardado.

Tais diretrizes guardam singular importância para que se atinja este direito à cidade, que Harvey, dando prosseguimento ao exposto por Lefebvre, trata como um direito de renovar, de transformar a cidade para que corresponda ao direito à vida urbana367.

Por esta razão, Harvey descreve a cidade como um espaço de realização dos desejos dos indivíduos que nela habitam, como um instrumento de realização dos direitos humanos368. Neste sentido, complementa:

364

MARICATO, op. cit., 2012, p. 155-157.

365

RECH, Adir U.; RECH, Adivandro. Cidade Sustentável, direito urbanístico e ambiental: instrumentos de planejamento. Caxias do Sul, RS: Educs, 2016, p. 59-61.

366 LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: UFMG, c1999, p. 43.

367

Ibid., p. 117.

368 HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: MARICATO, Erminia et al. Cidades rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1. ed. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013a, p. 27-28.

A liberdade da cidade é, portanto, muito mais que um direito de acesso àquilo que já existe: é o direito de mudar a cidade mais de acordo com o desejo de nossos corações. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e a nossas cidades dessa maneira é sustento, um dos mais preciosos de todos os direitos humanos369.

E é por esta aproximação entre a realização de um direito à cidade, à habitação segura e à proteção dos direitos humanos, que o planejamento urbano, nos termos do Estatuto da Cidade, guarda sua importância, por ter hoje um caráter preventivo, evitando novas ocupações em áreas de risco e, também, pelo caráter corretivo, vez que, na medida do possível, viabiliza a correção das falhas da ocupação desordenada370.

O diploma legal em questão permite idealizar inúmeros avanços, especialmente por ser uma direção de gestão democrática da cidade, aliando a proteção do ambiente e dos seres humanos, podendo direcionar seus esforços, entre outros necessários, para o afastamento e/ou mitigação de novos desastres reflexos da ocupação desordenada.

A tarefa é indubitavelmente árdua, em face de um problema frequentemente observado no Brasil, que é a discrepância entre o dispositivo legal e a concretização na prática dos avanços que o texto legal carrega, especialmente porque, até mesmo os gestores públicos e parte da sociedade se mantêm presa ao estereótipo “culturalmente excludente, tradicionalmente conservador”, que, baseado na propriedade privada como garantia, encara estes problemas como individuais e não coletivos371.

Tomando por base o constante interesse e incentivo ao crescimento do país, há que se considerar que “Instrumentos legais e planos urbanísticos que orientem as cidades em direção ao „crescimento harmônico e equilibrado‟ (palavras frequentes nas introduções dos Planos Diretores) não faltam372”. O próprio Estatuto da Cidade se mostra como progresso neste sentido. Porém, “a história do urbanismo brasileiro mostra que, com a ausência dos olhos da sociedade, não há como impulsionar a aplicação de planos e leis que poderiam definir uma nova era do desenvolvimento urbano no Brasil373”.

Diante do exposto, o Estatuto da Cidade, ainda que se apresente como instrumento a ser melhor e efetivamente implementado, pode configurar-se como basilar na regulação da

369 Ibid., p. 28.

370 PIRES, George N. M.; SANTOS, Sandrine A. Função social da cidade, risco ambiental e resiliência urbano- social. In: BÜHRING, Márcia Andrea (org.). Função socioambiental da propriedade [recurso eletrônico]. Caxias do Sul, RS: Educs, 2016, p. 107. Disponível em: <https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/ebook-funcao- socio.pdf>. Acesso em 16 dez. 2016.

371 MARICATO, op. cit., 2010, p. 5. 372

MARICATO, Ermínia. Dimensões da tragédia urbana. (Não paginada). Disponível em: <http://www.fau. usp.br/depprojeto/labhab/biblioteca/textos/maricato_tragediaurbana.pdf>. Acesso em: 21 jan. 2017.

mercantilização do espaço urbano e no afastamento da segregação social e espacial que tem levado as populações mais carentes a ocupar áreas ambientalmente inadequadas, passíveis de asseverar os reflexos de desastres naturais, que precisam ser atacados cada vez com maior veemência.

4.3 O PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL A PARTIR DA LEI Nº 12.608/2012