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Contexto brasileiro: uma observação a partir de Dependência e Desenvolvimento na América Latina

P ERSPECTIVAS PARA A PESQUISA EM D IREITO E D ESENVOLVIMENTO

7. Individual and group action, contextually constrained and socially shaped though it may be, is the engine that drives social life.

2.6. Contexto brasileiro: uma observação a partir de Dependência e Desenvolvimento na América Latina

O Brasil não tem uma tradição jurídica voltada para pensar a rela- ção entre direito e desenvolvimento. O problema não aparece em primeiro plano na tradição do pensamento brasileiro. No entan- to, ao retomar as análises clássicas de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto em Dependência e Desenvolvimento na América Latina, podemos identificar um lugar para ligar nossas preocupações com o direito com a tradição do pensamento brasileiro.

O direito não aparece em primeiro plano no livro mas, como demonstraremos adiante, há ali espaço para ligar as considera- ções de Fernando Henr ique Cardoso e Enzo Falleto com o estado atual das pesquisas em Direito e Desenvolvimento do ponto de vista das preocupações específicas de uma escola de direito. É importante ressaltar que não nos interessa aqui a dis- cussão sobre os modelos de desenvolvimento de cada país estudado pelos autores, tampouco o conceito de economia de enclave e seus desdobramentos. Vamos nos centrar na armação teórica do problema, pois é ela que per mite iluminar o campo de pesquisa que a obra abre e explora ao longo de suas páginas. Cardoso & Faletto afirmam que o desenvolvimento não pode ser explicado em função de mecanismos exclusivamente econô- micos (2004:22). Segundo Dependência e Desenvolvimento..., a dinâmica da economia tout court não é capaz de explicar o pro- cesso de desenvolvimento: é preciso investigar a relação entre os grupos sociais no plano nacional para compreender como os fatores econômicos são interpretados e transformados em proje- tos e ações. A economia não funciona independentemente de agentes socais:

[...] considera-se o desenvolvimento como resultado da interação de grupos e classes sociais que têm um modo de que lhes é próprio e, portanto, interesses materiais e valores distintos, cuja oposição, conciliação ou superação dá vida ao sistema socioeconômico. A estrutura social e política vai se modificando a medida que diferentes classes e grupos sociais conseguem impor seus interesses, sua força, sua dominação ao conjunto da sociedade. (CARDOSO & FALETTO, 2004:34)

Cardoso & Faletto pretendem explicar os processos econô- micos como processos sociais (1998:36), ou seja, levando em conta a mediação dos grupos sociais e não pensando a econo- mia como mecanismo automático, que funciona sobre as cabeças dos agentes sociais. Por esta razão, o controle social da produção e do consumo é o eixo de explicação escolhido. É preciso iden- tificar quais são as estruturas de domínio desenvolvidas para controlar as decisões relacionadas a este eixo e à sua dinâmica.

Esta dinâmica é dependente da relação entre os grupos sociais. Apenas assim, segundo os autores, é possível captar o processo de transformação da ordem política institucional que determi- na o processo de desenvolvimento.

O estudo dos mecanismos de decisão, dizem Cardoso & Faletto, não resolve, por si só, o problema do desenvolvimento. É preci- so levar em conta as estruturas de dominação e as formas de estratificação social que condicionam estes mecanismos; além dos tipos de controle e decisão do sistema econômico em cada situa- ção particular. Trata-se de levar em conta os comportamentos políticos “que incidem na relação entre as classes e grupos sociais que mantêm um padrão dado de controle e as que se lhes opõem real ou virtualmente”. Além disso, devem-se considerar as “orien- tações valorativas que outorgam à ação seus marcos de referência”. (CARDOSO & FALLETO, 1998: 37)

Esta ar mação teór ica presente em Dependência e

Desenvolvimento... abr iu novas perspectivas para a análise do

desenvolvimento. Tradicionalmente, a economia fora pensada como mecanismo que, naturalmente, provocava mudanças no padrão de dominação e nas instituições. Em suas Lições de

Jurisprudência, Adam Smith afir ma que a humanidade passa por

quatro estados: a era dos caçadores, a era dos pastores, a era da agricultura e a era do comércio, cada um com suas leis e regula- mentos relativos à propriedade (SMITH, 1978: 14,16). A cada forma de atividade econômica corresponderia, naturalmente, um certo desenho das instituições legais e políticas. Este modo de pen- sar, que deriva da dinâmica econômica, automaticamente, os mecanismos institucionais necessários para regular a sociedade, ainda não foi completamente superado.

