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2 MARCO TEÓRICO-CONCEITUAL

2.2 CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS EM PAULO FREIRE E EM VYGOTSKY

2.2.1 Construção de Sentidos em Paulo Freire

Em seu método pedagógico, Paulo Freire (1980) aponta para a importância de estimular a compreensão do educando sobre o mundo e a realidade que vivencia cotidianamente através do diálogo.

De acordo com Góis (2012, p. 69), para Freire:

“o ato de conhecer é o ato de ler e nomear a realidade, pronunciar o mundo; é também lhe dar um sentido e apropriar-se dele. Neste ato de conhecer temos a conscientização ou o aprofundamento da tomada de consciência, o processo de pronunciar a palavra com os demais (diálogo); a palavra que se encontra enraizada na experiência de vida de quem a pronuncia.”

Desta forma, Freire (1980) o diálogo entre homens e mulheres favorece a ampliação da consciência sobre o mundo e sobre si mesmo, facilita a construção de sentidos. Portanto, para esse autor, “o diálogo impõe-se como um caminho pelo qual os homens encontram seu significado enquanto homens; o diálogo é, pois, uma necessidade existencial.” (FREIRE, 1980, p. 83). Logo, o diálogo serve para aproximar consciências e tem como objetivo a conscientização.

Nesta perspectiva, Góis (2012, p. 74) afirma que:

Freire considera que o aprender se refere ao conhecer as significações e suas relações, mas a conscientização tem lugar quando se constrói o sentido dessas significações e de suas relações. Para ele, nesse caso, se encontra a educação e não somente o ensino. A conscientização significa um “despertar da consciência”, quer dizer, que o homem compreende e atua criticamente em sua realidade físico-social. É daí que obtém sua própria dignidade e valor.

Portanto, a construção de sentido em Freire está relacionada à conscientização, que, por sua vez, traz o diálogo como forma privilegiada de facilitar o processo gradual de ampliação da consciência. Assim, o diálogo atua como um catalisador do processo de conscientização, bem como de construção de sentidos dos sujeitos envolvidos na relação dialógica.

De acordo com Campos e Domitti (2007), o primeiro termo do Apoio Matricial, a palavra apoio, “sugere uma metodologia para ordenar essa relação entre referência e especialista não mais com base na autoridade, mas com base em procedimentos dialógicos.” (CAMPOS, DOMITTI, 2007, p. 402). Assim, os autores apontam que o AM pretende ampliar o diálogo e a troca de experiências entre profissionais de distintos núcleos do conhecimento,

com o objetivo de ampliar a atuação clínica desses profissionais. Nesse sentido, tendo com base a obra de Freire, o autor traz uma compreensão de diálogo que pode nos ajudar a refletir sobre ampliação do diálogo entre profissionais de várias especialidades, como sugere o Apoio Matricial.

O Ministério da Saúde (Brasil, 2009), ao falar do Apoio Matricial no NASF, o caracteriza com uma dimensão de assistência direta à população e com outra de apoio técnico- pedagógico às equipes de saúde da família. Paulo Freire (1992) não falava do diálogo como um procedimento, mas, como educador, ele possuía uma forma peculiar de compreender o diálogo e a dimensão técnico-pedagógica, que a meu ver, pode trazer grande contribuição para as reflexões deste trabalho e para a prática de Apoiadores Matriciais, de profissionais da APS e de gestores que querem incentivar o trabalho com maior qualidade na ESF.

Segundo Freire (1983) o conhecimento não pode ser visto como algo estático que deve ser depositado no aluno, como se este não tivesse nenhum conhecimento sobre o conteúdo. Para o autor, todo mundo tem algo a ensinar e algo a aprender. Isto não quer dizer que todos são iguais e sabem da mesma coisa, mas que cada um, na sua diferença, tem um conhecimento que é construído a partir da sua ação e reflexão sobre o mundo. Isto também não quer dizer que somente a ação do homem sobre o mundo é fruto de conhecimento, desqualificando as formas tradicionais do conteúdo curricular. O que Freire destaca é que todo conhecimento, mesmo o conteúdo curricular, deve ser sempre pensado a partir da realidade concreta de quem o aprende (educando-educador) e de quem o ensina (educador- educando).

