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1. PENSAMENTOS E REFLEXÕES: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

1.1. Contexto atual das pesquisas sobre o tema

Vários pesquisadores têm se dedicado à temática do processo de ocupação portuguesa nas terras brasileiras. No entanto, ainda persiste um grande vazio em sua compreensão. As pesquisas estão focadas principalmente na compreensão dos fatores e influências que determinaram a estruturação da rede urbana e na caracterização morfológica das cidades brasileiras no período colonial. Sem dúvida, o estudo da urbanização do Brasil nesse período é importante para a compreensão do processo histórico, mas é necessário frisar os aspectos que dão propriedade à urbanização como um componente fundamental ao entendimento da cidade colonial no Brasil.

Dentro dessa temática, pode-se perceber que a discussão tem se desenvolvido segundo três aspectos principais:

1) A diferença urbanística em relação ao processo de ocupação nas colônias americanas estaria na dicotomia das cidades portuguesas e hispânicas. A irregularidade das ruas, a organicidade dos centros urbanos e a espontaneidade em relação ao uso do relevo marcariam o espírito de ocupação portuguesa. A oposição a este passivo português reside justamente no caráter hispânico de erguer cidades regulares e baseadas numa noção clássica geometrizante. O processo ocupacional português, entendido como um verdadeiro semear, tornou-se uma ideia contraposta ao das colônias

espanholas, praticamente um senso-comum na historiografia sobre o Brasil Colônia.

2) A existência de uma política urbanizadora portuguesa. 3) A relação entre a Igreja Católica e o espaço urbano.

Sobre o primeiro item, a polêmica da comparação do urbanismo colonial português e espanhol tem sido muito forte. Diversos autores a têm discutido intensamente, com argumentações variadas.

Sérgio Buarque de Holanda, no seu livro “Raízes do Brasil”, inaugura, na década de 40, o pensamento moderno sobre o tema do urbanismo colonial, confrontando as formas das cidades americanas, mais especificamente em relação à produção do ladrilhador (espanhol) e do semeador (português), ou seja, a postura abstrata do colonizador espanhol, gerando um desenho urbano geométrico oriundo de um pré-planejamento, e a postura fortuita do colonizador português, definida pelo historiador como o resultado do diálogo entre a arquitetura e o meio natural, e a predominância do segundo sobre a primeira (BUARQUE DE HOLANDA, 1989, p.76). O autor considera que as cidades surgiram ao sabor dos caprichos individuais, e não a partir de um plano geometricamente ordenado.

Nos anos 60, Paulo Santos aborda a onipresença da natureza e do aspecto espontâneo na urbe brasileira, afirmando que esta apresenta uma atraente imprevisibilidade, bem diferente da repetição de traçado das terras colonizadas pelos espanhois, chegando a comparar as cidades brasileiras à variedade de desenho urbano islâmico e cristão que, em sua concepção, seria desordenado e livre de traçado pré- definido (1968, p.18).

Mas é Nestor Goulart Reis Filho a grande referência brasileira dos estudos urbanos coloniais. Em seu livro Contribuição ao estudo da evolução urbana no Brasil, o arquiteto defende a ideia de que as primeiras vilas e cidades brasileiras, enquanto produto racionalizado, dispunham de um desenho geometrizado adaptado às condições da topografia, característica-chave que as diferencia da experiência da colônia espanhola (REIS FILHO, 2000:71).

Sérgio Buarque inicia sua abordagem discutindo os desígnios dos engenhos e das cidades enquanto instrumentos de dominação do imperialismo português; Paulo Santos com a comparação com as cidades medievais, e Nestor Goulart com a narração sobre a colonização portuguesa como um ato político e a urbanização como uma estrutura dinâmica. O que eles têm em comum, além do tema abordado, é o esforço em definir os princípios norteadores do desenho das vilas e cidades coloniais.

Para Aroldo de Azevedo tais estruturas urbanas não obedeciam a nenhum plano pré-estabelecido ( 1956:10). O que se percebe, nesses discursos clássicos, é a oscilação entre a espontaneidade e a racionalidade na implantação das primeiras povoações brasileiras, sobretudo baseada nas expressões do traçado do desenho urbano, especificamente referente à sua adjetivação – formal, informal, regular, irregular, espontâneo, planejado.

No entanto, não faz parte desta tese analisar essas posições e nem mesmo as colocações referentes aos itens 2 e 3. Porém, vale informar como ilustração do que se vem discutindo e das pesquisas realizadas sobre o tema. Uma maneira de inserir esse novo olhar no âmbito das pesquisas existentes e o diferencial que a mesma representará no contexto nacional e internacional.

Sobre as discussões colocadas no segundo item, os trabalhos desenvolvidos por esse grupo de pesquisadores têm como centro a intenção de negar a clássica tese da contraposição entre o planejado e o espontâneo, mais recentemente direcionada a reconhecer a existência de uma política de urbanização por parte de Portugal, ou seja, haveria uma clara intenção de controle e regulamentação dos processos urbanos. Pode- se identificar este posicionamento nos trabalhos de Reis Filho(1968); Delson(1979); Flexor(1989); Del Brenna(1997); Araújo(1998) e Rossa(1998).

Todos esses autores acreditam que Portugal, além de uma política de ocupação do território de suas colônias, tinha também uma política de urbanização. Isto não significa que essa política estava baseada em um corpo de regras bem definidas, mas deve ser compreendido como uma série de critérios estabelecidos com o objetivo de proporcionar um determinado controle sobre a estrutura física das vilas e cidades.

Apesar do avanço dessas pesquisas, esse tema ainda não está suficientemente discutido. O governo português, com a intenção de aprofundar os estudos sobre este tema, criou o projeto “A Cidade como Civilização: Universo Urbanístico Português 1415-1822”. Este projeto tem a intenção de formar uma rede de pesquisadores em história urbana, enfocando a ação urbanística portuguesa nas suas colônias.

A terceira questão elencada diz respeito à relação entre o espaço urbano e a Igreja Católica. Poucos trabalhos têm enfocado o papel da Igreja na configuração espacial das vilas e cidades do período colonial brasileiro.

Murillo Marx (1989;1991) defende a tese de que o forte vínculo estabelecido entre a Coroa Portuguesa e a Igreja Católica para a colonização de seus territórios ultramarinos teve efeito direto nos núcleos urbanos. Além da relação entre Igreja/Estado, Marx também ressalta a importância do estudo da estrutura fundiária, concessão de terras e parcelamento do solo, para a compreensão da conformação física das vilas e cidades coloniais.

Autores como Fridman (1999) e Hernandez (2000) também seguem um viés do caminho indicado por Murillo Marx, porém suas pesquisas são dedicadas à formação do patrimônio dos monges beneditinos e não à relação desta Ordem com a configuração do espaço urbano.

A história do urbanismo evolui com a das cidades, um tema que não é fácil de analisar, avaliar e reavaliar. Portanto, se faz necessário buscar novas reflexões que possam contribuir nesse processo de construção permanente de novos conhecimentos sobre os caminhos adotados no passado que interferiram e ainda interferem no traçado urbano desenvolvido ao longos dos anos e que caracterizam ainda hoje a nossa forma de viver e de nos relacionar. A partir da análise do estado atual das pesquisas sobre a história urbana no Brasil fica claro a lacuna ainda existente e a necessidade de se desenvolver novos estudos dentro desta temática.

Esta tese se propõe olhar e discutir a apropriação do espaço sob um novo aspecto ainda não considerado em relação à questão de existir um planejamento prévio de ocupação, caracterizando um pensar português que vai além de um desenho

(traçado). Propõe que se identifique esse planejamento de ocupação dessas novas terras de maneira racional e não aleatória, pois esses núcleos por si só não dariam sustentabilidade para a efetiva posse do colonizador. A mola propulsora para esse ocupar não estaria representada apenas pelo núcleo urbano, mas também pelos “engenhos instalados” e, a partir deles e de suas articulações, indicaria as primeiras diretrizes de um planejamento de ocupação efetiva.

O desafio desta investigação consiste em identificar a organização e distribuição espacial dos engenhos, no início da colonização, como parte de um sistema de planejamento interligado, dentro do processo de apropriação do espaço, com o objetivo de constatar que não houve apenas uma intenção mercantil na implantação dos engenhos, mas um propósito, um planejamento de ocupação territorial.