Ao afir mar a centralidade da dinâmica dos grupos sociais e classes no controle sobre os meios de produção e consumo Cardoso & Faletto mostram a parcialidade de uma explicação exclusivamente econômica da dinâmica social, ou melhor, de uma abordagem que passe por cima da dinâmica dos agentes sociais. A economia atua sobre a sociedade pela mediação dos grupos sociais, ou seja, precisa estar encarnada em agentes que concebam projetos políticos que motivem ações pr ivadas e políticas públicas.

Ora, diante do exposto, podemos afir mar que os projetos dos g rupos sociais que se dir igem às estruturas de domina- ç ã o c o m o f i m d e t r a n s f o r m á - l a s t ê m s e m p re u m a f a c e jurídica. Além disso, as estruturas de dominação são construí- das jur idicamente e desenvolvem dinâmicas mais ou menos dogmatizadas, conforme o caso. A ação dos grupos sociais refe- re-se e estão condicionadas por instituições que funcionam ou não sob o padrão dogmático.

Uma análise fina das estruturas de dominação precisa descre- ver estas instituições - os mecanismos de tomada de decisão a que nos referimos acima (mecanismos dogmatizados, não dogmati- zados e de governança) - e pensar como cada grupo se relaciona com ele, ainda, se cada um desses grupos tem projetos de refor- ma institucional. Afinal, a interação entre os grupos sociais e as classes que explica o desenvolvimento do país, traduzindo em ter- mos políticos diversos projetos econômicos, também tem uma face jurídica. A interação entre estes grupos e classes se faz no marco de instituições; dogmatizadas ou não, além de mecanismos de governança. Ademais, cada grupo social busca introduzir mudan- ças no padrão de dominação, ou seja, pretende refor mar as estruturas de dominação para legitimar seu modelo de hegemo- nia o que significa modificar o modo de regular os fatos sociais. É possível contar a história do Brasil deste ponto de vista, pensando as estruturas de dominação como estruturas regula- tórias e a dinâmica pela qual seus limites foram sendo alcançados em virtude da pressão dos diversos grupos e classes sociais que foram conquistando a hegemonia e cristalizando seus projetos de desenvolvimento nas leis e regulamentos. Além disso, é pos- sível mostrar que projetos de dominação de deter minados grupos buscaram destruir as instituições existentes ou foram ine- ficazes por não levarem sua dinâmica em conta. Afinal, uma instituição em funcionamento, seja ela dogmatizada ou não, tem uma temporalidade e uma racionalidade própria, um padrão de funcionamento que condiciona a ação dos agentes e deter- mina a eficácia de qualquer ação.

Com efeito, para pensar o desenvolvimento é preciso levar em conta a dinâmica institucional e os projetos de institucio- nalização que as diversas classes e grupos desenvolvem nos

diversos campos e órgãos do ordenamento jurídico. Eventualmente, é preciso pensar o significado da ausência de projetos de refor ma institucional na platafor ma dos grupos sociais ou, simplesmente, a negação da via institucional como meio de luta por seus interesses.

2.7. Direito e Desenvolvimento, Economia e Democracia

A compreensão da dinâmica das instituições e dos projetos de institucionalização, ou seja, a descrição, análise e avaliação dos mecanismos de tomada de decisão que funcionam ou não sob o padrão da dogmática e os mecanismos de governança, é essen- cial para compreender a dinâmica social em geral, inclusive o processo de desenvolvimento dos diversos países. É claro, cada grupo social pode conceber e lutar por um determinado proje- to de desenvolvimento que será defendido perante as instituições postas e, eventualmente, demandará reformas institucionais que alterem seu padrão de funcionamento com o fim de instaurar nova dinâmica econômica, social e política.