Desta forma, para Freire (1983) o conhecimento exige a presença curiosa do sujeito no mundo, a sua ação transformadora sobre a realidade, implicando uma invenção e reinvenção do conteúdo. Segundo o autor o mundo humano é um mundo de comunicação e essa comunicação não está isenta dos condicionamentos sócio-cuturais aos quais estamos submetidos. Refletir sobre estes condicionamentos é de fundamental importância para a apreensão dos conteúdos. Ou seja, o ato de aprender, para além da mera repetição de conteúdos, deve possibilitar ao aluno a reflexão destes conteúdos a partir da sua realidade subjetiva, histórica e social, problematizando-a.

Por outro lado, o professor, que na prática educativa “bancária” estende, deposita o conteúdo no aluno e se coloca como “neutro” diante deste e do conteúdo. Numa prática pedagógica libertadora, assume que também possui condicionamentos sócio-culturais, mas ao

assumir os seus posicionamentos diante dos conteúdos e da vida não os assume como superiores aos dos educando, assume-os como diferentes. Dispõe-se a dialogar com outros, também diferentes, mediatizados por um conteúdo que nunca é neutro. Ou seja, estabelece uma relação educador-educando baseada no diálogo, estabelece uma relação que Freire denomina dialógica.

Sendo assim, nessa relação dialógica, o educador a partir da sua comunicação com os educandos problematiza o conteúdo para estes e ao fazer isto reconstrói o que conhece sobre esse conteúdo e também se reconstrói. Ou seja, no ato de problematizar os educandos, o educador também se problematiza. A problematização é dialética, é impossível alguém problematizar e não se implicar nessa problematização.

Ao falar da relação dialógica entre professor e aluno, Freire a considera como uma marca da posição democrática que pode existir entre eles. Para este autor, o diálogo acontece na relação entre sujeitos distintos, que a partir dessa relação podem conservar a sua identidade e defendê-la, crescendo um com o outro, crescendo e assumindo as diferenças. Desta forma, Freire (1983) não apenas reconhece a importância da intersubjetividade e da intercomunicação na relação educador-educando, como possibilita um lugar de destaque para estas na sua prática pedagógica.

Então, se, segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2009), a relação estabelecida entre os Apoiadores Matriciais em Saúde Mental e os profissionais da ESF é uma relação de apoio técnico-pedagógico, os profissionais da saúde mental devem de alguma forma assumir um papel de educador. Ao mesmo tempo, os profissionais de saúde mental não possuem uma formação específica para assumirem esse papel de educadores. Há uma complexidade na construção dessa relação de apoio técnico-pedagógico que extrapola uma “metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde” (CAMPOS, DOMITTI, 2007, p.399) e caminha na direção “da formação de uma outra subjetividade profissional, centrada na abertura para o diálogo” (CAMPOS, 1999, p. 400). Portanto, esta abertura para o diálogo não deve ser somente para o outro profissional, mas também para o usuário e o contexto subjetivo e sócio- cultural em que este está imerso.

Nesta perspectiva deste estudo, o diálogo é um elemento de fundamental importância para a construção de sentidos dos profissionais sobre o trabalho em equipe e sobre o Apoio Matricial em Saúde Mental. Logo, tem potência para facilitar a atuação dos profissionais no trabalho interdisciplinar.

Desta forma, problematizando as ideias de Freire (1996; 1992; 1983) sobre a relação dialógica educador-educando e recriando-as para Apoio Matricial em Saúde Mental na ESF, é preciso que na construção da organização desse processo de trabalho haja espaço para problematizar os enfoques usuais e as formas de compreensão do processo saúde/doença (GÓIS, 2008; CARVALHO, CUNHA, 2008) tanto as adotadas pelos profissionais, como pela população. Ou seja, é preciso problematizar as compreensões de saúde e de doença mental dos profissionais da saúde mental, dos profissionais da ESF e da população a partir da realidade e do contexto concreto singular e sócio-histórico-cultural em que estes sujeitos estão inseridos. Além disso, é preciso problematizar os condicionamentos sócio-culturais aos quais esses sujeitos estão submetidos, é preciso assumi-los, é preciso tomar consciência deles, para se abrir ao diálogo respeitoso e amoroso com o outro, seja ele profissional de saúde ou usuário do SUS.

Nesse sentido, compreendo que a potência do diálogo, como Freire (1996; 1992; 1983; 1980) aponta, também precisa estar presente nas relações que acontecem entre os profissionais e os usuários, não apenas no apoio matricial em saúde mental, mas também na ESF e nos serviços substitutivos de saúde mental.