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Consulta TSE n 1.621 e Recurso Extraordinário n 86.297

4 PRINCÍPIOS DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA PROBIDADE

6.1 Dados históricos

6.1.1 Consulta TSE n 1.621 e Recurso Extraordinário n 86.297

Primeiramente será analisada a Consulta nº 1.621, realizada perante o Tribunal Superior Eleitoral em 2008,252 anterior, portanto, às alterações inseridas pela Lei

251 PINTO, Djalma. Op. cit., p. 21-22.

Complementar nº 135/2010, verificando-se que muitos dos seus argumentos permanecem íntegros, podendo ser aplicados na atualidade.

O acórdão proferido pelo Tribunal Superior Eleitoral responde à Consulta formulada pelo Presidente do Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba, que indaga sobre possibilidade alargamento dos termos de Resolução do TSE nº 22.717, que regulamentou as eleições de 2008, para inserir a obrigatoriedade, para registro de candidatura, de apresentação de documentos que, “de alguma forma, dêem conhecimento à Justiça Eleitoral sobre as ações judiciais nas quais os pretensos candidatos figuram como réus”, tratando, portanto, da vida pregressa dos candidatos, conforme artigo 14, § 9º, da CF/88.

O voto do Ministro Relator Ari Pargendler lembrou que a Constituição de 1969, em seu artigo 151, previa que lei complementar estabeleceria os casos de inelegibilidade, visando preservar a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, “levada em consideração a vida pregressa do candidato”.

Nesse sentido, fez remição ao decidido pelo STF no Recurso Extraordinário nº 86.297, julgado em 1976,253 sendo Relator o Ministro Carlos Thompson Flores, no qual se afirmou, por maioria de votos, a constitucionalidade da alínea “n” do artigo 1º, I, da Lei Complementar nº 5/70,254 que disciplinava o disposto no aludido artigo 151, para determinar a inelegibilidade de candidato que tivesse contra si denúncia recebida pelos crimes estabelecidos em lei, levando-se em conta, portanto, a sua vida pregressa.

O feito discutiu a previsão contida na referida alínea “n” e a presunção de inocência, consoante artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos,255 e, ainda, o princípio do “in dubio pro reo”. O voto proferido pelo Ministro Relator ressaltou que a presunção de inocência se restringe ao campo do processo penal, o que nada tem a ver com o problema das

253 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 86.297. Rel. Min. Thompson Flores, Tribunal Pleno, DJ 26 nov. 1976, p. 10.206, RTJ, v. 79-02, p. 671.

254 “Art. 1º - São inelegíveis: I - para qualquer cargo eletivo: [...] n) os que tenham sido condenados ou respondam a processo judicial, instaurado por denúncia do Ministério Público recebida pela autoridade judiciária competente, por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública e a administração pública, o patrimônio ou pelo direito previsto no art. 22 desta Lei Complementar, enquanto não absolvidos ou penalmente reabilitados.”

255“Art. 11, 1, da Declaração: Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”

inelegibilidades, cujos casos deveriam ser estabelecidos por lei complementar, tal como determinou a Constituição. Assim, afirmou que não se pode confundir “causa de inelegibilidade com presunção de culpabilidade, de conceituação jurídica diversa e com reflexos distintos”.

Por outro lado, o voto vencido proferido pelo Ministro Leitão de Abreu indaga se o mero recebimento denúncia despojaria o candidato de moralidade, extinguindo a presunção de inocência. Entende que retirar do cidadão o “status activae civitatis” implica cominar-lhe “pena, punição ou castigo”, submetendo o sujeito à pena acessória sem que tenha a principal, destacando que seria grave e irreparável injustiça negar registro a candidato que, após as eleições, fosse absolvido.

