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2 ARTHUR DE SALLES: A OBRA DE TEMÁTICA REGIONAL

2.2 O CORPUS

2.2.2 O que contam as cartas?

As cartas, que segundo Gomes (2004a) possibilitam uma “escrita de si”, falarão sobre as localidades do Recôncavo por onde Arthur de Salles passou: Passé, Brotas, Vila de São Francisco, Candeias, Santo Amaro, Maragogipe. Além de falar da Cidade da Bahia, ou seja, de Salvador, com todo o seu florescimento cultural − do qual o poeta também participou −, de suas tristezas e de suas festas.

Segundo Gomes (2004a, p. 10), a escrita de si integra um conjunto de modalidades do que se convencionou chamar “produção de si” no mundo moderno ocidental. De certa forma, essa produção de si abriu as cortinas do “teatro de memória” do poeta Arthur de Salles, que, com suas cartas, redesenhou sua biografia. Gomes (2004a, p.12) assevera, ainda, que os argumentos que sustentam as práticas de uma escrita de si derivam tanto da assertiva sociológica de que todo o indivíduo é social, quanto do reconhecimento da radical singularidade de cada um. Essa singularidade traduz-se pela própria fragmentação do indivíduo e de suas memórias através do tempo, sem que isso torne falso o desejo de uma “unidade do eu” (GOMES, 2004a, p. 13).

A escrita de si é, ao mesmo tempo, constitutiva da identidade do seu autor e do texto, que se cria, fato que se dá através dessa modalidade de “produção do eu”. Sobre a correspondência privada, um dos objetos de estudo desse trabalho, Gomes (2004a, p. 21) diz:

Ou seja, a correspondência privada é, com freqüência, um espaço que acumula temas e informações, sem ordenação, sem finalização, sem hierarquização. Um espaço que estabelece uma narrativa plena de imagens e movimentos − exteriores e inferiores −, dinâmica e inconclusa como cenas de um filme ou de uma peça de teatro.

De acordo com Foucault (2004, p. 431) nos primeiros séculos da era cristã, a escrita já se tornara, e não cessa de assim se afirmar cada vez mais, um elemento do exercício de si. Sendo assim, o espaço da correspondência é o lugar do aparecimento de um sujeito desmascarado, pois a única avaliação a que ele estará sujeito é a do outro, aquele que guarda seus segredos, gozando, portanto, de sua plena confiança.

No artigo Em família: a correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre, Gomes (2004b) afirma que as cartas suscitam interesse e curiosidades gerais, principalmente aquelas entre intelectuais, não importando se têm caráter pessoal ou profissional. Ela afirma ainda que a correspondência de intelectuais é entendida e tratada como um elemento para iluminar a compreensão de suas obras. A correspondência, continua Gomes (2004b, p. 12), é um documento − uma fonte − para contextualizar sua produção, fornecendo informações sobre questões que têm a ver com a criação, a circulação e a recepção da obra. A correspondência passiva de Salles (entre ele e Durval de Moraes) transita entre o caráter pessoal e o profissional, podendo perceber-se a partir de sua leitura o quanto a tessitura do texto literário do poeta dependia da opinião do amigo Durval de Moraes (TELLES, 2006a; 2002). O estudo da correspondência de Salles ratifica o que diz Gomes (2004b), pois suas cartas são importantes fontes para a compreensão do seu fazer poético, da sua visão de mundo e dos fatos históricos e sociais do seu ambiente. Em uma das cartas, Arthur de Salles, afligido pelos efeitos da guerra, escreve a Durval de Moraes e, implicitamente, dá notícia do seu modus

scribendi:

Quiz tambem enviar pela bocca dos soldados a minha canção de guerra. Tracei-a, ajuntei para ella verbos rubros, <e> adjectivos como as espadas batalhadoras, substantivos rigidos como sabres espelhantes; por ella diria a esses brasileiros emasculados que me circundavam, que riem das derrotas da Belgica, das invasões da França, que batem palmas á victoria das Allemanhas, o meu sentimento indomado de brasileiro, de christão, e de humano. (doc. 067:0336)

Gomes (2004b, p. 51) assevera ainda que a correspondência pessoal entre intelectuais é um espaço revelador de suas idéias, de seus projetos, opiniões, interesses e sentimentos. Uma escrita de si que constitui e reconstitui suas identidades pessoais e profissionais no decurso da troca de cartas. Ela conclui que a correspondência, como parte da obra de um autor, assegura uma aproximação das formas de estruturação do campo intelectual em um dado momento e lugar, permitindo que se investigue de que maneira funciona esse “pequeno mundo” e de como se deve entender a própria noção de intelectual.

