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2. O DIREITO FUNDAMENTAL DE LIBERDADE

2.4. Conteúdo essencial

A Constituição alemã estabelece que em nenhum caso um direito fundamental

poderá ser afetado em sua essência (art. 19, § 2º).

A Constituição espanhola, nitidamente inspirada naquele dispositivo da Lei

Fundamental Alemã, determina que as liberdades e direitos fundamentais por ela

reconhecidos vinculam todos os poderes públicos, e que o seu exercício somente poderá

ser regulado por lei, “que em todo caso deverá respeitar seu conteúdo essencial” (art. 53, §

1º).

A Constituição portuguesa, no art. 18, também prevê que a lei só pode restringir os

“direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição,

devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou

interesses constitucionalmente protegidos” (§ 1º), e que as leis restritivas de direitos,

liberdades e garantias “têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito

retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos

constitucionais” (§ 2º).

150 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, pp.164-167. 151 Idem, op. cit. pp. 167-168.

152

Idem, op. cit., p. 173. Relembre-se, todavia, a crítica de Virgílio Afonso da SILVA, já registrada no item 2.3 ao denominado princípio da “concordância prática”.

Eis a razão por que as dogmáticas alemã, espanhola e portuguesa debruçaram-se

sobre a ideia de núcleo ou conteúdo essencial, como um reforço da garantia dos direitos

fundamentais e de sua resistência jurídica em face de eventuais ingerências dos poderes

públicos.

154

De acordo com Carlos Bernal Pulido, o uso dessa expressão é uma metáfora que o

Direito tomou de empréstimo das ciências, assemelhando a estrutura dos direitos

fundamentais à das células, nas quais existe um núcleo no meio do citoplasma.

155

Embora nossa Constituição Federal não contenha dispositivo similar, o conceito de

núcleo ou conteúdo essencial é de capital importância na teoria dos direitos fundamentais.

O problema é definir em que consiste o conteúdo essencial de um dado direito

fundamental, delimitar as suas fronteiras e, mais precisamente, explicitar as razões pelas

quais uma conduta, situação ou posição jurídica se reputaria intra ou extramuros.

Já se apontou que uma teoria do suporte fático amplo – que distingue, num primeiro

momento, o que é protegido prima facie, e, num segundo momento, aquilo que é protegido

definitivamente - pressupõe a extensão do conceito de intervenção para a superação do

inevitável aumento de colisões entre princípios. Com efeito, as normas de direito

fundamental com estrutura de princípio são, por sua própria natureza, restringíveis por

força de princípios colidentes, e essa restrição será permitida se, nesse confronto, ao

princípio colidente for atribuído um peso relativo maior.

Por essa razão, Robert Alexy trata a garantia do conteúdo essencial como a restrição

das restrições: os direitos fundamentais, enquanto tais, constituem restrições à sua própria

restrição e restringibilidade.

156

As teorias absolutas do conteúdo essencial preconizam que esse núcleo

fundamental, próprio de cada direito e determinável em abstrato, independentemente das

circunstâncias do caso concreto, seria intocável. “Referir-se-ia a um espaço de maior

intensidade valorativa (o ‘coração’ do direito) que não poderia ser afetado sob pena de o

direito deixar realmente de existir”.

157

154

PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. 3ª ed. atual. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, pp. 406-407. SANCHÍS, Luis Prieto.

Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Editorial Trotta, 2009, pp. 230-231.

BOROWSKI, Martin. La estructura de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003, p. 97.

155 PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. 3ª ed. atual.

Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007,p. 407.

156

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, pp. 295-296.

157 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976.

José Carlos Vieira de Andrade, por exemplo, identifica, na dignidade da pessoa

humana, esse núcleo intocável, entendido como uma proibição absoluta, um limite fixo,

um mínimo de valor inatacável por qualquer restrição.

158

Essas teorias distinguem, assim, o conteúdo essencial, o núcleo duro do direito, que

contém as suas características determinantes e permanece intangível para o legislador, e

uma zona de periferia, denominada, por Martin Borowski, de “coroa do direito”, que

rodeia o seu núcleo,

159

onde se situa o conteúdo acidental ou contingente do direito, no

qual o legislador pode exercer sua liberdade de conformação. Na zona nuclear, são

inadmissíveis as intervenções do legislador, independentemente de estarem ou não

justificadas e de serem ou não proporcionais. Na zona periférica, as intervenções são

admissíveis, uma vez que não afetariam o núcleo do direito fundamental.

160

O problema das teorias absolutas é, a pretexto de proteger um núcleo intocável,

deixar as condutas e posições jurídicas situadas na zona periférica desprotegidas, à

disposição absoluta do legislador, que nelas poderia intervir, a partir de juízos de mera

oportunidade e conveniência, sem justificação (= sem fundamentação constitucional), o

que conduziria, inexoravelmente, a uma inadmissível desconstitucionalização do conteúdo

acidental ou periférico do direito fundamental.

161

Isso importaria, em verdade, na

diminuição do âmbito de proteção do direito, já que não seria preciso fundamentar uma

restrição legislativa ou jurisdicional àquilo que se encontra fora do núcleo essencial.

162

Não bastasse isso, também não é possível definir, a priori, o núcleo de um direito

fundamental, isto é, predeterminar o seu conteúdo e limites. Além do mero intuicionismo,

não há critério intersubjetivamente plausível para estabelecer quais posições

jusfundamentais se situam dentro do núcleo de um direito (conteúdo essencial) e quais se

situam no âmbito de sua periferia (conteúdo acidental). Dito de outro modo, aquilo que só

pode ser definido mediante intuição torna-se intersubjetivamente incontrolável, o que

constitui fator de insegurança jurídica e uma ameaça à competência do legislador para

configurar direitos fundamentais, uma vez que o Judiciário pode ser chamado a decidir,

com base em critérios intuitivos e não racionais, o que compõe o núcleo e o que se situa na

158 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976.

Coimbra: Almedina, 1987, pp. 234 e 236.

159

BOROWSKI, Martin. La estructura de los derechos fundamentales. Tradução: Carlos Bernal Pulido. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003, p. 101.

160 PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. 3ª ed. atual.

Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, pp. 410-426.

161

Idem,op. cit., pp. 411 e 419-420.

162 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais – conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. 2ª

periferia do direito fundamental.

163

Para as teorias relativas do conteúdo essencial, o legislador pode intervir em

qualquer parte do conteúdo do direito fundamental, desde que a intervenção seja

constitucionalmente fundamentada e proporcional.

164

A garantia do conteúdo essencial dos

direitos fundamentais, portanto, “nada mais é que a consequência da aplicação da regra da

proporcionalidade nos casos de restrições a esses direitos”, a demonstrar a íntima relação

entre conteúdo essencial e proporcionalidade: “restrições que passem no teste da

proporcionalidade não afetam o conteúdo essencial dos direitos restringidos”.

165

Nesse contexto, a definição do conteúdo essencial de um direito fundamental, vale

dizer, do que é protegido, dependerá das circunstâncias fáticas e dos direitos colidentes.

Disso resulta que “o conteúdo essencial de um direito não é sempre o mesmo, e poderá

variar de situação para situação, dependendo dos direitos envolvidos em cada caso”.

166

A primeira lei do sopesamento estabelece que, quanto maior for o grau de não-

satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da

satisfação do outro, ao passo que segunda lei do sopesamento preconiza que, “quanto mais

pesada for a intervenção em um direito fundamental, tanto maior terá que ser a certeza das

premissas nas quais essa intervenção se baseia”.

167

Logo, para a identificação do conteúdo essencial não importa a intensidade da

restrição a um direito fundamental, mas sim a fundamentação dessa intervenção. Disso

resulta o caráter relativo da proteção ao conteúdo essencial: a essencialidade depende do

caso concreto. Se houver fundamentação suficiente, uma restrição intensa, que esvazie

completamente um direito fundamental, será admitida. Em não havendo, mesmo uma

restrição leve poderá importar em violação do conteúdo essencial de um direito.

