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3. O acontecer do já havido futuro

3.2 O encaminhamento ritual da alma

3.2.1 Preceitos do ritual

3.2.1.2 Destelhamento

O importante não é a casa onde moramos Mas onde, em nós, mora a casa.

(Um rio chamado tempo)

Outro elemento interessante, referente aos preceitos da passagem para a morte, desenvolvido por Mia Couto em sua obra, é o destelhamento ritual da casa. Esta é uma das primeiras imagens confrontadas por Marianinho ao desembarcar em Luar-do-Chão:

Mesmo ao longe, já se nota que tinham mandado tirar o telhado da sala. É assim, em caso de morte. O luto ordena que o céu se adentre nos compartimentos, para a limpeza das cósmicas sujidades. A casa é um corpo – o teto é o que separa a cabeça dos altaneiros céus. Sobre mim se abate uma visão que muito irá se repetir: a casa levantando voo, igual ao pássaro que Miserinha apontava na praia. E eu olhando a velha moradia, a nossa Nyumba Kaya, extinguindo-se nas alturas até não mais ser que nuvens entre nuvens. (p. 29.)

condiz com a perspectiva sagrada relativa à morada, na qual a habitação, como homologação corporal, ergue-se como um eixo, um ponto central. Como vimos no capítulo 2 deste trabalho, diversas culturas do mundo elegeram pontos (a casa, a montanha, a árvores) como axis mundi que ligam a terra ao céu. Eles tocam de algum modo o céu e marcam, por consequências, um ponto referencial onde é possível a rotura de nível. Acredita-se também que marcam o centro do universo.

A imagem sugestiva da casa aberta aos céus, que levanta voo como o pássaro de Miserinha, tão ricamente trabalhada por Mia Couto, encontra correlato no gesto de diversas tradições de todo o mundo, conforme se incumbe de apresentar Mircea Eliade:

Este costume indiano tem a sua réplica nas crenças abundantemente espalhadas na Europa e na Ásia – que a alma do morto sai pela chaminé (=buraco do fogo) ou pelo telhado, e nomeadamente pela parte do telhado que se encontra por cima do ângulo sagrado. Em casos de agonia prolongada, retira-se uma ou variadas pranchas do telhado, ou chegam até a despedaçá-lo. A significação deste costume é evidente: a alma desligar-se-á mais facilmente do seu corpo se a outra imagem do corpo- cosmos, que é a casa, for fraturada na sua parte superior.57

A fratura da parte superior da casa (corpo-cosmos) é consonante com o devir cósmico para o qual se inclina o mundo sagrado. Nele, os elementos essenciais do mundo – universo, templo, casa, corpo humano – são providos de uma abertura superior ou uma abertura para o sagrado. E, no caso explícito do destalhamento ritual da morada, tem-se o estabelecimento de uma ligação direta com o céu, a fim de que a alma se desligue mais facilmente, tornando possível a passagem de um modo de ser a outro, de uma situação existencial a outra.

Esta crença de que a alma do morto sai pela chaminé, o buraco de fogo, ou pelo telhado é consonante com a perspectiva de Marianinho, em Um rio chamado tempo, conforme a seguir:

O Avô lá está, teimando em sua horizontalidade. Fico ali, juto a seu corpo, em solitário velório. Me assalta uma vontade absurda de me deitar no chão e olhar os céus, na solitária companhia de Dito Mariano. É o que faço. Já estendido no soalho, vou alongando sossego numa quase sonolência. A ausência de teto, naquela visão, me sugere haver uma chaminé por onde fossem saindo as nuvens. E assim, amolecido, adormeço. (p. 138.)

Nas visões sobre a morte temos, pois, as nuvens como metáfora da leveza, de uma passagem suave em conformidade com os ritos ancestrais. É o que vemos, acima, na imagem das nuvens que passam pela chaminé ou, anteriormente, no voo da casa pelas alturas, “a nossa Nyumba Kaya, extinguindo-se nas alturas até não mais ser que nuvens entre nuvens.”

Indo mais adiante na simbologia do destelhamento, na homologação corpo-casa, a ultrapassagem da condição humana se traduz, de uma maneira imagética, pelo aniquilamento do cosmos pessoal que se escolheu habitar. A escolha de um cosmos pessoal equivale, no plano filosófico, a uma situação existencial que se assumiu. Dessa maneira, o estilhaçamento do telhado, desdobra-se, além do estabelecimento de uma ligação mais estreita com o cosmos, na libertação necessária para a passagem, no aniquilamento de todo o mundo condicionado.

Marianinho, entretanto, mesmo tendo familiaridade com os preceitos rituais, não deixa de se afligir com a desproteção da matrona Nyumba-Kaya: “Por isso me aproximo com receio do lugar fúnebre. A sala onde depositaram o Avô está toda aberta aos céus. A lua e o escuro aproveitam a ausência de teto. Aflige-me toda aquela desproteção. E se chover, e se a nuvem

se despejar sobre o indefeso corpo de Mariano?” (p. 41-42.)

Mas a imagem da redenção, ao final da obra, da reorganização das estruturas da Ilha, é

figurada pelo reerguimento do telhado: “Lá fora a noite está perdendo espessura. Salto o muro

da casa, olho para trás e, não cabendo em meu espanto, o que vejo? O telhado já refeito. A casa já não se defendia do luto. Nyumba-Kaya estava curada da morte.” (p. 239.) A passagem estava cumprida, a casa-corpo-cosmos estava curada da morte.

E é sobre a simbologia da passagem nos meios tradicionais que me debruçarei agora. A ela está predestinada toda a existência cósmica. Tal como o sol passou das trevas à luz e os antepassados míticos passaram da preexistência à existência, há a necessidade do homem de passar da pré-vida à vida e finalmente à morte, e, nesse caminho, vigoram os cumprimentos essenciais dos ritos de passagem.