É importante ressaltar que, seja qual for o sentido que se emprestar à palavra “desenvolvimento”, é possível pensar nos ter- mos que estamos propondo: levar em conta a dinâmica das forças sociais e seus projetos para as estruturas de dominação via reformas institucionais. O sentido do que se deva conside- rar “desenvolvimento” está em disputa, seja na teoria, seja no nível da luta social. Cabe ao jurista atentar para o aspecto jurí- dico-institucional que integ ra cada conceito e projeto de desenvolvimento, ou seja, os padrões institucionais defendidos e o comportamento diante das instituições existentes dos diver- sos grupos sociais, além das diversas teor ias que procuram relacionar direito e desenvolvimento.

Mas não apenas. O debate atual sobre esses temas inclui uma discussão acirrada sobre o lugar da democracia e sua relação com a economia. O que está pressuposto nesse debate é, como já vimos acima, o conceito de desenvolvimento com o qual se trabalha. Se admitirmos que o desenvolvimento econômico, ao contrário da lição clássica de Adam Smith, não produz naturalmente novas instituições e, além disso, que se pode encontrar países desenvol- vidos e subdesenvolvidos democráticos e autoritários; identificar

desenvolvimento a desenvolvimento econômico significará excluir a democracia como elemento essencial para o desenvolvimento dos povos.Vejamos como esta discussão pode ser pensada hoje a partir de uma breve reconstituição dos principais movimentos da dinâmica modernização da periferia.

A posição periférica de um país no sistema capitalista impli- ca, antes de tudo, que sua capacidade de ação política e econômica é estruturalmente limitada. É possível, em termos muito gené- ricos, dizer que os países periféricos foram submetidos a duas ondas de modernização na segunda metade do século XX. Até aproximadamente o início da década de 1980, as ondas de moder- nização se apresentaram essencialmente sob a for ma de modernização econômica, um modelo ao qual a forma política da moder nização dever ia simplesmente se adequar. Dito de outro modo, a forma política da modernização era subalterna rela- tivamente aos objetivos econômicos a serem alcançados. Podia dar-se tanto sob um regime político ditatorial (por um longo período, no caso) quanto sob um regime democrático com ele- mentos do estado de direito minimamente assegurados (como foi o caso da Venezuela). Nesse sentido, o importante a ressaltar aqui é que a configuração do regime político adequado à moderni- zação econômica em países periféricos dependia essencialmente tanto das inflexões da política externa americana quanto da constituição de blocos hegemônicos nacionais capazes de levar adiante uma modernização econômica forçada.

Essa situação modifica-se a partir de meados da década de 1980, projetando-se até o momento presente. Pode-se enxergar aqui uma segunda onda modernizadora que, desta feita, torna indissociáveis modernização econômica e modernização políti- ca, sendo mais bem descr ita, por tanto, como um padrão político-econômico de moder nização. Mais precisamente, a modernização econômica pressupõe e exige a forma do Estado Democrático de Direito para ser levada a cabo. O projeto de ins- titucionalização dos grupos sociais hegemônicos passou a ver na democracia elemento necessário do desenvolvimento.

Essa nova configuração se mostra, entretanto, tão unilateral quanto sua predecessora, muito embora seja de capital impor- tância registrar o avanço normativo da nova versão do processo

de modernização. É igualmente importante assinalar que esse avanço nor mativo encerra também um aparente paradoxo: ele se dá sob a égide do chamado “neoliberalismo”, cuja versão vul- gar é justamente a da primazia da economia sobre a política, sob quaisquer circunstâncias. O que expomos aqui a respeito da nova onda de modernização nos países periféricos talvez seja o mais eloqüente desmentido dessa vulgata neoliberal. E, simultanea- mente – quem sabe –, um bom ponto de partida para explicar a crescente importância da problemática do direito na autocom- preensão da sociedade atual.

