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TERRAS, GENTES, RITMOS E COSTUMES DO RECÔNCAVO

3 O LÉXICO COMO ELEMENTO CULTURAL

3.1 TERRAS, GENTES, RITMOS E COSTUMES DO RECÔNCAVO

As influências geográficas, econômicas e folclóricas deixaram traços distintivos na escrita do poeta baiano Arthur de Salles, fato que é revelado a partir do vocabulário, pois, como se sabe, este é o reflexo da sociedade que o utiliza. Afirma-se que o regionalismo existe quando uma obra é localizada numa região determinada e dela retira sua substância real. Afrânio Coutinho (2001, p.1352), fundamentado em George Stewart, afirma que, num sentido amplo, toda obra de arte é regional quando tem por pano de fundo alguma região particular ou parece germinar intimamente desse fundo. Estritamente, para ser regional, uma obra de arte não somente tem que ser localizada numa região, continua ele, senão também retirar sua substância real desse local. Essa substância decorre, primeiramente, do fundo natural – clima, topografia, flora, fauna, etc. − como elementos que afetam a vida humana da região; e, em segundo lugar, das maneiras peculiares da sociedade humana estabelecida naquela região e que a fizeram distinta de qualquer outra (COUTINHO, 2001, p. 1352). Arthur de Salles retira do Recôncavo para sua obra elementos que tornam essa região singular: o povo, a natureza, a língua, os costumes.

O poeta baiano tenta retratar na poesia e na prosa, os costumes, os tipos, a linguagem das micro-regiões que compõem o Recôncavo. Essa região que fascina por seu céu, seu mar, sua vegetação de um costeiro recortado de aproximadamente 200 km, uma região cuja extensão em linha reta é de 70 km da Barra Falsa à Vila de São Francisco da Barra do Seregipe do Conde. Como já se disse, Arthur de Salles tinha uma intimidade com a região que corresponde ao fundo da Baía de Todos os Santos10, percorrendo quase todo costeiro,

conhecia a fundo os costumes, e os fatores econômico-sociais que a caracterizava. Em carta a Durval de Moraes descreve a sua visão do Recôncavo:

Venho de percorrer trechos do Reconcavo, numa abalada de quinze dias. Taboleiros desenrolados, numa recordação de deserto, solitarios, sob a fulgência abrazadora do sol; estreitos caminhos de areia fofa escondidos sob ramagens arenaes, mattas de arvores augustas, altissimas frondes verde-negras, dando á paysagem aspectos graves; regatos, corregos, tremulos fios de prata promanando entre folhagens sorridentes; rios de margens escavadas pela eversão das ultimas enchentes rollando aguas murmuras, ora claras, limpidas, ora escuras carreiando ainda os restos dos galhos e das raizes arrancadas,

troncos hirsutos e folhas negras; ouros suaves, plainos risonhos, montes recortando-se ao fundo, barrancas escancaradas, grotões huyantes, as linhas complicadas das estradas, carros de bois rechinando, á hora de fogo do meio-dia, atupidos de canna; vivendas brancas avultando uns altos e “bois e carros de bois”; a vida, a luz, a terra, o homem, o sonho, a miseria espreitando pelas portinhas dos tejupares, rostos formosos de camponias, carnações opulentas como [↑que] rebentadas das <rios> das entranhas agrestes da terra moça e ardente mordida pelos dentes de braza ,dos versos> do sol; tudo isto e mais o indizivel das emoções, vi e senti por quinze dias. (doc. 071: 0427)11

Os “pequenos mundos” que constituem o Recôncavo Baiano, segundo Nelson Araújo (1985), estão fragmentados por culturas próprias, mas interligados por um tronco de cultura comum. Assim, pode-se experimentar um Recôncavo a partir da cosmovisão do poeta Arthur de Salles. A partir da sua escrita, põe-se um olhar sobre o Recôncavo, definido por Odorico Tavares (2001, p. 35) como:

Este mundo que a cidade do Salvador domina como seu ponto maior, revelando a olhos e corações vagabundos, sem pressa de ver e de sentir, é uma das mais agradáveis impressões das terras e das águas baianas.