Como observa Luis Prieto Sanchís, a pretendida existência de um núcleo duro

indisponível, não sujeito a qualquer restrição, ainda que houvesse boas razões para tanto,

conduziria a uma diminuição do nível de proteção. A pressuposição desse núcleo duro

permitiria que a lei, respeitado o conteúdo essencial, operasse livremente na esfera do

direito tida como não essencial, de modo que toda lei limitadora do conteúdo adjetivo ou

163 PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. 3ª ed. atual.

Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, pp. 414-416.

164

PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. 3ª ed. atual. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, pp. 409 e 426.

165 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais – conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. 2ª

tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 197.

166

Idem, op. cit., p. 196.

167 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, pp.166-168 e 617-

periférico seria tida como legítima, ainda que arbitrária ou não justificada.

168

Prieto Sanchís, criticando a possibilidade de eliminação ou sacrifício completo do

direito, propõe uma teoria por ele intitulada de “dupla barreira protetora”: toda limitação de

um direito fundamental deve estar justificada e respeitar seu conteúdo essencial. Dito de

outra forma, ainda que uma disposição limitadora conte a seu favor com boas razões,

resultará ilegítima se prejudicar o conteúdo essencial mínimo de um direito.

169

Essa teoria, denominada mista ou eclética, incide em dois grandes problemas: i) não

supera a dificuldade, apontada pelo próprio autor, de identificação do conteúdo essencial

de um direito fundamental e, mais importante, ii) traduz, parafraseando Virgílio Afonso da

Silva, um sincretismo metodológico,

170

na medida em que procura conciliar teorias

incompatíveis entre si.

Como anota Carlos Bernal Pulido, a teoria mista padece de uma contradição

insanável. Busca conciliar o conceito de um conteúdo essencial intangível, que não tolera

nenhuma restrição (teoria absoluta), com a regra da proporcionalidade, que justifica

restrições apenas na zona periférica do direito. Preconiza, portanto, um conteúdo essencial,

que assegura, a priori, com posições absolutas e definitivas, e um conteúdo periférico, com

posições garantidas apenas prima facie, cuja validez definitiva depende da ponderação com

direitos colidentes. A garantia do conteúdo essencial e a regra da proporcionalidade

constituiriam, assim, dois “limites dos limites” dos direitos fundamentais, que operariam

de modo independente: a aplicação da proporcionalidade seria válida na zona periférica do

direito, mas não legitimaria uma restrição que atingisse o núcleo essencial. Todavia, o

conceito de que o direito fundamental tem um núcleo que não pode ser restringido é

absolutamente incompatível com a ideia de sopesamento entre princípios e com a aplicação

da regra da proporcionalidade. Enquanto a teoria do conteúdo essencial absoluto observa

cada direito, abstrata e isoladamente, para definir seu núcleo intocável, insuscetível de

qualquer restrição, a teoria relativa do conteúdo essencial analisa o direito em suas relações

concretas com os demais direitos, admitindo restrições que sejam proporcionais às

exigências que derivam dos direitos colidentes.

171

Bernal Pulido conclui que a única maneira de integrar conteúdo essencial e

168 SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Editorial Trotta, 2009,

pp. 232-233.

169

SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Editorial Trotta, 2009, p. 233.

170 SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In SILVA, Virgílio

Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 115-143.

171 PULIDO, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. 3ª ed. atual.

proporcionalidade numa mesma estrutura teórica é assentar que o conteúdo essencial nada

mais é do que o resultado da aplicação da regra da proporcionalidade.

172

Assim, afastada a ideia de um núcleo duro, no qual não seria possível intervir em

hipótese alguma, conclui-se que conteúdo essencial de um direito fundamental é o que

resta após sopesamento; restrições que respeitem a regra da proporcionalidade não violam

a garantia do conteúdo essencial, ainda que, no caso concreto, nada reste de um

determinado direito.

173

Virgílio Afonso da Silva, após asseverar que o proporcional respeita sempre o

conteúdo essencial, sintetiza seu raciocínio no seguinte silogismo:

174

. restrições que atingem o conteúdo essencial são inconstitucionais;

. restrições que passem pelo teste da proporcionalidade são constitucionais;

. restrições que passem pelo teste da proporcionalidade não atingem o conteúdo

essencial.

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