As datas e os locais das cartas são instrumentos valiosos, que permitem delimitar um ritmo próprio à correspondência, bem como refletir sobre suas razões e seus temas preferenciais, sejam eles mais intelectuais ou mais pessoais (GOMES, 2004b, p.52-53).

Desse modo, a cidade de Salvador é revelada nas cartas, deixando transparecer as constantes atividades do poeta na vida cultural da cidade. Salles fornece um panorama histórico-social de Salvador do primeiro quartel do século XX: a revolução, as suas demolições e as suas construções. É possível, ainda, através das cartas, conhecer os poetas

contemporâneos a Arthur de Salles; perceber a sua contribuição na constituição da vida literária de Salvador que pulsava com força nesta época. O contato com outros poetas baianos contemporâneos a ele, será vistos nas cartas (GAMA; TELLES, 1996) e isso, será refletido no seu vocabulário.

Grande parte das cartas de Salles a Durval de Moraes foi escrita na Vila de São Francisco e em Brotas, conforme o escatocolo das mesmas. São Francisco do Conde foi a terceira vila da Bahia, criada em 1697. No período da correspondência de Arthur de Salles, tinha como principal meio econômico a extração e benefício de cana-de-açúcar, denunciando a paisagem os canaviais e, grande parte da população ribeirinha retirava o sustento do mar, com a atividade de pesca. A industrialização causada pelo advento do petróleo nas regiões de Candeias e de São Francisco do Conde ainda não havia chegado. As festas – tema de alguns poemas do poeta e que são relatadas por ele em suas cartas – são sempre marcadas pelo ritmo do samba característico dessa região.

Pode-se, a partir da leitura das cartas e da obra de temática regional de Arthur de Salles, notar que o Recôncavo tem como centro o Mar. Esse mar por vezes é personificado, imperioso, imponente, dele os moradores retiram o seu sustento, nele tornam-se heróis lendários – roldão do mar –, nele as lanchas são descritas como bravas armas, mais do que um instrumento de trabalho, um ornamento do imperioso mar.

Os instrumentos de trabalho dos pescadores da Vila de São Francisco são descritos poeticamente por Salles, a vela das lanchas tornam-se ornamentos do rio, “o velho rio morto”. Após um temporal, as velas voltam a protagonizar o labor dos pescadores, são personificadas, passando a possuir sentimentos como alegria por estarem à luz do sol, além de possuírem anseios como liberdade.

Estão florindo o rio, por algumas horas, floração ephemera, graça de uma < tar>, [↑manhan], encantamento de um instante. E que anceio ha nellas, de libertação! Esse rio onde sómente, as velhas... (doc. 066:0320)

Veja-se um trecho da carta no qual Arthur de Salles descreve poeticamente o movimento das lanchas a partir do rio da Vila de São Francisco do Conde:

E o rio, o velho rio morto, refugio dellas, quando o temporal as tomou de surpresa, caminho da cidade, está todo florido nesta manhan de claro sol, fulgindo num ceo nevoado. As cordas molhadas, rangem nas arças, há um alvoroço pelas bordas, como na azafama das partidas. Vozes echoam, corpos passam, lepidos, em movimentos multiplicados. E ao sol que sobe as vélas sobem, pesadas de agua, bamboleiam ao vento matinal que apenas frisa levemente a toalha azul do rio. E o rio está todo florido de vélas. A agua azul, o céo azul e entre estes dous azues humidos a brancura silenciosa das vélas. (doc. 066:0320)

É nesse ambiente híbrido e misterioso que serão escritas as obras de temática regional e as cartas ao amigo Durval de Moraes. Sendo assim, ao estudar o ambiente que rodeava o autor, compreender-se-ão as lexias regionais por ele utilizadas, bem como as criações lexicais do poeta. Assim, pode-se entender o porquê de utilizar uma palavra e não outra e a sua latente necessidade de inventar novas palavras como uma necessidade de recriar o Recôncavo. A cultura do povo abre, de alguma forma, as portas para o texto. Segundo Otávio Paz (1972, p. 228), as palavras do poeta são, por um lado, históricas: pertencem a um povo e a um momento de fala desse povo, são algo datável. Por outro lado, são anteriores a toda data: são um começo absoluto.