Partindo deste “leading case”, o Ministro Ari Pargendler passou a tratar da questão da “vida pregressa” à luz da Constituição de 1988, conforme seu artigo 14, § 9º. Ressaltou os escândalos noticiados pela imprensa, que “têm provocado manifestações na sociedade, reclamando que se exija dos candidatos a cargos eletivos uma vida pregressa compatível com as responsabilidades que pretendem assumir”. Destacou, porém, a dificuldade em se precisar a falta de idoneidade do candidato:

A premissa é correta: só boas pessoas, assim consideradas aquelas cujos antecedentes as recomendam, devem concorrer aos cargos eletivos.

A dificuldade consiste em saber qual a circunstância que identifica a falta de idoneidade do candidato.

Quem quer que atue no âmbito forense sabe que nem sempre as ações de improbidade administrativa são bem sucedidas, outro tanto quanto às denúncias articuladas pelo Ministério Publico, ainda que recebidas.256

Ante os subjetivismos que poderiam conduzir o tema, optou o Ministro Ari Pargendler pela obediência ao devido processo legal, tendo a Lei Complementar nº 64/90, em suas alienas “d”, “e”, “g” e “h” do artigo 1º, I, exigido o trânsito em julgado das decisões, sendo tal previsão coerente com os princípios que tutelam a dignidade humana:

De minha parte, uma certeza: o avanço de uma civilização está correlacionado ao modo como nela foi disciplinado o devido processo legal — tanto mais importante numa época, como a nossa, recheada de denúncias.

Portanto, se pudesse legislar, faria como fez o constituinte de 1988, e os membros do Congresso Nacional ao editarem a Lei Complementar nº 64, de 1990.

Só o trânsito em julgado de uma sentença condenatória, seja pelo cometimento de crime, seja pela prática de improbidade administrativa, pode impedir o acesso a cargos eletivos.

Dir-se-á que o povo continuará a ser enganado por estelionatários eleitorais. A resposta é a de que a lei está de acordo com os melhores princípios que tutelam a dignidade humana; a falha está na respectiva aplicação.

Montesquieu já dizia que, quando visitava um país, não indagava se as leis eram boas, porque no geral, onde quer que fosse, assim eram, mas perguntava se tinham aplicação.257

Por fim, ressaltou que “no Estado de Direito, salvo eventual inconstitucionalidade, o critério do juiz é a lei, não podendo substituir-se a ela para impor restrições”. Dessa forma, concluiu seu voto pela integral aplicação da LC nº 64/90, que exige o trânsito em julgado da sentença penal condenatória para fins de indeferimento do registro de candidatura.

O Ministro Eros Grau, não obstante ter concordado com o Relator, declarou seu voto, mediante aprofundado estudo sobre o tema, em que enfatizou o respeito ao devido processo legal: “Viver a democracia, isso não é gratuito. Paga-se um preço por ela; em síntese, o preço do devido processo legal”.

Além disso, ressaltou que tais critérios de avaliação da vida pregressa do candidato implicariam a substituição da presunção da inocência pela presunção de culpabilidade:

A suposição de que o Poder Judiciário possa, na ausência de lei complementar, estabelecer critérios de avaliação da vida pregressa de candidatos para o fim de definir situações de inelegibilidade importaria a substituição da “presunção de não culpabilidade” consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”) por uma “presunção de culpabilidade” contemplada em lugar nenhum da Constituição (qualquer pessoa poderá ser considerada culpada independentemente do trânsito em julgado de sentença penal condenatória).


Não me parece plausível essa suposição.258

Em seguida, passou a tratar exatamente do tema aqui discutido, qual seja, a relação entre a moralidade e o Direito Eleitoral. Assevera que não se pode olvidar do Direito positivo,

257 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Consulta n. 1.621. Op. cit. 258 Ibidem.

sendo que a ética a ser observada é a “ética da legalidade”, respeitando-se as instituições do Estado de Direito:

É possível e desejável, sim, que o direito, em sua positividade, seja interpelado criticamente, a partir de conteúdos éticos e morais nascidos da luta social e política. Esta luta se dá alias, desde o advento da modernidade, com o propósito de realizar, para o maior número, as promessas de “liberdade”, da “igualdade” e “fraternidade”. Outra coisa é a pretensão de substituir-se o direito pela moralidade, o que, na prática, significa derrogar as instituições do Estado de direito em proveito da vontade e do capricho dos poderosos ou daqueles que os servem.

