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CONTEÚDO E FORMA: A DIALÉTICA BRECHTIANA

3 O ESPELHO PARA O VAZIO: A CONSTRUÇÃO DE UM REPERTÓRIO

4 O ESPELHO VOLTA-SE PARA A PLATEIA: A SUMIDADE DO REPERTÓRIO

4.1 CONTEÚDO E FORMA: A DIALÉTICA BRECHTIANA

O Sr. K. observava uma pintura na qual alguns objetos tinham uma forma bem arbitrária. Ele disse: “A alguns artistas acontece, quando observam o mundo, o mesmo que aos filósofos. Na preocupação com a forma se perde o conteúdo. Certa vez trabalhei com um jardineiro. Ele me passou uma tesoura e me disse para cortar um loureiro. A árvore ficava num vaso e era alugada para festas. Por isso tinha que ter a forma de uma bola. Comecei imediatamente a cortar os brotos selvagens, mas não conseguia atingir a forma de uma bola, por mais que me esforçasse. Uma vez tirava demais de um lado, outra vez de outro. Quando finalmente ela havia se tornado uma bola, esta era pequena demais. O jardineiro falou, decepcionado: ‘Certo, isto é uma bola, mas onde está o loureiro?’” (BRECHT, 1991).

Existe todo um debate de alguns teóricos acerca da forma e conteúdo concernentes à literatura marxista. Este debate adensa o processo de modernidade na literatura, reservando à literatura iluminada pelos ideais de Karl Marx o lugar do rompimento total com qualquer espécie de formalismo literário já existente. Os críticos marxistas investem nesta mudança através do conteúdo político, cuja ação ataca os engendramentos da sociedade moderna capitalista. Terry Eagleton (1976) propõe a discussão entre a forma e o conteúdo na literatura marxista, confrontando o que diz os marxistas e o pesquisador Georg Lukács. Este último em seu livro A

Evolução do Drama Moderno (1909) defende que a verdadeira revolução literária

marxista está na forma construída, e não necessariamente no seu conteúdo, na busca obstinada por abordar assuntos políticos.

O próprio Marx escreveu sobre o equilíbrio que deve haver entre ambas as partes, chegando mesmo a destruir algumas de suas poesias por considerá-las pervertidas, com conteúdos repletos de vulgaridade. Marx ratifica ainda que a forma

não tem valor se não for a forma do conteúdo (EAGLETON, 1976, p.35-36). É sabido que Marx diverge da filosofia hegeliana, mas tanto um filósofo quanto o outro concordam que forma e conteúdo têm relação direta um com o outro. Neste caso “Hegel tinha argumentado na sua obra Estética (1835) que todo conteúdo definido determina uma forma que lhe seja adequada. As deficiências da forma, sustentava ele, provém de deficiência do conteúdo” (EAGLETON, 1976, p.36).

Hegel trata ainda da presença de um “espírito universal” que deve prevalecer. Porém, ele acredita que a história da arte é calcada na variação entre a forma e o conteúdo. Justamente o “espírito universal” que habita nas oscilações do desenvolvimento artístico é o conteúdo da arte. Vamos nos deparar com ele em vários estágios ao longo da história. Na Grécia, por exemplo, é justamente um período em que o equilíbrio acontece. Segundo Eagleton (1976, p.36), o equilíbrio entre conteúdo e forma se estabelece ao percebemos que o espiritual e o material estão condensados em iguais pesos e medidas nas obras de arte. Já no romantismo, período que influencia a primeira parte da obra de Brecht, esse equilíbrio se desfaz: “no mundo moderno, contudo, e, na sua forma mais característica, no Romantismo, o espiritual absorve o sensual, o conteúdo domina a forma” (EAGLETON, 1976, p.37).

Se pensarmos bem, a revolução dramatúrgica teve sim suas alterações em relação à forma. Considerando a modernidade em Ibsen, em sua segunda fase de drama social, veremos que a forma mudou. O drama tornou-se mais condensado, objetivo, coeso. O mesmo é estendido a Strindberg. Mas a revolução da forma dramatúrgica só acontece mesmo em Brecht.

Já o marxismo vê uma relação dialética entre forma e conteúdo, destinando o primeiro lugar desta relação para o conteúdo, como já explicitado anteriormente. Eagleton reitera que os progressos da forma literária de maior peso foram aqueles em que a ideologia foi alterada sensivelmente. É o que acontece na obra de Bertolt Brecht. Ele atualizou a forma dramática da peça de John Gay (A Ópera dos

Mendigos), com o seu teatro épico, não porque queria mudar paradigmas na estética

teatral; estava motivado por uma necessidade de transformação social, de afetar a plateia de modo diferenciado.

Um dos autores que trata dessa mudança da forma pela ideologia, trazida na obra de Eagleton, é Pleakhanov. Ele aborda a transição da tragédia clássica para a comédia sentimental francesa, numa subordinação dos valores aristocráticos pelos

burgueses. Assim segue em sua escrita trazendo a ruptura do naturalismo para o expressionismo, porque a transcendência não é mais do mundo burguês sólido, mas da incorporação de símbolos e fantasias que penetram na alma da sociedade.

A transformação de uma convenção teatral denota, portanto, uma transformação mais profunda na ideologia burguesa, à medida que as concepções confiantes da personalidade individual e das relações burguesas típicas dos meados da época vitoriana começaram a estilhaçar-se e a desfazer-se em face de crescentes crises capitalistas mundiais. (EAGLETON, 1976, p.43).

Do realismo seguiu-se para o expressionismo, e em reação aos dois movimentos uma nova crise surge, muito mais intensa e áspera. Esta crise é o capitalismo que será combatido duramente pelos socialistas, guiados pela luz do marxismo. Poderíamos dizer que esta crise culminará na ruptura de Brecht; levará o dramaturgo a assumir nova estética, reunindo caracteres e estratégias literárias, culminando no teatro épico. Eagleton reitera a discussão argumentando que tais rupturas não invalidam o movimento anterior. Pelo contrário, sempre haverá resquício, ou mesmo o lastro de criação, baseado no movimento anterior. Isto pensando na noção hegeliana de evolução da forma e conteúdo como ações historicizadas. É obvio que Brecht não abandona a dramática, nem assassina o realismo. Não obstante o realismo estará impregnado em suas obras e todas as suas estratégias literárias serão calcadas na dramaturgia naturalista – em reação a este movimento, é claro. A dramaturgia realista-simbolista será a base para a construção de sua tese e antítese. Antestínhamos apenas a tese vendida como um prato feito. O convite agora é confrontar tese e antítese, gerando um discurso que comungue ou afete a realidade social vigente, iluminados agora pelos holofotes da igreja comunista.

O que fica aqui na obra brechtiana é o arejamento de uma forma dramatúrgica já conhecida, desde as tragédias gregas, o teatro medieval, que ganhará novos procedimentos dramatúrgicos para que o ilusionismo das obras teatrais caia por terra, deixando o espectador lúcido e interativo no espetáculo teatral. Brecht não inventa um método, ele apenas sistematiza essa gramática teatral. Todavia, temos agora uma nova forma dramatúrgica e um novo conteúdo condizentes com a realidade da modernidade.