No final do século XIX e início do século XX, a Cidade da Bahia e todo o seu Recôncavo deslocaram-se do conjunto mais dinâmico da economia brasileira e, de acordo com Antonio Risério (2004, p. 313), voltaram-se intensamente para si mesmos, vivendo, antes de tudo, a intrincada trama interna de suas próprias vidas. Essa é a Cidade da Bahia da qual Arthur de Salles falará em sua correspondência.

A correspondência datada entre 1908 e 1931, referentes às notícias da Cidade da Bahia, tratará, muitas vezes, de fatos políticos que serão analisados através do olhar crítico do poeta. Os assuntos políticos focalizados nas cartas referem-se ao bombardeio da Cidade de Salvador, à demolição e à modernização da cidade e à Revolta Sertaneja.

De acordo com Otávio Paz (1972, p. 233), o poeta consagra sempre uma experiência histórica, pode ser pessoal, social ou ambas ao mesmo tempo. Ao registrar um fato histórico, em desabafo ao amigo Durval de Moraes, Arthur de Salles transfere o seu olhar de poeta para um triste fato social: em alguns momentos desviará os olhos da vida brejeira do Recôncavo para perceber as conturbações por que passa a Cidade da Bahia.

O Brasil, entre 1910 e 1914 é governado pelo Marechal Hermes da Fonseca, que impunha sua vontade através da força militar. Os anseios do presidente por modernidade e cidadania convergiam com os das camadas médias urbanas. Dessa forma, ganha força nacional uma política de modernização interessada em submeter de uma vez o poder das oligarquias. Um desentendimento político entre governo da Bahia e as forças que representavam a presidência da República, desencadeia um bombardeio à Cidade da Bahia, em 10 de janeiro de 1912, no qual muitas pessoas morreram e outras tantas ficaram feridas (TAVARES, 2000, p. 236-237). Dois dias depois, em carta a Durval de Moraes, tem-se uma idéia do ocorrido através do olhar de Salles:

Sob a dolorosa impressão da guerra que ora alevanta o collo rubro e fumegante, numa sede de sangue, escrevo-te. Eis a Bahia dos ultimos dias: familias espavoridas, corpos

boiando nas aguas, luto, lagrimas, vergonha, miséria É a victoria da Democracia e da Republica. (doc. 063:255/ 12.01.1912)

A “Democracia” na Bahia era representada por J.J. Seabra, que tinha o apoio do Presidente Hermes da Fonseca para a eleição que ocorrera dois dias depois do bombardeio. Venceu a força militar. E, a partir de 1912, Salvador passa por uma fase de demolições e construções, grande parte da Arquitetura colonial (sec. XVIII) perdera-se e dera lugar aos prédios que caracterizavam a nova ordem mundial: grandes metrópoles, com vias e praças largas, onde a luz solar tomava conta dos ambientes. As ruas estreitas, os prédios antigos e as monumentais igrejas tornaram-se irrelevantes. O fato é também comentado por Salles: o amante de coisas antigas presencia a modernização da velha Cidade da Bahia.

Aqui na velha cidade de Thomé de Souza ao sol que abraseia e á poeira que asphixia. Dias abafados e longos e tediosos, apezar da luz e do ruido dos desabamentos. A febre de remodelação anda queimando a gente do governo: são templos que se esboroam, edificios que se desmantelam, ruas que se abrem e se alargam, avenidas que se projectam.