Estranhas e sinuosas vias são trilhadas nessa quase inconsciente procura de

ius onde não há senão lex.

[...]

A ética, do ponto de vista formal, é um conjunto de postulados vazios e indeterminados; vale dizer, é abstrata. Sua efetividade, sua concretude provém do mundo exterior, objetivando-se nos comportamentos que um determinado grupo social entenda devam ser adotados diante da realidade. Muitos grupos, muitas éticas — isto é, díspares manifestações desta última no concreto. Um desses grupos é a sociedade civil, o mais amplo deles. Entre nós, no nosso tempo, a ética adotada para reger as relações reguladas pelo chamado direito moderno é a “ética de legalidade”.259

Por fim, trata especificamente da moralidade administrativa, consignando que não obstante esteja prevista no artigo 37 da CF/88, tal fato não abriu o sistema jurídico para a introdução de preceitos morais, tendo em vista que “o conteúdo desse princípio há de ser encontrado no interior do próprio direito”, sendo imperiosa, portanto, a observância do Direito positivo, ou se instalaria a desordem:

Cada litígio há de ser solucionado de acordo com os critérios do direito positivo, que se não podem substituir por quaisquer outros. A solução de cada problema judicial estará necessariamente fundada na “eticidade” (= ética da legalidade), não na moralidade. Como a ética do sistema jurídico é a ética da legalidade, a admissão de que o Poder Judiciário possa decidir com fundamento na moralidade entroniza o arbítrio, nega o direito positivo, sacrifica a legitimidade de que se devem nutrir os magistrados. Instalaria a desordem.260

O Ministro Carlos Ayres Britto, que restou vencido, fundamentou seu voto no método sistemático de interpretação jurídica, o qual possibilita detectar subsistemas no interior de um dado sistema normativo, afirmando que os direitos políticos estariam inseridos em um subsistema relacionado aos princípios da soberania popular e da democracia representativa.

259 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Consulta n. 1.621. Op. cit. 260 Ibidem.

Nesse sentido, sustentou o Ministro Ayres Britto que “os titulares dos direitos políticos não exercem tais direitos para favorecer imediatamente a si mesmos, como sucede, agora sim, com os titulares dos direitos e garantias individuais e coletivos e os titulares dos direitos sociais”. Pelo contrário, o exercício dos direitos políticos se presta “para servir imediatamente a valores de índole coletiva: os valores que se consubstanciam, justamente, nos proto- princípios da soberania popular e da democracia representativa (também chamada de democracia indireta)”.

Conclui, portanto, relembrando a “Constituição-cidadã” ou “Constituição-coragem” de Ulysses Guimarães, pela observância da vida pregressa do candidato, uma vez que “a idéia- força de que o povo merece os melhores representantes começa com o pleno conhecimento do passado de cada um deles”, tratando-se de previsão implícita do texto constitucional, já que inerente à natureza da representação popular, salientando a origem do termo “candidato”: “Candidatura, aliás, que tem o originário significado de candura, pureza, limpeza ética, tanto quanto o vocábulo ‘candidato’ (§§ 2º e 3º do art. 77 da nossa Lei Republicana) não tem outro étimo que não seja o de ‘candidus’; vale dizer, cândido, puro, limpo, sob o mesmo signo da ética ou moralidade.”

Nesse sentido, o Tribunal Superior Eleitoral, em Consulta realizada em 2008, inadmitiu a aplicação direta do disposto no artigo 14, § 9º, da CF/88 para criar critérios não previstos em lei que pudessem enfatizar os princípios da moralidade e da probidade administrativas para fins de elegibilidade.