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3. O acontecer do já havido futuro

3.5 Feitiços e feitiçaria

3.5.2 Outra face da magia

Nunca queira uma cobra dessas. Elas ajudam os donos, mas, em contraparte, estão sempre pedindo sangue.

(A varanda do frangipani)

Em África, acredita-se, então, que certas pessoas, principalmente do sexo feminino, dispõe de temíveis poderes ocultos que empregam não só em detrimento alheio como também em proveito próprio. Mia Couto aponta, pois, em A varanda do frangipani, para essa crença

difundida: “Na tradição, lá nas nossas aldeias, uma velha sempre arrisca a ser olhada como feiticeira.” (p. 78.) Nesse viés, crê-se que os poderes mágicos propiciam às mulheres meios

para disseminar diversos males, realizar atos negativos e até mesmo crimes, o que implicou às idosas esta condição revelada também em Um rio chamado tempo: “Ser-se velha e viúva é ser

Essa condição é uma preocupação revelada pelas anciãs das obras estudadas. A personagem Nãozinha, por exemplo, na fortaleza de São Nicolau, nega veementemente seus conhecimentos mágicos: “Meus poderes nascem da mentira.” (p. 78.) Afirma ter sido injustamente taxada de feiticeira, embora em diversos momentos prove ser grande conhecedora das artes da magia. Diz, entretanto, que dessa rotulação ela não assimila apenas os aspectos negativos. Beneficia-se principalmente do cuidado que as pessoas têm ao se aproximarem, temendo as consequências de a negligenciarem.

Também avó Dulcineusa, em Um rio chamado tempo, cujos dons visionários não são manifestos, expressa, na Nyumba-Kaya, o temor de ser acusada pela condição moribunda do marido: “Suspeitariam, certamente, que a Avó seria autora de feitiços.” (p. 34.) Caso o fosse, transitaria, nos meios familiares, para o extremo radical, tornando-se de matriarca a uma estranha, intrusa e rival. Sabendo desse receio, os filhos atribuíam fingimento aos seus delírios recentes, acreditando ser essa uma estratégia dela para escapar da possibilidade de ser vista como culpada.

Além dessas personagens centrais, temos, nessas condições, a andarilha Miserinha, em Um

rio chamado tempo, que carrega no fato de não ver as cores a causa da feitiçaria.

Aos poderes adquiridos pelas mulheres que se dedicam à feitiçaria, atribui-se, em culturas africanas, diversas faculdades, como: furtar o sabor e a essência de alimentos e bebidas, transferir para sua família ou comunidade a abundância e os usufrutos de outrem, efetuar voos noturnos, em estado de nudez, para tentar matar ou semear a doença. As feiticeiras podem, além disso, utilizarem-se de serviços de animais como hienas, mochos, gatos, serpentes e leões, nos trabalhos de magia, e até mesmo transformarem-se nesses animais para melhor levar a efeito suas atividades malignas. Elas têm, ademais, o recurso de inserir no corpo potentes medicamentos-mágicos que são fatais para quem quer agredir ou magoar, e sabem, ainda, manipular venenos para matar as suas vítimas.

Com tantos instrumentos, essas mulheres são simultaneamente objeto de ódio e de certa admiração. Em A varanda do frangipani, o próprio diretor do asilo, o incrédulo personagem

Vasto Excelêncio, revela esse paradoxo ao observar Nãozinha: “Izidine vagueou todo esse dia

com a imagem da feiticeira ratazanando-lhe o juízo. Lhe impressionara a extrema magreza dela. Os outros diziam que Nãozinha se alimentava apenas de sal. Trazia água do mar

despejava-a em cavidade das rochas. Deixava a água secar e depois lambia o fundo dessas

cavidades.” (p. 93.)

Assim, quaisquer que fossem os atos estranhos que ocorressem na fortaleza de São Nicolau, a causa recairia sob a idosa delgada. Quando, por exemplo, Nhonhoso deu falta de suas unhas, sublinhou a Mourão ser serviço de Nãozinha para fazer trabalhos de magia.

Nessa crença, então, costuma-se atribuir à feitiçaria tanto o sucesso dos afortunados quanto o insucesso daqueles que são vítimas de inveja. Os estudos etnográficos feitos dentre os povos de Moçambique apontam para o fato de que a magia maléfica nasce de dois impulsos

fundamentais: “o desejo egoísta de melhorar a sua própria existência, mesmo que seja a

expensas de outrem; e inveja em relação aos mais venturosos, quando o sucesso não é

repartido igualitariamente.”70

E é nesses dois ímpetos que parece residir a motivação da personagem Miserinha para realizar suas falcatruas passionais em Um rio chamado tempo. Seu plano era lesar Admirança para ficar com Dito Mariano. Recorrendo ao poder dos animais e à sua capacidade de se metamorfosear em crocodilo, a velha passou, então, a circundar o rio onde os amantes se encontravam – o que é relatado a Marianinho pelo avô:

Certa vez me alertaram: um crocodilo fora visto no encalço da canoa. O bicho, assim me disseram, seria alguém. Imaginava mesmo de quem seria: de Miserinha. A mulher detinha poderes. Por ciúme destinava a morte de sua rival Admirança, nos remansos do Madzimi. Esbaforido corri para junto de Miserinha. E lhe dei ordem que suspendesse o feitiço. Ela negou. A dizer a verdade, nem me ouviu. Estava possuída, guiando o monstro perante a escuridão. Não consegui me conter: lhe bati na nuca com um pau de pilão. Ela tombou, de pronto, como um peso rasgado. Quando despertou, me olhou como se não me visse. O golpe lhe tinha roubado a visão. Miserinha passou a ver sombras. Nunca mais poderia conduzir o seu crocodilo pelas águas do rio. (p. 234.)

Foi também usando uma outra técnica conhecida na bruxaria, a introdução de medicamentos- mágicos no corpo, que, em A varanda do frangipani, Nãozinha deu cabo à vida de Vasto Excelêncio. A velha, após ser surrada pelo diretor, penetrou sândalo pela vagina e, em seguida, manteve relação sexual com ele. “À minha frente surgia a caixa de sândalo que eu tantos anos guardara. Retirei a raiz desse arbusto que cresce junto aos mangais. Abri as perna e, lentamente, fui espetando a raiz no centro do meu corpo, por essa fresta onde eu e a vida nos havíamos já espreitado. Deixei o veneno espalhar nas minhas entranhas.” (p. 88.)

É importante perceber, então, como a espiritualidade africana comporta uma série de regras, combinações, meios e gestos para se manifestar e ser catalisada. Os processos de desdobramento da alma, dos espíritos e dos conhecimentos sobrenaturais encerram, pois, múltiplas possibilidades. Na relação entre corpo e alma, por exemplo, a dissociação pode ser definitiva ou momentânea, tendo diversos fins e finais. Pode-se também ocorrer o processo inverso, de associação, no qual em um mesmo corpo podem residir duas almas – duas personalidades, duas existências. A arte da magia, os dons de feitiçaria, por sua vez, transitam da cura à doença, do egoísmo à alteridade. E enfim, nessa vastidão do campo da transcendência, transita a Literatura, trabalha Mia Couto, transcriando o fantástico da História, a vastidão das histórias, o real das estórias.

4. A gente se acende é nos outros