Os jornaes entoam o Laus Perenne, a melopéa, a cantiga, o hymno os tanta cousa bella, a tanta rejuvenescencia, a tanto deslumbramento futuro, a começar dos predios e ruas coevos dos capitães-mores e a terminar pela estabilidade da justiça, do direito, do criterio, da honra, da honestidade tão precisas de caiação, de reboco, de verniz, de reforma, de galvanisação. (doc. 064:280/ s.d. [anterior à 27.01.1913])

De volta à tranqüilidade das pequenas cidades do Recôncavo, na solidão da Abadia, de Brotas, Salles comenta novamente as transformações da Capital:

Nada de novo pela velha Bahia a não ser a demolição, a construcção e a reconstrucção, a avenida etc...(doc. 064:285/ 12.04.1913)

Seguindo o desenrolar de acontecimentos violentos nas sucessões governamentais da Cidade da Bahia entre 1912 e 1920. Em 1919 anti-seabristas (pessoas contrárias à política de J.J. Seabra e a do atual governador Antonio Muniz, seu aliado), reagiram à candidatura de Seabra ao governo do Estado, oferecendo armas e munições a Coronéis da Chapada Diamantina e da região sanfranciscana, desencadeando assim o que se denominou Revolta Sertaneja. Arthur de Salles compara os donos do poder da Bahia com Cesar, imperador de Roma, veja-se um trecho da carta:

Benditos os Cesares: gozam dessas emoções de carnificina, de sangue vermelho, quente, espumante. Depois as fanfarras da victoria, os hymnos de louvor, a carmina Triumphalia. Que bello ser Cesar!... Multidões urrando las ruas o seu divino nome delle, bemdizendo- o...(doc. 067-0340/ 04. 03. 1920)

Na mesma carta, segue, ironicamente, comentando os fatos políticos:

Ora, mui caro amigo, em verdade te digo, o imperio bahiano está a braços com a guerra e os tres cesares lutam, combatem. Na velha Roma quando muito dois cesares se

degladiavam. Aqui são tres. Conclusão: logo a nossa Roma é muito maior que a Roma antiga, aquella doce Roma de Nero e de outros divinos. O seculo vinte deu-nos esta vantagem desconhecida dos antigos: maior numero de cesares para o menor de bestas, perdão, queria dizer, de povos. (doc. 067-0340/ 04.03.1920)

A publicação de Poesias – livro onde se encontra a coletânea Dias Rurais – foi adiada por conta dos conflitos ocorridos na Cidade no período de 1915 a 1919 (a publicação do livro estava prevista, inicialmente, para 1918), em desabafo, Salles diz:

Ora aqui está, meu poeta: os meus versos estão esperando a paz. Quando ella surgir elles ruflarão as azas. (doc. 067-0340/ 04.03.1920)

Os textos aqui estudados, poesia e cartas, se confundem, são gêneros limítrofes, onde a poesia dá lugar às elucubrações de um intelectual refletindo sobre o seu meio. O poeta, escrevendo, da Vila de Passé, que tem sua preferência declarada, anseia expressar as razões pela qual escreve:

E estes versos, estas estrophes que eu ando a espalhar pelo mundo que vem a ser senão os gemidos, os sonhos, os anceios concentrados <†> [↑mortos] neste pequeno mundo e <†> que um dia puderam dilatar-se, numa forma de arte, num horizonte mais amplo e mais claro? (doc. 067-0344/ 19.12.1920)

Eis, então, a visão do Recôncavo através da cosmovisão do, antes de tudo, poeta Arthur de Salles. Em meio à vida simples, costumes, crenças do povo das vilas e lugarejos, surgem as guerras causadas pela urbanização da maior cidade do Recôncavo: Salvador.

As cartas de Arthur de Salles a seu amigo Durval de Moraes completarão o corpus, visto que está plena de elementos do Recôncavo, além de revelar seu conhecimento acerca da cultura universal e da cultura literária da efervescente Cidade da Bahia de início do século XX. Nas cartas a Durval de Moraes vê-se emergir um Arthur de Salles mais universal, que assimilou a influência de Baudelaire, de Cruz e Souza, de Shakespeare. O homem que do promontório de Passé, da Vila escarpada de São Francisco, conhece, critica e interage na Cidade da Bahia, que adentrava no rol das cidades de Cultura literária com o florescimento de várias revistas literárias, de cujos movimentos Arthur de Salles fez parte. Tudo isso, será manifestado em suas cartas e, conseqüentemente, em seu vocabulário que se revelará inovador e sui generis. É a partir da obra de temática regional e dessas cartas que se fará o estudo de neologismos e de regionalismos em Arthur de Salles, entendendo que esses dois fatos do léxico se interceptam no vocabulário do autor.

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