Não obstante as diferenças entre as duas ondas de moderni- zação mencionadas, há elementos que lhes são comuns, exatamente aqueles que fundam a sua unilateralidade. Antes de tudo, trata-se sempre de pressupor que, seja na versão meramen- te econômica, seja na versão político-econômica, o impulso modernizador será capaz de produzir instituições e for mas de vida que correspondam aos modelos originais dos países cen- trais. No caso da modernização político-econômica, trata-se de importar instituições capazes de gerar modernização social e econômica, simultaneamente. Se se pode falar em um avanço nor mativo relativamente à onda meramente econômica de modernização – já que não está apenas nas mãos da moderni- zação econômica engendrar a sociedade como um todo – também não se pode passar por alto o fato de que a modernização polí- tico-econômica traz consigo uma concepção empobrecida da cultura e da política.

Em segundo lugar, a unilateralidade dos padrões de moderni- zação gera modelos teóricos autocompreensivos fundados na idéia de que só é possível entender as realidades sociais perifé- ricas pela falta, ou seja, por aquilo que elas não são e, ao mesmo tempo, deveriam ser. Nesse sentido, não são capazes de entender o que efetivamente são as sociedades periféricas, tampouco de desentranhar os reais pressupostos normativos presentes nas ins- tituições efetivamente operantes e que poderiam apontar para potenciais avanços emancipatórios.

Por fim, há que ressaltar que essa mais recente onda de modernização não é apenas unilateral, mas também ambígua. E isso em pelo menos dois sentidos, estreitamente conectados.

Antes de tudo, é fundamental lembrar que países periféricos são justamente aqueles em que avanços institucionais democráticos são permanentemente ameaçados e minados pela desigualdade material, expressa de maneira crua nos abismos de distribuição de renda existentes.

Exatamente por isso, a ligação entre modernização econômi- ca e política é frágil, sendo que, à luz da história da segunda metade do século XX, cabe dizer que a ponta mais quebradiça é sempre a das instituições democráticas. Trata-se de um frágil equilíbrio, em que as instituições democráticas são ameaçadas pela modernização econômica de resultados concentradores de renda, ao mesmo tempo em que a manutenção da modernização econô- mica requer instituições democráticas que possam legitimá-la.

Dito de outro modo, não há elo seguro entre modernização econômica e democracia. Nesse contexto, pesquisar Direito da perspectiva do desenvolvimento exige uma dupla perspectiva, que poderíamos descrever como “interna” e “externa”, ainda que esses termos sejam equívocos. De um ponto de vista “interno”, cabe analisar quais os objetivos o Brasil pretende alcançar e quais são as limitações objetivas para alcançá-los. De outro lado, cabe pensar qual o papel desempenhado pelos países centrais – seja diretamente, seja por meio das políticas dos organismos multi- laterais – na imposição de padrões e de limites à atuação soberana dos países periféricos, uma perspectiva que chamaría- mos de “externa”.

É evidente que os dois aspectos do problema estão intima- mente conectados e que é difícil demarcar fronteiras claras. Pois os constrangimentos “exter nos” tor nam-se tanto obstáculos objetivos às metas auto-impostas pelos países integrantes do Mercosul como são também no mais das vezes “internalizadas”, como elementos de autocompreensão, sob a forma da falta, da carência em relação ao padrão imposto pelos países centrais. Ocorre que, aqui também, torna-se clara a inadequação de uma adoção imediata e acrítica das instituições e formas de vida pres- supostas pelo padrão externo pelos países do mercado do sul.

O projeto da DIREITO GV pretende retomar a relação entre Direito e Desenvolvimento do ponto de vista da periferia. As ins- tituições não podem ser concebidas, exclusivamente, nem como

instrumento para a produção de formas de vida nem como meio de obtenção de resultados econômicos positivos para o país. O direito não é mero instrumento, mas fator constitutivo da cons- trução de um equilíbrio entre eficiência e legitimidade, ambos elementos constitutivos do processo de desenvolvimento.

2.8. O ponto de vista de uma escola de direito: