• Nenhum resultado encontrado

2. Lá onde o vento desenrosca sua imensa cauda

2.7 Construção ritual da morada

Porque essa casa sou eu mesmo.

(Um rio chamado tempo)

Relativamente à morada humana há, nas sociedades tradicionais, também uma necessidade de consagrar a casa, instaurando-a como centro do mundo, imago mundi, conforme apresentam as estudiosas Fonseca e Cury, em Espaços ficcionais:

A casa simboliza em geral o centro do mundo, sendo a imagem do universo. No romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, é denominada Nyumba- Kaya, como forma de inscrever no nome reduplicado, na sua identidade, marcas do

norte e do sul: “Nymba é a palavra para nomear „casa‟ nas línguas nortenhas. Nos

idiomas do Sul, casa se diz „kaya‟”. A sempre mesma e a sempre outra casa.39

Nyumba-Kaya, a grande casa do Malinanes, estabelece-se, em Um rio chamado tempo, também como um eixo, um ponto central e sagrado, como afirma Marianinho logo que desembarca em Luar-do-Chão e se depara com a grandeza de sua antiga morada:

A grande casa está defronte a mim, desafiando-me como uma mulher. Uma vez mais, matrona e soberana, a Nyumba-Kaya, se ergue de encontro ao tempo. Seus antigos fantasmas estão, agora, acrescentados pelo espírito do falecido Avô. E se conforma a verdade das palavras do velho Mariano: eu teria residências, sim, mas

casa seria aquela, única, indisputável.” (p. 28-29.)

Assim, conforme salienta avô Mariano, Nyumba-Kaya ergue-se como um espaço essencial, o que abarca a perspectiva arcaica em relação à habitação. Para as sociedades tradicionais, seja qual for sua estrutura – uma sociedade de caçadores, de pastores, de agricultores, ou uma

38

ELIADE. O sagrado e o profano, p. 26-27. 39 FONSECA. Espaços ficcionais, p. 95.

sociedade que já se encontre no estágio de civilização urbana –, instalar-se em um território e construir uma morada comporta uma escolha vital, uma vez que, nesse ato, há algo fundamental: criar o seu próprio mundo e assumir a responsabilidade de mantê-lo e renová-lo.

Essa atribuição vital é amplamente sustentada na obra Um rio chamado tempo pela figura de avó Dulcineusa. Esta, dentre outras funções, cultivava o hábito de regar diariamente o chão da casa, vislumbrando na morada funções anímicas. E, no final da narrativa, o restabelecimento

do equilíbrio das relações realça, na morada, o renovo: “A casa tinha reconquistado raízes.

Fazia sentido agora aliviá-la das securas. Admirança se levanta, me segura as mãos e fala em

suspiro como se estivesse em recinto sagrado.” (p. 247.)

No mundo arcaico, a casa é, então, santificada constituindo-se como imago mundi. A perspectiva tradicional se difere largamente da visão moderna, não comportando a morada como um objeto, um espaço para habitar, constituído para funcionar de maneira prática, facilitando a vida para o trabalho; como ocorre de uma forma geral na atualidade. Eliade

assinala que, no mundo arcaico, “toda a construção e toda a inauguração de uma nova morada

equivalem de um certo modo a um novo começo, a uma nova vida. E todo o começo repete o

começo primordial, quando o Universo viu pela primeira vez a luz do dia.”40

Descrições de Nyumba-Kaya, em Um rio chamado tempo, referenciam a casa em relação ao primordial

como, por exemplo, descreve Marianinho: “Vou pelo corredor, alma enroscada como se a casa fosse um ventre e eu retornasse à primeira interioridade.” ( p. 111.)

Os afetos do jovem são também associados a vivências de sua infância na cozinha da grande casa quando, cumprindo à tradição, os homens manuseavam o fogo e as mulheres a água. “E se refazia o eterno: na cozinha se afeiçoavam, sob gesto de mulher, o fogo e a água. Como nos céus, os deuses moldavam a chuva e o relâmpago. A cozinha me transporta para distantes doçuras. Como se, no embaciado dos seus vapores, se fabricasse não o alimento, mas o próprio tempo. [...] Naquele lugar recebi os temperos do meu crescer.” (p. 146.)

O fato de, no mundo arcaico, haver uma multiplicidade de elementos que marcam o centro do mundo não é tido como uma dificuldade para o pensamento religioso, pois, de acordo com Mircea Eliade, não se trata de espaço físico e geométrico, mas sim de um território existencial

e sagrado. Isso é enfatizado, na narrativa, pelo avô Mariano, na epígrafe do capítulo 4: “O

importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora.” (p. 53.)

Esse espaço sagrado apresenta constituição própria, susceptível a uma infinidade de roturas, e portanto de comunicações com o transcendente. Assim, o que assinalam os imago mundis, como a morada, é a possibilidade de vinculação ao Cosmos; o que é tematizado na obra, por exemplo, quando avó Dulcineusa elege Marianinho para resguardar a casa, entregando-lhe um saco com as chaves: “Tome. E guarde bem escondido. Guarde essa casa, meu neto! [...] Você é quem meu Mariano escolheu. Para me defender, para defender as mulheres, para defender a Nyumba-Kaya. É por isso que lhe entrego a si essas chaves.” (p. 33-34.) As chaves, porém, eram de fechaduras antigas, não tendo mais função concreta naquela casa, entretanto Dulcineusa insistia na necessidade de guardá-las, “porque sofria de uma crença: mesmo não havendo porta, as chaves impediam que maus espíritos entrassem dentro de nós.” (p. 111.)

Torna-se nítido o abismo que marca a diferença entre os comportamentos arcaico e moderno relativamente à morada humana. A morada, na atualidade, tem se estabelecido como um produto fabricado em série pelo sistema capitalista. É elaborada, dessa forma, a partir de um padrão cada vez mais repetido e moldado, antes de tudo, para a funcionalidade, em prol de uma vida de trabalho. Assim, atualmente, mudar de casa, de cidade ou de país, é algo corriqueiro que, muitas vezes, não ocasiona grandes atribulações. Não se trata, porém, de desconsiderar o afeto e os vínculos que prevalecem em relação à morada contemporânea, mas de perceber que não se sustentam relações com o sagrado.

Esse conflito entre o tradicional e o moderno relativo à habitação é problematizado em Um

rio chamado tempo. Grande parte dos personagens, principalmente os mais velhos, se

preocupam com a perda da ligação com o ancestral. Alguns se incumbiam de buscar medidas para que isso não se estabelecesse de fato, como Avó Dulcineusa, outros tomavam a causa como perdida, como é o caso de Miserinha. Esta, quando interpelada por Marianinho para voltar a habitar Nyumba-Kaya, apresenta sua perspectiva quanto à perda da sacralidade:

– Eu não posso ir para Nyumba-Kaya. Porque essa casa já não tem raiz. Não tarda a

que se vá embora.

– Se vá embora?

– Vão levar essa casa, meu filho. – Vão levar como?

E a lucidez de Miserinha, a visionária que passou a enxergar apenas as sombras do mundo, captava os planos do político Ultímio, que planejava vender a casa a investidores estrangeiros. Desconsiderando todo e qualquer vínculo com a tradição, Ultímio desejava fazer de Marianinho um aliado:

– Está a ver o que fizeram? Destroem tudo, esta malta dá cabo de tudo. Quem

mandou destruir esta merda de telhado?

Ultímio sabia que era obediência de tradições. Mas não aceitava que eu, moldado e educado na cidade, não me opusesse. Para ele aquilo era obsoleto. Outros valores nele se avolumavam.

– É que isso desvaloriza a propriedade...

Confessa, então, o fio de sua ambição. Ele quer desfazer a casa da família. E vender Nyumba-Kaya a investidores estrangeiros. Ali se faria um hotel.

– Mas esta casa, Tio...

– Aqui só mora passado. Morrendo o Avô para que é que interessa manter essa

porcaria? Além disso, a Ilha vai ficar cheia de futuro. Você não sabe, mas isso tudo vai levar uma grande volta.

Resisto, opondo argumento contra intento. Nyumba-Kaya não poderia sair de nossas mãos, afastar-se de nossas vidas.” (p. 151.)

A aura de ambição, que se formava como uma preocupação principalmente na cabeça de Dulcineusa, que temia as brigas pela propriedade, surgiriam depois da morte de Dito Mariano. Tudo aquilo já fazia de Nyumba-Kaya um lugar já desapropriado pelos ancestrais, o que é remetido como um delírio da avó:

A Avó parece vencida por um repentino cansaço. A cabeça se abate sobre o ombro esquerdo e emerge em fundo sono. Todos permanecem em silêncio, vigiando a velha mãe. Nem passam minutos, porém, quando Dulcineusa desperta, confusa.

– Quero ir-me embora – reclama. – Para onde, mamã?

– Para casa.

– Mas a senhora já está em sua casa...

Que não, que não estava. Seu olhar revela essa inexplicável estranheza: perdera a familiaridade com o próprio lar.

– Levem-me, meus filhos, lhes peço. Levem-me para minha casa. (p. 34.)