Segundo informa Tinhorão (1998, p. 79), a pesca e a coleta de mariscos eram comum a toda população da beira mar. As atividades produtivas na cidade do Recôncavo desde o século XVIII estavam, essencialmente subdivididas da seguinte maneira: na Vila de São Francisco12,

era a pesca da sardinha xingo e de camarões (“que negras atravessadeiras vendiam na cidade”); na Vila de Santo Amaro da Purificação de “tabaco e muita aguardente, que se destila nos muitos alambiques, de que hoje está cheia”; na Vila de Cachoeira, além do tabaco e do gado dos grandes senhores, o cultivo de milho e legumes. Sendo assim, muitos dos trabalhadores dessas micro-regiões; trabalhadores de lavouras de beira-mar, artesões e empregados do complexo de pequena cabotagem regional viriam a constituir em Salvador, no século XVIII, o exemplo inicial do que se poderia chamar de camadas populares urbanas no Brasil (TINHORÃO, 1998, p. 82). Salvador, enquanto capital do Recôncavo, conforme explica Tinhorão (1998, p. 82), era o ponto de encontro dos mundos rural e urbano, o que possibilitava esse encontro entre as diversificadas atividades, produzindo uma originalidade das relações sócio-culturais.

Essas condições especiais da realidade econômico-social do Recôncavo − cujo processo de urbanização regional podia ser medido pela sucessiva criação de vilas como a de Jaguaripe, em 1697, a de Cachoeira e a de São Francisco do Conde, ambas em 1698 − propiciou, ainda na primeira metade do século XVIII, o aparecimento de uma série de novas formas de divisão

11 Carta em anexo (anexo iv).

12 É na Vila de São Francisco que Arthur de Salles ambientaliza alguns de seus textos de temática regional, local

entre as baixas camadas, que estava destinada a transformar Salvador no primeiro centro produtor de cultura popular urbana do Brasil. (Tinhorão, 1998, p. 82).

Em meio a essa diversidade econômico-social que se instalava na Bahia do século XVIII, surgem os ritmos e os costumes que vão ser centro no olhar do poeta, dentre esses ritmos, surge o lundu, dança de terreiro que estaria destinada a ir além de um número de teatro, mas, por artes de seus estribilhos cantados, a transformar-se em canção de sabor humorístico (TINHORÃO 1998, p. 99).

Lundu é uma dança presa aos batuques de negros, tem um estribilho marcado pelas palmas dos circunstantes, que fundiam ritmo e melodia no canto de estilo estrofe-refrão mais típico da África negra. Segundo Tinhorão (1998, p. 99), o nome lundu era utilizado também para algo ligado aos proibidos ritos da religião africana. Dessa forma, a estilização dos “diversos movimentos do corpo” nos batuques de negros estava destinada a tornar-se a “dança nacional” dos brancos e pardos do Brasil − sob o nome de lundu.

Esses ritmos caracterizaram o Recôncavo desde o século XVIII, permanecendo − guardadas as devidas modificações por conta do tempo − até os dias atuais. É latente na escrita do poeta a sonoridade dos tambores, dos pandeiros, das palmas, sendo o léxico uma testemunha dessa presença, não podendo esta, portanto, ser negligenciada. O próprio Arthur de Salles em carta a Durval de Moraes comenta a presença dos ritmos:

Queremos o movimento que é a expressão alta da vida!... E o mundo da emoção, requer o movimento, a maneira de expressar-se em formas e rythmos fóra das regrinhas pedagogicas desta daquella escola. E prompto... Fóra de tudo isto é que está a salvação. (doc 064:0295)

A Festa de Reis de que Arthur de Salles cuida em alguns de seus textos é mais uma tradição do Recôncavo. Faz-se a festa a partir de um ajuntamento de homens, mulheres e crianças que visitam de surpresa casas amigas, com roupas especiais e acompanhados dos instrumentos de que dispõem. À frente das portas repetem os cantos antigos. Depois da casa franqueada, passa da cantoria ao samba.

A notícia sobre a cultura da região é importante para compreender as escolhas lexicais do poeta baiano. Pois, se se quer, através do particular, atingir o todo, não se deve abandonar um instrumento principal: o vocabulário. O ponto de partida do poeta Arthur de Salles são os pequenos povoados e vilas do Recôncavo Baiano, sendo Passé (como se viu) – o pequeno povoado de pescadores – seu ponto predileto.

A singularidade do Recôncavo Baiano é proveniente da sua variedade de áreas geográficas, possibilitando a comunhão de diferentes manifestações culturais, dentro de uma

mesma região. Nessa direção, Pinto (1997, p. 29-30) afirma que na vida cotidiana do Recôncavo, transita-se com facilidade e com freqüência do primitivo ao moderno, do medieval ao contemporâneo. Podendo-se distinguir dentro dele, as seguintes sub-áreas:

1. Zona da pesca e do saveiro: na orla marítima e nas ilhas; 2. Zona do açúcar: nas terras do massapé.

3. Zona do fumo: mais recuada do litoral

4. Zona da agricultura de subsistência: área descontínua, conjunto de manchas, roças de mandioca, milho, feijão etc. Se concentra mais na direção das fronteiras do Sul e do Sudeste.

5. Zona do petróleo: concentrada nas mesmas terras do massapé açucareiro, nas ilhas e na orla marítima.

6. Zona urbana: Salvador

A zona em que Arthur de Salles produziu grande parte de sua obra é essencialmente zona de pesca, por isso há uma variedade de lexias relacionadas ao mar. Costa Pinto (1997 p. 32) referindo-se à constante presença do mar no cotidiano do Recôncavo diz:

A grande baia, suas águas, suas praias, suas ilhas, formando paisagem de cartão postal, não constitui aqui apenas o proscênio: ao contrário, é o próprio quadro da vida quotidiana, do trabalho, da luta pela vida, o que nos dá razões profundas e objetivas que explicam como o mar é não somente tradição, mas realidade viva na vida daquela gente ribeirinha.

Pinto (1997 p. 33) assevera ainda que para a população ribeirinha o mar é o seu ganha- pão, eles fazem do saveiro sua montaria, do mar sua oficina e da bravura sua rotina. Sendo assim, de Passé a Candeias, passando por São Francisco, Brotas e outros pequenos lugarejos que constituem a região de pesca do Recôncavo, o Mar é o elemento predominante que inspirou Arthur de Salles a escrever a maior parte de sua obra.

Salles antes de ser classificado como representante de qualquer escola literária, deveria ser classificado como aquele que resgata os traços culturais que caracterizaram o povo do Recôncavo e da Cidade da Bahia. Há textos, no corpus estudado que estão marcados pelo hibridismo que transcende as barreiras das escolas literárias, ele, com instrumentos da estética parnasiana e com a morbidez do simbolismo, adentra na vida simples da população ribeirinha, para cantar o mar, a gente, a paisagem do Recôncavo; trazendo ao leitor a “graça festiva” inerente a essas regiões.

A realidade do local em que se encontra lhe proporciona o assunto literário, o mar, os mulungus, o pescador, os ritmos, as superstições eram os motivos de seu fluir na escrita literária. Vê-se uma integração entre o homem, a obra e seu momento histórico-cultural. Em seus textos em prosa, principalmente naqueles cuja temática é o mar, como: Ao Mar!, Mar

confidente, “Tudo no mar é poesia”, “O mar é o refletor do céo” e “O grande poeta francez” (TAVARES, 1986); percebe-se uma simbiose entre o poeta e seu meio, especialmente quando se trata do léxico.

Sem ultrapassar o pequeno lugarejo de Passé, Salles faz uma viagem, remetendo o leitor à literatura universal e fazendo vir à tona seu acervo cultural que, além das coisas da terra comprovadas a partir do vocabulário, dialoga com autores e culturas do Brasil e de outros países.

A Região por onde perpassa a maioria das obras de temática regional de Salles, corresponde ao Recôncavo da Pesca e ao Recôncavo canavieiro. Como já se explicitou, a colônia de pescadores do povoado de Passé constitui o principal cenário, como se vê em

Sangue-mau, O Dote de Matilde, O Ramo da fogueira. O poeta vai, em cada texto, descortinando a região onde atuam os seus pescadores, trovadores, velhos plenos de sabedoria popular e moças encantadoras. Veja-se a descrição do cenário de Sangue-mau:

No promotório de Passé que galga os ares, Como uma vaga imensa arrojada do fundo Tenebroso dos mares,

Nas primitivas convulsões do mundo. (SMA, 1, v.1-4) [...]

o casario dos pescadores

– Búzios do pobre molusco humano – É uma centena de tejupares,

Acocorados pelos pendores, Disseminados pelos oiteiros, Pela beirada das praias curvas. Uns branquejantes e alvissareiros, Abrem sorrindo para o oceano, Como essas velas triangulares

Dentro do vago das manhãs turvas. (SMA, 4, v.16-25)

A colônia de pescadores, os tejupares, os mulungus, unidos às crendices, às lendas e aos mistérios desta parte do Recôncavo compõem e delineiam a simplicidade destas composições. Porém, a obra de temática regional do poeta não tem como cenário apenas as terras férteis do Recôncavo, a colônia de pescadores em Sangue-mau e em O Ramo da Fogueira, é contraposta à região seca, onde o sol abrasador queima a plantação, deixando os homens com raiva da natureza, cenário de O Assassino do Sol. No entanto, o aspecto regional não se faz presente apenas na obra literária, em suas cartas, Arthur de Salles descreve as várias regiões do Recôncavo, como uma fotografia ao amigo Durval de Moraes.

É dessa atmosfera que fala o poeta Arthur de Salles e o léxico utilizado para descrever tudo isso é o protagonista desse estudo.

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